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Na sua primeira entrevista como presidente do STJ, Henrique Araújo defende um maior equilíbrio entre as garantias de defesa e a celeridade exigida ao processo penal / JOÃO PORFÍRIO
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Na sua primeira entrevista como presidente do STJ, Henrique Araújo defende um maior equilíbrio entre as garantias de defesa e a celeridade exigida ao processo penal / JOÃO PORFÍRIO

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Na sua primeira entrevista como presidente do STJ, Henrique Araújo defende um maior equilíbrio entre as garantias de defesa e a celeridade exigida ao processo penal / JOÃO PORFÍRIO

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Henrique Araújo: "Há um excesso de garantias de defesa. Se queremos uma justiça mais rápida, temos de cortar com isso"

Em entrevista, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça defende a extinção do Supremo Tribunal Administrativo, quer o crime de enriquecimento ilícito e o fim das manobras dilatórias das defesas.

Na sua primeira entrevista como presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Henrique Araújo, de 67 anos, assume o objetivo de agitar as águas. Já tinha sinalizado no seu discurso de tomada de posse a sua crítica à “inércia do legislador” na luta contra a morosidade dos grandes processos judiciais mediáticos e diz agora ao Observador que o poder político tem uma opção a tomar no combate à criminalidade económico-financeira: se quer ter uma justiça mais célere, terá de reduzir as garantias de defesa dos arguidos para encontrar um melhor equilíbrio entre a eficácia e os direitos dos arguidos.

Numa entrevista de 50 minutos que decorreu na antiga “Sala do Crime” (um espaço contíguo ao salão nobre do STJ onde se chegaram a realizar julgamentos e que é hoje o novo gabinete do presidente do Supremo), Henrique Araújo falou sempre num tom sereno mas assertivo e com ideias fortes. Por exemplo, o líder do poder judicial defende o fim da organização judiciária autónoma para os tribunais administrativos e fiscais — o que implicará a extinção do Supremo Tribunal Administrativo e do respetivo Conselho Superior — e promete que essa mudança levará a uma melhoria significativa nos tempos de resolução de um processo administrativo, que chegam quase aos sete anos.

[Veja aqui o essencial da entrevista]

Critica ainda a Estratégia Nacional Contra a Corrupção por defender um aprofundamento do direito premial e os mecanismos de acordos de sentença, rejeita a “espetacularidade” quer das detenções de Joe Berardo e de Luís Filipe Vieira quer da leitura da decisão instrutória da Operação Marquês em direto nas televisões decidida pelo juiz Ivo Rosa, defende a criação do crime de enriquecimento ilícito (censurando o que entende ser um conservadorismo do Tribunal Constitucional, que viabilizou a inversão do ónus da prova no direito fiscal mas já chumbou por duas vezes a criação daquele ilícito) e admite que a criação de um tribunal de julgamento para os grandes casos da criminalidade económico-financeiro “é um caminho a ponderar”.

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Foram detidos dois empresários com elevada notoriedade (Joe Berardo e Luís Filipe Vieira) nas duas últimas semanas, o que causou um grande impacto e promoveu a perceção de que a Justiça está a agir. O cidadão comum, contudo, não percebe as detenções, se, no final, os arguidos saem em liberdade. Concorda com a qualificação de “circo mediático” que é usada muitas vezes pelas defesas para descrever este tipo de detenções?
Parece-me uma expressão adequada. Houve muita espetacularidade envolvendo essas detenções. Qualquer cidadão liga a televisão e vê o arguido a sair de casa, o arguido a entrar na polícia, o arguido a sair de tribunal depois de ser ouvido pelo juiz, os advogados a prestarem declarações, são os comentários políticos na televisão — tudo isto é compreensível.

"Houve muita espetacularidade envolvendo essas detenções. [de Berardo e Vieira]. Depois chega-se ao fim e a expetativa do cidadão não se cumpre. Provavelmente, o cidadão esperava uma atitude mais enérgica da Justiça, mais contundente para o arguido. O que faz com que exista uma sensação de frustração que contamina todo o espaço da Justiça."
Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Há um escrutínio público sobre estes temas.
E esse escrutínio público é positivo. Mas acho que é exagerado. Depois temos o outro ponto da questão, que é a expetativa que existe sobre o que vai acontecer. Geralmente, estes tipos de processos têm figuras já com um grande lastro…

Já têm uma elevada notoriedade.
Exatamente. Depois chega-se ao fim e a expetativa do cidadão não se cumpre. Provavelmente, o cidadão esperava uma atitude mais enérgica da Justiça, mais contundente para o arguido. O que faz com que exista uma sensação de frustração que contamina todo o espaço da Justiça.

