Para quem vive nas cidades de uma Ucrânia sob ataque da Rússia, há uma ameaça tão grande — ou até mais assustadora, porque mais próxima — quanto as guarnições militares de Moscovo que avançam sobre Kiev, Mariupol, Kharkiv ou Chernihiv: os sabotadores russos e os colaboracionistas.

Muitos são militares russos que entraram nas cidades ucranianas vestidos à civil para lançar o caos; outros são civis ucranianos pró-russos, que apoiam a investida de Moscovo sobre a Ucrânia. A ameaça não está apenas nas fileiras militares à porta das cidades — está, muitas vezes, nas próprias ruas onde os ucranianos tentam sobreviver como podem a uma guerra que está a arrasar o país e a deixá-lo sem alimentação, sem cuidados de saúde e sem economia.

Por esse motivo, mesmo nas regiões da Ucrânia onde o exército russo ainda não chegou, estão instalados o caos e a desconfiança. A este caos somam-se os múltiplos assaltos e saques aos supermercados e lojas das cidades — perpetrados por pequenos assaltantes ou, muitas vezes, simplesmente por ucranianos desesperados e com fome.

Com o país mergulhado num total caos social, começam a surgir relatos de casos de justiça pelas próprias mãos, alegadamente praticados por elementos das forças ucranianas e, em alguns casos, por civis. Várias imagens divulgadas nos últimos dias nas redes sociais mostram pessoas (alegadamente sabotadores russos, colaboracionistas ou saqueadores) de mãos atadas, amarradas a postes, semi-despidos e, em casos mais extremos, a serem violentamente agredidos.

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Múltiplos relatos dos jornalistas internacionais presentes na Ucrânia — incluindo dos enviados do Observador — dão conta de uma realidade de grande desconfiança. Por todo o lado, sobretudo em torno da capital, Kiev, há checkpoints geridos pelas forças ucranianas, onde qualquer cidadão em trânsito é meticulosamente escrutinado. Não só porque a lei marcial, em vigor no país, impede que os homens entre 18 e 60 anos de idade saiam do país (uma vez que têm o dever de estar prontos para a defesa militar da Ucrânia), mas também porque é urgente identificar potenciais sabotadores russos e colaboracionistas.

Os documentos de todos são cuidadosamente examinados por militares com atenção redobrada a quaisquer sinais de estranheza: alguém menos familiarizado com a língua ucraniana, aparentemente perdido nas ruas ou com comportamento suspeito é firmemente questionado. A malha foi apertada e o objetivo é claro: detetar os sabotadores russos antes de eles levarem a cabo as suas missões.

Se identificados e capturados, os sabotadores, colaboracionistas e saqueadores estão a receber um tratamento impiedoso, e em muitos casos atentatório dos direitos humanos, da parte dos ucranianos, como mostram várias imagens divulgadas nas redes sociais nos últimos dias.

O portal de notícias australiano News.com.au explica que uma grande parte das imagens gráficas divulgadas nos últimos dias tiveram origem num conjunto de tweets partilhados por uma conta que entretanto foi suspensa do Twitter por violar as regras inerentes à utilização da rede social. Ainda assim, a veracidade das imagens, muitas delas perturbadoras, é sustentada por vários relatos de meios de comunicação social globais, como as revistas Newsweek e Spectator ou a agência de fotografia Getty Images, de que o Observador é cliente.

De acordo com múltiplas imagens tornadas públicas na internet, pessoas acusadas de cometer roubos nas cidades invadidas pelo caos, bem como alegados sabotadores ou colaboracionistas, estão a ser publicamente humilhados através de um modus operandi particular: amarrados a postes ou sinais de trânsito com fita-cola e completamente despidos da cintura para baixo. Em muitos casos, as vítimas desta humilhação pública têm sido pintadas de verde na cara. Noutros, têm-se registado agressões violentas a estas pessoas, incluindo crianças e famílias inteiras, atadas a postes durante horas a fio.

