Em 31 dias de guerra na Ucrânia, provocada pela invasão militar da Rússia a este país, nunca o Presidente norte-americano tinha defendido claramente que o Vladimir Putin deveria ser deposto da presidência da Rússia. Sugeriu-o este sábado no final de um discurso em Varsóvia, na Polónia, país vizinho da Ucrânia e membro da NATO, quando disse: “Por amor de Deus, este homem não pode continuar no poder“.
A estratégia norte-americana relativamente ao Kremlin nunca tinha sido tão ostensiva no pedido de mudança da cabeça do regime. Até aqui, apesar das críticas contundentes a um líder político já descrito como “carniceiro” (ainda esta tarde) e “criminoso de guerra”, as autoridades norte-americanas nunca tinham defendido que a solução para terminar o conflito poderia passar pela saída de cena do Presidente russo. Alegavam, aliás, que cabia apenas ao povo russo decidir democraticamente quem queriam ter como Presidente, sem que os EUA tivessem direito de ingerência nessa escolha.
A posição anterior das autoridades norte-americanas foi a mesma adotada pelo Kremlin, que já respondeu à declaração mais importante de um longo discurso de Joe Biden (durou perto de uma hora), que se antevia histórico mas que não trouxe outros elementos novos sobre a forma como os EUA encaram a guerra na Ucrânia.A resposta chegou pelo porta-voz do regime russo, Dmitry Peskov, e foi citada pela CNN: “Isso não é algo que caiba ao Senhor Biden decidir. Deve ser apenas resultado da escolha das pessoas da Federação Russa”.
Também na sequência das declarações, a Casa Branca veio corrigir e clarificar o que Joe Biden queria dizer quando disse que Putin “não pode continuar no poder” — algo que já tinha feito, por exemplo, na véspera, relativamente a outras declarações. Um porta-voz da Casa Branca clarificou minutos depois do discurso de Biden este sábado: “O ponto do Presidente era que Putin não pode ter permissão para exercer o seu poder nos vizinhos ou na região. Ele não estava a discutir o poder de Putin na Rússia, ou uma mudança de regime”.
Batalha “não será vencida em dias, nem sequer em meses”
Falando em Varsóvia, na Polónia, num dia em que a Rússia atacou Lviv — cidade ucraniana próxima da fronteira polaca —, Joe Biden começou por citar uma famosa mensagem do antigo Papa polaco João Paulo II, que um ano depois de ser eleito Papa (em 1979) a expressou: “Não tenham medo”.De seguida, sugeriu que a guerra na Ucrânia não se resolverá a curto prazo: “Voltamos a travar uma grande batalha pela liberdade, uma batalha entre a democracia e a autocracia, entre a liberdade e a repressão. Esta batalha não será vencida em dias, nem sequer em meses. Precisamos de nos fortalecer para a longa luta que temos pela frente“. Nesta guerra que — como outras anteriormente — não é apenas militar, mas de princípios democráticos e modelos de regime, é “a Ucrânia e o seu povo” quem está “nas linhas da frente”.
“A minha mensagem para as pessoas da Ucrânia é a mesma que expressei hoje [sábado] ao ministro dos Negócios Estrangeiros e ao ministro da Defesa da Ucrânia, que creio que estão aqui esta noite: estamos convosco. Ponto final.”
Atualmente, a Rússia está a tentar “estrangular a democracia”, procurando fazê-lo já não apenas internamente, no seu território, mas “além dele”, disse Biden. O Presidente dos EUA fez questão de, entre recordar o que o país tem feito (desde logo nas sanções aplicadas e acordadas contra a Rússia e na ajuda humanitária à Ucrânia), desconstruir a narrativa do Kremlin sobre a necessidade da “intervenção militar” — isto é, da guerra — na Ucrânia.
Notando que Putin tem “o desplante” de dizer que a invasão era necessária para “desnazificar a Ucrânia”, contrapôs: “É uma mentira. É simplesmente cínico. E é também obsceno. O Presidente Zelensky foi eleito democraticamente. É judeu. A sua família paterna foi destruída pelo Holocausto Nazi. E Putin tem a audácia, como todos os autocratas que o antecederam tiveram”, de fazer essa declaração.
Do muro de Berlim à ânsia de Putin por “controlo e poder absolutos”
Numa alusão histórica e numa viagem pelo passado da Rússia e do xadrez das relações entre potências mundiais, Biden lembrou momentos anteriores da história em que “tanques soviéticos” ameaçaram os princípios democráticos ocidentais. Mas “a resistência continuou até que finalmente o muro de Berlim caiu e todos os muros da dominação soviética caíram. E as pessoas prevaleceram”.
O Presidente norte-americano refutou também a tese russa de que o alargamento da NATO a Leste foi um projeto “imperial” que teve como objetivo “desestabilizar a Rússia”. A NATO, apontou, “é uma aliança defensiva” e “nunca agiu com a intenção” de pressionar a Rússia.
Biden alegou ainda que a NATO e os EUA “trabalharam durante meses para evitar a guerra” mas Putin e o Kremlin, acrescentou, nunca quiseram outra coisa que não a guerra, desde o início do aumento da escala de tensão. “Dissemos repetidamente: ele vai atravessar a fronteira, vão atacar [a Ucrânia]. Sem qualquer justificação ou provocação, a Rússia escolheu a guerra”.