“Se o legislador quer processos mais rápidos, temos que abdicar de algumas garantias de defesa”

No seu discurso de tomada de posse, teve uma mensagem forte ao criticar a “inércia do legislador” na luta contra a morosidade dos grandes processos judiciais. Quais as causas para essa morosidade e que soluções podemos aplicar para não termos aquela velha máxima de uma Justiça para ricos e outra para pobres?
A principal causa da morosidade tem a ver com o volume e complexidade desses processos e também com os meios que são alocados não só ao julgamento, como também à fase de investigação. No caso da criminalidade económico-financeira há também atrasos na obtenção de documentação bancária no exterior do país. Tivemos muitos casos recentes de cartas rogatórias que demoraram meses, senão anos.

Seis meses a um ano — é o tempo que demora a responder a uma carta rogatória.
Exatamente. Depois temos milhares de páginas nos autos que têm de ser geridos por um juiz sem qualquer tipo de assessoria. Tudo isso atrasa os processos.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Se analisarmos os tempos das diferentes fases processuais desses grandes casos, concluímos em termos genéricos que a fase de inquérito e a de instrução criminal são as que menos tempo demoram. E que as fases de julgamento e de recursos chegam a demorar o dobro, o triplo o quádruplo ou mais do que as duas primeiras fases…
Peço desculpa por interromper mas não será sempre assim. Há inquéritos que demoram mais do que as outras fases.

Era isso que lhe ia perguntar. No seu discurso de tomada de posse, afirmou que o “arrastamento temporal” dos processos cria “um dano irreparável na imagem da Justiça”. Em termos abstratos, isso deve-se às fases de julgamento e de recursos ou à fase inquérito?
Não se pode generalizar dessa forma. Há imensos casos, recentes até, que se arrastaram na fase de inquérito, envolvendo instituições bancárias e chegaram a julgamento com riscos de prescrição. É claro que também há julgamentos que demoram muito tempo porque os casos são complexos e há muitas testemunhas para ouvir. Depois temos a fase de recursos, que é uma demora legítima porque os visados têm direito a recorrer. Mas tudo isto demora. A investigação não está capacitada para agir de forma mais célere em determinada criminalidade. Há falta de meios. Os próprios agentes da investigação estão sempre a falar disso.

O poder político não faz disso uma prioridade.
Sim. Isso é incompreensível. Devem ser dados à investigação todos os meios. Por exemplo, as perícias dos casos económico-financeiros, o recrutamento de especialistas informáticos, entre outras matérias. Há uma série de fatores que estão a ser desleixados por parte das autoridades competentes.

“Há um excesso de garantias de defesa. Há muitas possibilidades de parar um processo através de manobras dilatórias. É uma prática que se tem agravado nos últimos tempos. É preciso cortar com isso porque não faz sentido. Vai-se mexer com os interesses dos senhores advogados.” 
Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Os grandes casos da criminalidade económico-financeira demoram sempre muitos anos a serem julgados. Na Holanda, por exemplo, os juízes de primeira instância têm poder não só para limitar o número de testemunhas, como para limitar a produção de prova em audiência que as defesas desejam fazer. Os juízes devem ter mais poder para tentar fazer com que os julgamentos sejam mais céleres?
É difícil. Porque a lei do processo permite todo o tipo de defesa…

Considera que o legislador devia reforçar os poderes do juiz?
As leis do processo [penal] devem tornar-se mais ágeis. Temos uma escolha a fazer: se o legislador quer processos mais rápidos e céleres temos que abdicar de algumas garantias de defesa.

Tendo em conta a taxa de rejeição liminar muito elevada (mais de 90%) dos recursos para o Tribunal Constitucional, faz sentido restringir os recursos para o Constitucional, como aconteceu com o Supremo Tribunal de Justiça?
Está fora de questão. Embora me pareça, repito, que há um excesso de garantias de defesa. Não quero ser mal interpretado mas…

Se bem interpreto as suas palavras, defende um equilíbrio entre as garantias de defesa a eficiência da Justiça?
Exatamente. Se quer mais eficácia, mais celeridade, tem de haver uma diminuição das garantias de defesa.

