A Ucrânia e a Rússia parecem estar finalmente a dar passos concretos para um acordo que possa conduzir ao fim do conflito armado. Depois do encontro entre as delegações dos dois países, que teve lugar esta manhã em Istambul (Turquia), as duas nações falaram na possibilidade de, por fim, haver um encontro entre os presidentes russo e ucraniano.

O negociador ucraniano, Mykhailo Podolyak, afirmou que “os resultados” da reunião desta manhã “são suficientes para um encontro entre líderes”. Uma ideia que também foi avançada pela delegação russa, citada pela agência RIA, mas a ter lugar apenas quando os ministros dos Negócios Estrangeiros estivessem prontos para assinar um acordo.

Há várias semanas que o líder ucraniano, Volodymyr Zelensky, tem pedido um encontro com o seu homólogo, mas essa ideia nunca teve luz verde por parte da Rússia.

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Kiev poderá aceitar neutralidade em troca de “garantias de segurança”

Os membros da delegação da Ucrânia, citados pelo jornal britânico The Guardian, adiantaram que, durante a reunião, foram debatidas as “garantias de segurança”: Kiev terá admitido adotar o estatuto de neutralidade — ou seja, não aderir a alianças militares ou acolher bases militares no país — em troca de garantias de segurança por parte de outros países. No entanto, ressalva a Ucrânia, esse passo só poderá ser dado se for assinado um acordo para o cessar-fogo e se Moscovo retirar as suas tropas da Ucrânia.

Este tratado sobre garantias de segurança só poderá ser assinado após um cessar-fogo e a retirada completa das tropas russas para as suas posições a 23 de fevereiro de 2022″, afirmou Podolyak, citado pela CNN.

Um outro negociador ucraniano foi mais longe: “Insistimos em que isto [as garantias de segurança] seja um tratado internacional”, disse David Arakhamia, acrescentando que este acordo seria semelhante ao artigo 5.º da NATO — em que outros países estão obrigados a responder em caso de um novo ataque. E indicou ainda que os países garantes seriam os “membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU”, além da Turquia, a Alemanha, o Canadá, a Itália, a Polónia e Israel.

Este acordo de garantias de segurança teria de incluir, segundo um terceiro elemento da delegação ucraniana, um prazo de três dias. Isto é, no caso de um ataque à Ucrânia, se ao fim desse tempo não for possível chegar a um acordo diplomático, os países garantes da segurança avançariam com ajuda militar.

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“Se conseguirmos consolidar [a segurança da Ucrânia], que é um requisito fundamental para nós, a Ucrânia estará de facto em posição de fixar o seu estatuto de não-alinhado e não-nuclear sob a forma de neutralidade permanente“, disse Oleksandr Chalyi às televisões ucranianas, sublinhando, contudo, que nenhuma destas questões poderá negar o acesso à União Europeia.

Os países garantes comprometem-se também a facilitar este processo”, acrescentou.

Vladimir Medinsky, negociador-chefe de Moscovo, disse que Moscovo não se iria opor à entrada da Ucrânia na União Europeia, indicou a Reuters, O Financial Times dava ainda conta, esta manhã, de que a Rússia não se iria opor à entrada da Ucrânia na União Europeia, mas com uma condição: Kiev teria de desistir da adesão à NATO — cedência que o presidente da Ucrânia já disse estar disposto a aceitar.

A proposta de neutralidade da Ucrânia inclui ainda um período de consulta de 15 anos em relação à anexação da Crimeia, que só entrará em vigor com a assinatura de um cessar-fogo: “Foi acordado em formato bilateral fazer uma pausa de 15 anos e ter conversações bilaterais sobre o estatuto dos territórios da Crimeira e de Sevastopol”, indicou Podolyak, citado pela CNN, sendo que durante esse período não poderá haver “hostilidades militares”.

O caso das províncias de Donetsk e de Luganks são vistas pelos ucranianos como “uma questão ligeiramente diferente”, que por isso será resolvida entre os líderes da Ucrânia e da Rússia, referiram os membros dessa delegação.

O cessar-fogo foi outra das questões discutidas, “para que todos os problemas humanitários possam ser resolvidos”, disse Podolyak, citado pela CNN.

Podolyak sublinhou, no entanto, que esta questão da neutralidade terá ainda de ser alvo de um referendo no país. “Será um referendo em que todos os cidadãos da Ucrânia irão expressar a sua posição sobre este acordo, sobre como deve funcionar”, disse o conselheiro de Zelensky. Só depois de ser aprovado é que este acordo será ratificado pelos parlamentos dos países garantes e da Ucrânia.

Rússia reduz “radicalmente atividade militar” perto de Kiev

Em comparação com a Ucrânia, pouco foi avançado sobre a posição da Rússia. Além de estar disposta a um acordo entre líderes, Moscovo disse que iria reduzir “radicalmente” a atividade militar em Chernihiv e perto de Kiev. O vice-ministro da Defesa da Rússia, Alexander Fomin, referiu que esta redução tem como objetivo “aumentar a confiança” durante as negociações entre a Rússia e a Ucrânia. No entanto, Fomin não fez referência a locais que têm sido alvo de fortes ataques por parte das forças russas, como Mariupol ou Kharkiv, lê-se na Reuters.