Putin, acrescentou, revelou “um dos impulsos humanos mais antigos: a utilização de força bruta e da desinformação para satisfazer a sua ânsia por poder e controlo absolutos”.
Um aviso explícito: “Nem pensem em avançar um centímetro para território da NATO”
Ainda no seu discurso em Varsóvia, o Presidente dos Estados Unidos da América quis deixar claro que “as forças americanas estão na Europa não para se envolver no conflito, mas para defender os nossos aliados na NATO”.
De seguida, deixa um aviso ao Kremlin e a Vladimir Putin: “Nem pensem em avançar e entrar num centímetro que seja do território da NATO”. Se o fizerem, os EUA, tal como os restantes países que fazem parte da NATO, vão defender coletivamente cada centímetro de território, prometeu Joe Biden.
Já aos países europeus, Biden deixou uma outra mensagem: “A Europa tem de acabar com a sua dependência dos combustíveis fósseis da Rússia. E nós, EUA, vamos ajudar”.
Para a população russa, que de acordo com estudos de opinião apoia maioritariamente a invasão à Ucrânia, o Presidente dos EUA quis deixar uma mensagem: “Vocês não são o nosso inimigo. Falei sempre diretamente e honestamente para vocês, povo russo, e deixem-me dizer algo que espero que consiga chegar até vós: recuso-me a acreditar que ficam felizes pela morte de crianças e avós inocentes ou que aceitem que hospitais, escolas e maternidades — pelo amor de Deus… — sejam repetidamente atacados por mísseis e bombas da Rússia”.
Antes do discurso, dissera: Putin acreditava conseguir “dividir a NATO”
Antes do discurso de esta tarde (hora de Portugal continental), o Presidente dos EUA, Joe Biden, prometera insistentemente que o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte, o documento fundador da NATO, é “um compromisso sagrado” para os Estados Unidos — e garantiu que os países da aliança atlântica vão permanecer unidos na resistência contra a Rússia, ao contrário do que queria Vladimir Putin.
“Creio que Vladimir Putin estava a contar dividir a NATO, separar o flanco leste do Ocidente, ser capaz de separar as nações com base na história passada“, dissera Biden nas declarações iniciais da sua reunião com o Presidente polaco, Andrzej Duda.
“No fim de contas, ele não o vai fazer.”Joe Biden está na fase final da sua viagem ao continente europeu, feita a propósito da guerra na Ucrânia. Depois de, na semana passada, ter estado em Bruxelas para as cimeiras da NATO, G7 e Conselho Europeu, Biden seguiu para a Polónia, onde visitou soldados norte-americanos mobilizados naquele país do leste europeu.
O Presidente norte-americano reuniu-se também com os ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa da Ucrânia, que se deslocaram a Varsóvia para encontros com os homólogos norte-americanos, antes de seguir para o palácio presidencial da capital polaca, para o encontro com o Presidente Andrzej Duda.“Os EUA consideram o artigo 5.º como um compromisso sagrado”, afirmara o Presidente dos Estados Unidos, referindo-se ao artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte, que define a NATO como uma aliança de “defesa coletiva” e determina que “um ataque contra um dos aliados é considerado como um ataque contra todos os aliados“.
Joe Biden já garantira portanto que um ataque contra algum país da NATO justificaria resposta de “todos os membros da NATO” — uma mensagem particularmente necessária na Polónia, país vizinho da Ucrânia e um dos mais vulneráveis a um possível alargamento da guerra lançada pela Rússia contra aquele país.“A NATO fica sempre, absolutamente, unida. Sem divisões nos nossos pontos de vista. Tudo o que fazemos, fazemos em uníssono“, afirmara Biden, reiterando várias vezes que o artigo 5.º é “uma obrigação sagrada”.
Ainda na sua primeira intervenção perante o Presidente polaco, Joe Biden elogiara a Polónia pelo esforço humanitário que está a fazer no acolhimento dos refugiados ucranianos, mas assegurara que a responsabilidade não cabe apenas à Polónia, mas a todo o mundo, em especial a todos os membros da NATO.“Reconhecemos que a Polónia está a ter uma responsabilidade muito grande, que não deve ser apenas da Polónia, mas de toda a NATO”, afirmara Biden, sublinhando que os EUA conhecem bem essa realidade:
“Temos, na nossa fronteira sul, milhares de pessoas por dia, literalmente, a tentar entrar nos EUA.““Acreditamos que os EUA devem fazer a sua parte também na Ucrânia, abrindo as nossas fronteiras a mais 100 mil pessoas“, acrescentara Joe Biden. Esta semana, a Casa Branca já tinha anunciado que os EUA acolheriam 100 mil refugiados ucranianos.
No início da intervenção, Joe Biden tinha lembrado as suas visitas anteriores à Polónia, na qualidade de senador e de vice-presidente dos EUA, e assinalara a importância da adesão da Polónia à NATO no que respeita à liberdade, à transparência dos governos e ao direito ao voto.“A capacidade da América de cumprir o seu papel noutros pontos do mundo assenta numa Europa unida e numa Europa segura“, dissera Biden, acrescentando que o mundo aprendeu com as “experiências tristes de duas guerras mundiais”.