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Falemos dos recursos. As defesas têm ao seu dispor muitos instrumentos que lhes permitem ir atrasando o normal percurso da Justiça: recursos (que até podem começar logo na fase de inquérito), nulidades, aclarações, reclamações, etc. Devemos tentar limitar a utilização destes instrumentos?
Sim. Há muitas possibilidades de parar um processo. Por exemplo, há muitas formas de parar um processo no Supremo Tribunal de Justiça. Em primeiro lugar, o coletivo faz a decisão. Depois a defesa faz arguição das nulidades, pede a reforma do acórdão e formula requerimentos anómalos e incidentais que vão atrasar ainda mais o processo, Há, enfim, uma tramitação perfeitamente desnecessária…

Que visa emperrar o processo.
Sim. Só para evitar que o processo baixe à primeira instância através de manobras dilatórias. É uma prática que se tem agravado muito nos últimos tempos. É preciso cortar com isso porque não faz sentido.

Defende uma redução ou eliminação desse tipo de instrumentos legais permitidos às defesas?
Tem de ser feita uma alteração na lei do processo [penal] e é urgente que se faça. Já há muito tempo que são permitidas este tipo de manobras dilatórias e é preciso atalhar, é preciso cortar. Tem de haver coragem para fazer isso. É claro que se vai mexer com alguns interesses, nomeadamente dos senhores advogados. Mas algumas dessas formas de atuar não fazem sentido nenhum.

“A investigação não está capacitada para agir de forma mais célere em determinada criminalidade. O poder político não faz disso uma prioridade. Isso é incompreensível. Devem ser dados à investigação todos os meios."
Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Há uma excessiva influência dos advogados na elaboração das leis processuais? Os juízes deviam ser ouvidos mais vezes?
Provavelmente, provavelmente. Nas reformas do processo civil, há sempre o cuidado de chamar juristas e magistrados que possam fazer a diferença. No processo penal, não sei como tem funcionado. Mas é importante que os juízes sejam ouvidos. É claro que o Conselho Superior da Magistratura tem sempre a possibilidade de emitir um parecer sobre as propostas de lei. Independentemente disso, os magistrados devem ser incluídos nas equipas que fazem as propostas de lei.

“Há casos em que se verifica muita passividade do juiz que está a dirigir o julgamento”

Há quem defenda a limitação do número de testemunhas e na produção de prova que as defesas podem requerer em audiência de julgamento.
Nos anteriores códigos de processo havia essa limitação. Enfim, são opções legislativas que compreendo muito mal. Tais medidas têm os custos inerentes: a demora nas decisões.

Entende que esse tipo de limitações poderia colocar em causa o Estado de Direito e as garantias de defesa?
Suponho que não. Não pode haver um número ilimitado de testemunhas. A defesa tem de ser feita com base nas testemunhas que têm um conhecimento de causa. Não pode ser uma ‘lista telefónica’, como já chegou a ser.

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Por exemplo, no julgamento do caso BPN, que demorou quase sete anos, uma testemunha foi ouvida durante sete meses.
Isso é incompreensível, incompreensível. Há outra questão: a forma como o juiz dirige a audiência — que nada tem a ver com questões técnico-jurídicas. Reconheço que há muitos casos em que há muita passividade do juiz que está a dirigir o julgamento. O juiz deve intervir sempre que estão a ser feitas perguntas sugestivas, repetitivas ou que nada têm com a questão. Sempre por respeito pelas leis do processo. O Centro de Estudos Judiciários deveria fazer alguma pedagogia nessa matéria, de forma a que quando os juízes assumissem as suas jurisdições pudessem dirigir a audiência com mais propriedade para encontrar a verdade. Por passividade, a verdade pode passar ao lado.

A defesa do fim do Supremo Tribunal Administrativo e do Conselho Superior dos tribunais administrativos e fiscais

De que revisão constitucional o país precisa neste momento?
Não queria ser polémico, mas penso que uma das matérias que poderia ser revista tem a ver com os tribunais administrativos.  Como sabe, temos um Conselho Superior da Magistratura [órgão disciplinar e de gestão da magistratura judicial nos tribunais criminais e cíveis] e um Conselho Superior dos tribunais administrativos e fiscais [órgão de gestão disciplinar da jurisdição administrativa]. O único país da Europa que tem um modelo semelhante é a França com os mesmos problemas: grande dilação temporal nas decisões administrativas e fiscais. Coloca-se também aí um problema de falta de meios. Não faz sentido que o país tenha dois conselhos superiores para tribunais diferentes e que tenha os tribunais administrativos e fiscais fora da alçada da restante Justiça, digamos assim. É uma matéria que se devia atalhar numa futura revisão constitucional.