Vemos com satisfação que os dois lados estão a aproximar-se”, afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Mevlut Çavusoglu, numa conferência de imprensa após o encontro.

O objetivo da Turquia agora é (mais) um encontro entre os ministros dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia e da Rússia e depois, eventualmente, um encontro entre Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky.

Erdogan e Abramovich marcam presença no encontro

O encontro desta terça-feira começou com uma intervenção do presidente da Turquia. De acordo com membros da delegação da Ucrânia, Recep Tayyip Erdogan apelou a um cessar-fogo imediato, sublinhando a “responsabilidade histórica” destas delegações quanto às decisões que forem tomadas nesta reunião.

Continuar a guerra não beneficia ninguém. Repor a paz beneficia os vossos países e os outros”, afirmou o líder turco, citado pelo negociador Mykhailo Podolyak na sua página de Twitter.

Quem também estará presente nestas negociações é Roman Abramovich, (ainda) dono do clube de futebol britânico Chelsea. O jornalista Financial Times, Max Seddon, partilhou uma fotografia onde é possível ver o russo com Erdogan antes do início do encontro entre as delegações ucraniana e russa — esta última adiantou que Abramovich não fazia parte da sua equipa.

Segundo o jornal britânico Guardian, o russo terá tido várias reuniões paralelas em Istambul, anteriores à que se realizou esta manhã, com o Rustem Umerov, membro da delegação da Ucrânia, e com o conselheiro turco, Ibrahim Kalin. Após o encontro desta manhã entre as delegações, Abramovich seguiu com dois negociadores ucranianos, David Arakhamia e Umerov, e com o ministro da Defesa da Ucrânia, Olekseii Reznikov, para um restaurante no hotel Shangri-La, refere o Guardian.

O Kremlin confirmou, na semana passada, a presença de Abramovich nos encontros iniciais e, já esta segunda-feira, foi avançado que o oligarca russo — que tem nacionalidade portuguesa — teria tido sintomas de envenenamento após ter participado num encontro, entre 3 e 4 de março, no âmbito das negociações para a paz na Ucrânia.

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Entretanto, Moscovo — acusada de estar na origem do alegado incidente — descartou as suspeitas de envenenamento e Kiev também desvalorizou o caso, falando em “teorias da conspiração” e “informação não verificada”.

Como se chegou a este encontro?

Depois de várias informações contraditórias, esta segunda-feira ficou marcado para o dia seguinte, terça-feira, 29 de março, em Istambul (Turquia), um novo encontro presencial entre as delegações da Ucrânia e da Rússia. Na véspera, o presidente da Ucrânia tinha confirmado esta nova ronda negocial, sublinhando o “objetivo claro” do país: “A paz e a restauração da vida normal o mais depressa possível.

As nossas prioridades nas negociações são conhecidas. A soberania e a integridade territorial da Ucrânia não são questionáveis. As garantias efetivas de segurança para o nosso Estado são obrigatórias”, lê-se na legenda de um vídeo divulgado por Volodymyr Zelensky no seu canal de Telegram, na noite de domingo.

Ainda assim, numa entrevista à revista The Economist, o líder ucraniano falou em possíveis “compromissos” a serem feitos para se alcançar a paz no país. “A vitória é salvar o maior número de vidas possível, porque sem isso nada faz sentido. A nossa terra é importante, sim, mas no final de contas é apenas território.”

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Ainda esta segunda-feira, um responsável do governo ucraniano considerou que a Turquia poderia ser um dos países a dar garantias de segurança a Kiev como parte de um acordo com a Rússia para acabar com a guerra. “A Turquia é um dos países que podem tornar-se garantes da nossa segurança no futuro”, afirmou Ihor Zhovkva, vice-chefe do gabinete de Zelensky.

Já a Rússia descartou um encontro entre Putin e Zelensky nesta fase, considerando que seria “contraproducente“.

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O que aconteceu em um mês de negociações?

“[Negociações] não estão fáceis”. “Difícil”. “Muito difícil”. Estas foram as palavras mais utilizadas pela Ucrânia e pela Rússia para descrever as várias rondas negociais que decorrem há mais de um mês — e que até agora não se concretizou num cessar-fogo ou no final da guerra.

O encontro desta terça-feira é a quarta reunião presencial entre as delegações russa e ucraniana e a segunda em solo turco. Os três primeiros encontros ocorreram dias depois do início do conflito, na Bielorrússia:

  • 28 de fevereiro, em Gomel;
  • 29 de fevereiro, em Brest;
  • 7 de março, em Brest.

Só no último encontro é que os corredores humanitários, estabelecidos na reunião, foram respeitados pela Rússia. Ainda assim, os bombardeamentos não pararam.