Em muitas fotografias e vídeos, é possível ver ucranianos que envergam uma farda militar a cometer estes atos (se pertencem, de facto, às forças armadas do país, se são civis que pegaram em armas ou se pertencem a alguma milícia, não é possível confirmar). Nalgumas dessas imagens, fica claro que há civis furiosos envolvidos na prática das humilhações públicas — os chamados “vigilantes” públicos, que têm procurado punir, sem qualquer intervenção das autoridades oficiais, qualquer pessoa suspeita de colaborar com os russos ou de violar a lei marcial (incluindo, por exemplo, por comprar e vender bebidas alcoólicas, atualmente proibidas).

As imagens divulgadas nas redes sociais são sustentadas por relatos jornalísticos que chegam a partir da Ucrânia. “As fotografias espalham-se através de grupos de mensagens. Uma mostra um amontoado de supostos agentes russos presos numa estação de metro, juntamente com um ursinho de peluche esventrado, na qual escondiam munições”, descreve um jornalista ao serviço da revista britânica Spectator, depois de regressar de Kiev. “Os ucranianos acreditam que os sabotadores estão na maioria das cidades desde janeiro, a marcar as infraestruturas-chave e os alvos militares. Outra fotografia mostra um agente amarrado e amordaçado com fita cola. Jorra sangue da sua cabeça.”

O relato do jornalista Alex Glover continua: “Os saqueadores não se saem muito melhor. Um homem barrigudo tem os pulsos amarrados em torno de um poste e o cinto é usado para atar os joelhos contra o poste. As cuecas estão pelos tornozelos e sua expressão indica que ele já viu melhores dias. Outros saqueadores são forçados a despir-se na neve.”

Por seu turno, a agência Getty Images, que registou um destes momentos pela lente de um dos seus fotojornalistas, descreveu as imagens disponibilizadas aos meios de comunicação social do seguinte modo: “Um saqueador, que queria tornar os ataques russos contra cidades ucranianas numa oportunidade, foi capturado pelo povo e amarrado a um poste.” As fotografias mostram o homem com as calças pelos joelhos.

As imagens mais chocantes, contudo, são aquelas que mostram jovens e famílias inteiras amarradas a postes, com as caras pintadas de verde e sujeitas a maus tratos físicos. De acordo com a ONG checa Romea, que se dedica à defesa dos direitos das populações de etnia cigana, muitas destas pessoas são ciganos que teriam sido intercetados por vigilantes civis a cometer pequenos assaltos, como roubo de carteiras, e que foram “tratados desta maneira inaceitável”. A mesma ONG lança um alerta: “A propaganda russa tem estado a alegar que estas fotografias confirmam que existem neonazis no ativo na Ucrânia.”

“As pessoas nas fotografias já foram detidas várias vezes em Kiev por serem carteiristas. As suas fotografias foram tiradas e partilhadas em vários grupos onde esses casos são publicitados. Em Lviv há um grupo que se autointitula ‘Os Caçadores’, que perseguem pessoas ciganas envolvidas em carteirismo em lugares públicos”, disse o ativista ucraniano Julian Kondur, de etnia cigana, citado pela Romea. “A Rússia está a explorar isto para acusar a Ucrânia de, alegadamente, ser governada por neonazis. As imagens foram distribuídas no Telegram por uma conta gerida por agentes russos.

Mas essa ideia — de que as imagens partilhadas comprovam que a Ucrânia está a ser gerida por neonazis — não tem sustentação face aos dados disponíveis até este momento. A veracidade das imagens foi comprovada por diferentes órgãos de comunicação social que estão a acompanhar o conflito no terreno e que relatam os episódios de agressões físicas e humilhações públicas difundidos nas redes sociais. E Kiev apoia esses episódios? Não é possível sustentar tal afirmação, tal como não tem fundamento a alegação de que estes atos representam uma “Ucrânia nazi” — a expressão de que várias figuras pró-Kremlin se têm socorrido para defender a necessidade de assumida de Moscovo de “desnazificar” o país vizinho.