"Se se fizesse uma revisão constitucional que permitisse colocar os tribunais administrativos e fiscais sob a alçada do Conselho Superior da Magistratura, seria possível corrigir a disparidade brutal entre os tempos de resolução desses tribunais e os da área criminal, cível e comercial. É uma diferença muito grande."
Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Se bem percebo, defende a extinção do Supremo Tribunal Administrativo e do Conselho Superior dos tribunais administrativos e fiscais e a incorporação das repetivas competências no Supremo Tribunal de Justiça e no Conselho Superior da Magistratura?
Exatamente.

Os tribunais administrativos têm um tempo médio de decisão de 927 dias (cerca de três anos) na primeira instância, 1015 dias (mais três anos) na segunda instância e 363 dias (1 ano) para a resolução de um caso. A proposta que acabou de fazer, de o Conselho Superior da Magistratura passar a gerir os tribunais administrativos e fiscais, vai solucionar esta morosidade de quase sete anos para decidir um caso?
Quase que garantiria que sim. Se os poderes do Conselho Superior da Magistratura passar a abranger os tribunais administrativos e fiscais, a eficiência e a celeridade vão melhorar muito. Porque o Conselho Superior da Magistratura tem meios e gente capaz de fazer uma gestão apropriada dos recursos. Por isso mesmo, os tribunais criminais, cíveis e comerciais são muito mais expeditos. A média de resolução de um caso em primeira instância ronda os 200 dias, em segunda instância são cerca de 140/150 dias e no Supremo Tribunal de Justiça também cerca de 200 dias.

São tempos razoáveis?
Sim, enquadram-se na medida standard do que é a média europeia. A disparidade que acontece para com os tempos de resolução da área administrativa e fiscal é brutal, é uma diferença muito grande. Terá a suas justificações mas seria possível corrigir isso se se fizesse uma revisão constitucional que permitisse a absorção desses tribunais, ficando todos sob a alçada do Conselho Superior da Magistratura.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O PS e o PSD já deram sinais públicos de que poderão acordar essa revisão constitucional — será a primeira em 16 anos. A adaptação do texto da lei máxima a futuras crises pandémicas ou de catástrofe, a limitação de mandatos para os deputados e a agilização de referendos sobre a regionalização parecem ser as prioridades. Faz sentido uma revisão constitucional com estes temas?
Não me pronuncio sobre temas de organização política. Apesar de não conhecer a proposta de revisão constitucional, devo dizer que a dificuldade em ajustar as medidas regulamentares adotadas durante a pandemia às possibilidades de restrição dos direitos liberdades e garantias permitidas pela Constituição, aconselha a uma reflexão sobre a matéria, que não passa, a meu ver por uma compressão do artigo 19.º da Constituição [suspensão do exercício de direitos] ou qualquer outra norma da lei fundamental. Parece-me antes que, a partir desta trágica experiência da Covid 19, haverá condições para se criar uma lei que enquadre estas situações, definindo os critérios, o alcance e o tempo das medidas a adotar.

Enriquecimento ilícito. “Há conservadorismo do Tribunal Constitucional”

A Associação Sindical de Juízes (ASJ) propôs a criação de um novo crime de enriquecimento injustificado. Concorda com os termos dessa proposta e considera que seria importante para o combate à criminalidade económico-financeira?
A solução preconizada pela ASJ é uma solução minimalista. Poderá resolver alguns problemas de constitucionalidade que surgiram com anteriores propostas mas é uma solução minimalista. Recordo que a Convenção das Nações Unidas recomenda desde 2000 a tipificação desse crime — sendo que a convenção foi ratificada por Portugal em 2007. O que estranho é que, ao fim de 15 anos, e depois de 22 propostas de lei, se continue a discutir se deve ou não ser aplicado. Acho extraordinário.

Há uma grande resistência do poder político.
Duas propostas, em 2012 e em 2015, que foram objeto de decisão do Tribunal Constitucional com uma declaração de inconstitucionalidade.