É a 10 de março que se dá um encontro com altos representantes do governo das duas nações, na Turquia. Dmytro Kuleba e Sergey Lavrov, ministros dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia e da Rússia, encontraram-se à margem do Fórum Diplomático de Antalya, mas nem assim houve um vislumbre de acordo relativamente ao cessar-fogo.

A partir desta altura, as negociações passaram para um formato online, sendo que a delegação ucraniana tinha uma missão muito específica para a qual tinha sido incumbida pelo presidente da Ucrânia: “fazer de tudo” para que houvesse um encontro entre Zelensky e Putin. Mykhailo Podolyak, um dos negociadores ucranianos e conselheiro de Zelensky, adiantou, a 12 de março, que foram criados “subgrupos especiais de trabalho”.

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Mas só a 16 de março — mais de duas semanas depois do primeiro encontro — começaram a surgir os primeiros finais de fumo branco. Nesse dia, o Financial Times noticiou que os dois países tinham elaborado um plano de paz provisório com pelo menos 15 pontos. Apesar de Kiev ter alertado que a notícia só tinha em conta “a posição reivindicada pelo lado russo”, ficaram conhecidas algumas contrapartidas para a Ucrânia:

  • Declarar-se neutral;
  • Renunciar à adesão à NATO;
  • Aceitar limites para as suas forças armadas;
  • Não ter bases militares estrangeiras ou armamento, em troca de proteção de países aliados.

Do lado ucraniano, as exigências feitas a Moscovo passariam obrigatoriamente por um cessar-fogo e a retirada dos militares russos da Ucrânia, avançou Podolyak, que numa entrevista anunciou que o cessar-fogo estaria para breve, sublinhando que a Rússia tem “suavizado” as suas posições. Esse cessar-fogo acabou por não se verificar e os bombardeamentos continuaram — e continuam — em vários pontos da Ucrânia.

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Estas boas notícias acabariam, contudo, por durar pouco. No dia seguinte, a 17 de março, a Rússia veio dizer que a notícia do Financial Times estava errada, sendo que um responsável da diplomacia dos Estados Unidos adiantou que continuava a existir “um fosso muito grande” entre as posições da Ucrânia e da Rússia. Do lado de Kiev, Podolyak avançou que os dois países estavam a estudar uma “fórmula legal” para acomodar o estatuto das regiões de Donetsk e Lugansk.

A partir desse dia, a luz ao fundo do túnel para a paz na Ucrânia começou a ficar cada vez mais ténue, com Moscovo a dar como certa a neutralidade de Kiev e com a Ucrânia a garantir que a posição do país não mudou.

Ao longo destes dias, Zelensky insistiu por diversas vezes num encontro com Putin, mas o líder russo nunca se mostrou totalmente disponível para esta reunião. Para a Turquia, esse encontro só seria possível, quando houvesse paz.

Ancara assumiu desde cedo o papel de mediador deste conflito. O ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Mevlut Çavusoglu, esteve em Moscovo a 16 de março para uma reunião com o seu homólogo e, no dia seguinte, foi até Lviv para um encontro com Kuleba, MNE da Ucrânia. Nessa altura, o governo de Erdogan estava a tentar promover um encontro entre os presidentes da Rússia e da Ucrânia e manifestava esperança num cessar-fogo. Dias mais tarde, o porta-voz do governo turco dava conta das seis questões em cima da mesa de negociações:

  • A neutralidade da Ucrânia — ou seja, a Ucrânia não entrar na NATO;
  • O desarmamento e as garantias mútuas de segurança;
  • O processo a que a Rússia chama “desnazificação”;
  • A remoção de obstáculos à utilização generalizada da língua russa na Ucrânia;
  • O estatuto do Donbass— cuja independência foi reconhecida por Putin três dias antes do início da invasão;
  • E o estatuto da Crimeia — anexada pela Rússia em 2014.

Antes desta revelação, o presidente da Ucrânia já tinha dito que estaria disposto a abdicar da entrada na NATO, mas em troca de um cessar-fogo, uma retirada das tropas russas do país e uma garantia de segurança da Ucrânia.

As negociações continuaram a decorrer em formato online, com Zelensky a descrever as exigências russas como “escandalosas” e a Rússia a não descartar o uso de armas nucleares no conflito.

Até que a 24 de março surge uma data para o final da guerra: 9 de maio, dia em que a Rússia derrotou a Alemanha nazi. A data, de acordo com os serviços secretos ligados às Forças Armadas da Ucrânia, estaria a ser avançada aos militares russos. O dia ficou ainda marcado pelos encontros da NATO, do G7 e da União Europeia, que prometeram continuar a apoiar a Ucrânia, em particular com equipamento militar.

Para saber em mais detalhe o que aconteceu em cada reunião, pode consultar este diário do primeiro mês de negociações.

Ucrânia-Rússia. O que se alcançou e o que falhou nas negociações, 30 dias após o início do conflito