"A Convenção das Nações Unidas recomenda desde 2000 a tipificação do crime de enriquecimento ilícito. Sendo que Portugal ratificou o texto em 2007. Estranho que ao fim de 15 anos, e depois de 22 propostas-de-lei, que se continue a discutir: se deve ou não ser aplicado. Acho extraordinário."
Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça

A proposta da ASJ visava contornar essa matéria.
Seria muito residual o efeito dessa solução legislativa da ASJ. Parece-me que a solução do enriquecimento ilícito poderá fazer o seu caminho, apesar das inconstitucionalidades evidenciadas nos acórdãos do Tribunal Constitucional: não está identificado o bem jurídico a proteger, não está identificada a conduta concreta a sancionar e também a violação do princípio da presunção da inocência. Tenho de assinalar que o nosso legislador, que tem sido tão criativo em áreas como o direito fiscal…

O legislador inverteu o ónus da prova na área do direito fiscal.
Exatamente. O legislador tem, com certeza, capacidade para ultrapassar os obstáculos apontados pelo Tribunal Constitucional, desde que existam duas coisas fundamentais: vontade e esforço.

Considera que existe um conservadorismo do Tribunal Constitucional em relação ao enriquecimento ilícito, tendo em conta que deu luz verde à inversão do ónus da prova no processo tributário?
Sim. Parece-me que há muito conservadorismo do Tribunal Constitucional.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Além da solução técnica, também teremos que lutar contra esse conservadorismo do TC?Sim, mas esse papel não me caberá a mim. Só quero alertar as consciências para aquilo que me parece aconselhável. Parece-me claro que o enriquecimento ilícito e injustificado seria um bom instrumento para atacar de vez a corrupção — que é um fenómeno que não só é percecionável como é altamente corrosivo da confiança dos cidadãos nas instituições democráticas. O sr. Presidente da República disse que já perdemos demasiado tempo com a discussão desta matéria. Estou completamente de acordo.

A decisão instrutória da Operação Marquês “marcou negativamente a nossa Justiça”

Falemos da fase de instrução. O seu antecessor, António Piçarra, defendeu uma reformulação profunda da fase de instrução criminal. Ou deixava de existir (o que obrigava a uma revisão constitucional) ou passava a ser uma fase em que apenas o assistente poderia contestar um arquivamento do Ministério Público. Concorda com estas ideias?
A instrução não pode ser um pré-julgamento, como defendeu o sr. conselheiro António Piçarra.

Essa crítica surgiu por causa da instrução criminal da Operação Marquês.
Exatamente. Essa visão da instrução como um local processual para fazer a avaliação de toda a prova, definindo a culpabilidade do arguido, não é correta. O sr. conselheiro Piçarra esteve muito bem em falar dessa questão. Essa altura [a leitura da decisão instrutória da Operação Marquês] marcou negativamente a nossa Justiça. Não pela decisão em si — não é isso que está causa. Mas sim pela forma como [a decisão instrutória] foi exibida — o que merece a minha crítica.

"Crítico como a Justiça foi exibida e a espectacularidade [da leitura da decisão instrutória da Operação Marquês]. A Justiça tem de ser feita de forma discreta no tribunal e sem holofotes.”
Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Critica porquê? Pela transmissão em direto da leitura da decisão instrutória?
Critico por causa da espetacularidade. A Justiça não é um espetáculo. A Justiça deve ser feita no tribunal…

Neste caso particular, e apesar de querer comunicar e dar transparência à leitura da decisão, foi o juiz de instrução Ivo Rosa que procurou de forma proativa essa espetacularidade.
A Justiça deve ser em feita de forma discreta, em tribunal e sem holofotes. Os cidadãos têm o direito a ser informados mas a Justiça não precisa de o fazer debaixo de holofotes.

O Ministério Público vai apresentar recurso sobre a decisão instrutória da Operação Marquês depois das férias judiciais, sendo que, após a contestação das defesas, o recurso deve entrar na Relação de Lisboa em janeiro. Pode dar-nos uma indicação sobre um prazo expectável para ter uma decisão da Relação?
Não posso fazer essa previsão.

Um tribunal de julgamento para os grandes casos? “É um caminho que deve ser ponderado”

O que lhe parece a proposta do Governo (que baixou à especialidade depois da aprovação na generalidade) para reformar o Tribunal Central de Instrução Criminal, promovendo uma fusão com o Juízo de Instrução Criminal de Lisboa e aumentando o quadro dos juízes para nove?
Parece-me uma boa solução e vem de encontro ao parecer emitido pelo Conselho Superior da Magistratura. Apenas questiono o seguinte: se não houvesse duas visões antagónicas sobre o valor da prova indireta e sobre a finalidade de fase de instrução, haveria esta discussão? De certo modo, questiono a oportunidade da decisão. Não deveria ser a circunstância concreta daqueles dois juízes que devia levar a uma decisão destas.

Há uma coincidência do timing com a decisão da instrução da Operação Marquês. Pensa que o poder político tomou essa decisão por causa desse caso?
A situação de bipolarização era insustentável.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Há uns anos houve uma grande reforma penal a reboque do caso Casa Pia.
Pois houve. Também houve o Pacto de Justiça [acordado entre PS e PSD]. Neste caso concreto, a situação era insustentável para a opinião pública — e a opinião pública conta muito, quer se queira, quer não. O que os cidadãos pensam sobre como funciona a Justiça e sobre imagem da Justiça deve sempre contar muito. Não havia outra alternativa, se não atuar agora. As razões para essa atuação é que não me parecem as mais corretas.

Ao fim e ao cabo, está a dizer que foi uma decisão tomada em função de dois juízes concretos — e não em função de uma visa estrutural do sistema.
Exatamente. A conceção estrutural do sistema esteve excluída da discussão. Foi uma solução ditada por razões pessoais e concretas de dois juízes.

O Tribunal Central de Instrução Criminal surgiu em 1999 e visa apostar na especialização do sistema judicial, visto que foi criado para acompanhar os processos do DCIAP. Tendo em conta a aposta na celeridade que defende, faz sentido concluir esse edifício jurídico que está na origem do Ticão e do DCIAP com um tribunal de julgamento de competência especializada e de competência territorial alargada para promover uma maior celeridade?
Ou seja, tentar encontrar um modelo equiparável ao espanhol.

"O problema constitucional num tribunal de julgamento dos grandes casos pode-se colocar. Vamos esperar para ver se há algum pacto de partidos com assento parlamentar para fazer a revisão constitucional que o país precisa neste momento."
Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Sim, como a Audiência Nacional espanhola.
Parece-me um caminho que pode ser ponderado. Os crimes de catálogo que fazem parte da competência material do Tribunal Central de Instrução Criminal e do DCIAP reclamam uma ‘especialização especializada’.

Parece-lhe que é uma solução que pode ter problemas constitucionais, devido à proibição de tribunais especiais?
O problema constitucional pode-se colocar. Vamos esperar para ver se há algum pacto de partidos com assento parlamentar para fazer a revisão constitucional de que o país precisa neste momento, nomeadamente na área da Justiça.

Estratégia Nacional Contra a Corrupção. “A Justiça não se negoceia”

A Estratégia Nacional Contra a Corrupção aposta num aprofundamento do direito premial na fase de inquérito e na justiça negociada, com os acordos de sentença entre o Ministério Público e os arguidos, na fase de julgamento. São medidas positivas ou podem colocar em causa o Estado de Direito, como acusa a Ordem dos Advogados?
É capaz de ser uma boa solução, mas tenho uma resistência pessoal e íntima sobre essa forma de tentar resolver questões relativas à corrupção e outro tipo de criminalidade através desses meios. A denúncia promovida pelo Estado como fator de celeridade e de investigação é um mau sinal que se dá à sociedade. Compreendo que exista muita dificuldade na perseguição da criminalidade económico-financeira mas os meios não podem justificar os fins. Tenho muitas reservas sobre essa matéria.

É de rutura com a nossa cultura judiciária?
Sim. É um sinal que o Estado dá: denunciem-se uns aos outros para termos aqui um resultado. É um sistema de delação importado do Brasil. Tenho muita resistência em relação isso, como também tenho sobre a justiça negociada, sobre os acordos de sentença. A Justiça não se negoceia. É a ideia que me foi incutida desde o início da minha formação jurídica. E eu sigo esse caminho. Mesmo quando a proposta de lei fixa o limite abstrato máximo da pena, mesmo nesse caso não se deve avançar por aí. Aliás, nem sequer está prevista a audição da vítima nesse tipo de acordos.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

As vítimas nos crimes económico-financeiros somos nós, os cidadãos, e o Estado.
Sim mas os acordos de sentença não são só para os crimes ligados à corrupção. São para qualquer tipo de crime. O princípio está errado.

Defende que devemos fazer uma aposta na celeridade do sistema judicial mas não é um princípio absoluto.
Sem dúvida. Sempre com respeito pelos princípios e valores da sociedade. Isso é básico.

A Estratégia aposta igualmente na prevenção, tentando promover uma consciencialização na sociedade em geral, setor público e privado, para a denúncia de fenomenos corruptivos e de conflitos de interesse. A Operação Lex alertou para a falha desses mecanismos no poder judicial. O Conselho Superior da Magistratura tem de apostar mais nessa área?
Tem e está a apostar mais na área de prevenção. Por exemplo, foi aprovado no último plenário do Conselho o regulamento das inspeções que prevê que os senhores inspetores se reúnam com os presidentes das comarcas trimestralmente para que sejam detetados casos patológicos. Outro exemplo são as declarações de rendimento dos magistrados, que já está em vigor desde 2019. E há outros exemplos para tentarmos detetar os desvios à norma.

"[A colaboração premiada] é um sinal errado que o Estado dá aos cidadãos: denunciem-se uns aos outros.”Tenho muita resistência sobre isso, como também tenho sobre os acordos de sentença. A Justiça não se negoceia. É a ideia que me foi incutida desde o início da minha formação jurídica.
Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça

A Operação Lex levou a decisões históricas em termos disciplinares. Aliás, na semana passada foi noticiada a aplicação de medidas de suspensão disciplinar a dois ex-presidentes da Relação de Lisboa. Esse escrutínio disciplinar intenso é para continuar?
Sem dúvida.

Crise pandémica. “Vamos ter uma crise económica e social. Vêm aí uma avalanche de processos”

No seu discurso de tomada de posse falou na “nuvem negra e espessa da situação pandémica”, cujas “marcas vão tardar a desaparecer”. O Governo tem divulgado dados positivos sobre a forma como a administração da Justiça lidou com os processos que ficaram atrasados na pandemia. Há um excesso de otimismo do Governo?
As pendências na área cível e comercial desceram 42% nos últimos cinco anos. Isso deve-se a muitos fatores e um deles é o aumento da produtividade dos juízes. Mas não se pode ter uma perspetiva otimista. O que vem aí é uma avalanche. Se não fosse assim, a redução das pendências podia ser estrutural.

Se o Estado levantar os apoios à economia, receia essa avalanche?
Acabando as moratórias dos créditos, os apoios às empresas, vem aí uma avalanche de processos. Começando pelas insolvências das empresas que ainda estão a trabalhar e a resistir, sabe-se lá como.

“O que vem aí é uma avalanche [de processos]. Não quero ser agoirento mas vem aí uma crise económica e social. Os tribunais têm de estar preparados.”
Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Que medidas preventivas podemos tomar?
Para já, as medidas preventivas podem ser tomadas em termos políticos, dando mais ajudas às empresas.

Tendo cuidado com a forma como se retira as medidas de apoio à economia?
Sim, poderá ser por aí. De resto, não sei como é que se poderá resolver isto. Não quero ser agoirento mas vem aí uma crise económica e social. Os tribunais têm de estar e vão estar preparados. Apesar de existir uma falta de recursos, que está a agravar-se de dia para dia. Outro exemplo é o envelhecimento da magistratura judicial. Há muitos juízes que se vão jubilar nos próximos tempos e, neste momento, a capacidade de formação do Centro de Estudos Judiciários ainda não é suficiente para colmatar essas saída. Acredito, contudo, que todos os juízes vão estar à altura dos acontecimentos e vão responder de forma positiva a esse desafio.

Alertou no seu discurso de tomada de posse para a necessidade de a Justiça comunicar melhor. Que inovações é que podemos esperar nesta área?
Está previsto aqui no Supremo Tribunal de Justiça a criação de um gabinete de comunicação. Não está criado, vou criá-lo para que possamos ter uma capacidade de comunicação muito superior à que temos hoje. As páginas na internet do Supremo e do Conselho também são bons meios para divulgarmos decisões e outras informações — também vamos apostar nessa área. Tenciono melhorar também a capacidade de comunicação do Conselho Superior da Magistratura através de reuniões regulares com a comunicação social para que se conheça e divulgue o que é decidido nos plenários. Parece-me que um briefing seria uma boa forma de informar os cidadãos sobre o que se passa no governos dos juízes.

Podemos contar com uma Justiça mais aberta e transparente?
Da minha parte, com toda a certeza.

[Veja aqui a entrevista na íntegra]

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