A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood abriu um processo disciplinar contra o ator Will Smith esta quarta-feira pelo comportamento do ator na 94.ª cerimónia de entrega dos Óscares.
O processo foi aberto contra o ator “por violar a conduta da Academia, incluindo o uso inapropriado de contacto físico, comportamento abusivo ou ameaçador, e por comprometer a integridade da Academia“, explicou a instituição cinematográfica num comunicado.
Debatido novamente pelo Conselho da Academia no dia 18 de abril, o processo poderá resultar em sanções contra Will Smith — e que podem, em último caso, implicar a sua expulsão ou suspensão da instituição que atribui os Óscares, ou a retirada do prémio de Melhor Ator.
Até hoje, nenhum Óscar foi retirado por motivos de conduta pessoal, conta o The Warp. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood apenas reivindicou por uma vez o direito a retirar um prémio, e tal aconteceu há mais de 50 anos.
A longa-metragem “Young Americans” ganhou, em 1969, o prémio de Melhor Documentário, por acompanhar um grupo coral de jovens americanos numa digressão pelos Estados Unidos da América. Veio a descobrir-se, contudo, que o filme tinha sido exibido publicamente em outubro de 1967, o que, tecnicamente, significou que o documentário apenas poderia ter concorrido aos Óscares de 1968 e não de 1969. O prémio foi retirado ao documentário três semanas depois da cerimónia de entrega de prémios, e atribuído ao segundo mais votado pelo júri — “Journey Into Self”.
Embora nenhum Óscar tenha sido retirado a um ator, vários profissionais da indústria cinematográfica foram expulsos da Academia, e três terão recusado receber o galardão máximo do cinema.
O Código de Conduta da Academia foi reestruturado há quatro anos, com a consolidação do movimento MeToo. Assim, a agressão praticada por Will Smith poderá ser enquadrada em diversas partes do código de conduta, desde desrespeito pela “dignidade humana, inclusão e ambiente de apoio” a membros, ao “abuso de estatuto, poder ou influência de um modo que viole os padrões de de decência reconhecidos“.
A grande maioria dos elementos expulsos da Academia estiveram envolvidos em crimes de teor sexual, pelo que a agressão sofrida por Chris Rock na madrugada de segunda-feira abrirá um novo precedente na instituição, não se tendo ainda ‘julgado’ nenhum membro por agressão física.
Cinco pessoas ligadas à indústria cinematográfica já foram expulsas da Academia:
Carmine Caridi (2004)
O ator, que entrou no filme “O Padrinho Parte II”, foi o primeiro elemento do mundo cinematográfico a ser expulso da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, conta o The Independent.
Carmine foi expulso em 2004 após produzir e divulgar cópias de cassetes VCR com filmes ainda por estrear. Após uma investigação do FBI, as autoridades norte-americanas alegaram que, durante pelo menos três anos, o ator terá fornecido 200 cópias de pelo menos 60 filmes diferentes a Russel Sprague.
O caso, segundo explica o Departamento de Justiça dos EUA, resulta de “uma investigação a publicações na internet de sete filmes que tinham sido nomeados para os Prémios da Academia”. Uma análise forense aos filmes permitiu rastrear o seu percurso até Carmine Caridi, que trocou o nome de Russel Sprague pela sua imunidade. Ainda assim, o ator foi processado pela Columbia Pictures e pela Warner Bros.
Harvey Weinstein (2017)
Um dos rostos mais visados pelo movimento MeToo, o antigo produtor de Hollywood foi expulso em 2017, um mês depois da publicação da reportagem de investigação do New York Times que deu conta dos vários crimes de assédio sexual de que Weinstein foi acusado.
O Conselho da Academia, na altura da expulsão, explicou que a decisão era “não apenas para separar a Academia de alguém que não merece o respeito dos seus colegas“. A instituição pretendia transmitir uma mensagem em como “uma era de ignorância intencional e cumplicidade vergonhosa sobre o comportamento sexual predatório e o assédio no local de trabalho na indústria [cinematográfica] chegou ao fim”.
Em 2020, Harvey Weinstein foi condenado a 23 anos de prisão pelos crimes de ato sexual criminoso em primeiro grau e de violação em terceiro grau (relacionado com a falta de consentimento).
Bill Cosby (2018)
O ator foi expulso da Academia em 2018, um mês depois de ter sido declarado culpado pelo crime de agressão sexual. Bill Cosby teria, em 2004, drogado e agredido sexualmente Andrea Constand.
Supremo Tribunal nega recurso e encerra caso de agressão sexual de Bill Cosby
Bill Cosby acumulou uma fortuna estimada em 400 milhões de dólares ao longo dos seus 50 anos na indústria do entretenimento.
Roman Polanski (2018)
O realizador, conhecido por filmes como “O Pianista” e “Chinatown”, foi expulso da Academia no mesmo ano que Cosby, mas a sua saída da instituição foi impulsionada pelo movimento MeToo iniciado com o caso de Harvey Weinstein.
Em 1977, Roman Polanski declarou-se culpado de práticas sexuais com uma menor de 13 anos, tendo então viajado para França (uma vez que a sua presença nos EUA implicaria a sua detenção). Tal não impediu que a Academia atribuísse a Polanski o prémio de Melhor Realizador pelo filme “O Pianista”. O realizador, estando em França, não pôde receber o prémio pessoalmente, explica o Cleveland.
Em 2018, contudo, pressionada pelo movimento MeToo, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood decidiu expulsar o realizador. Roman Polanski tentou processar a Academia pela decisão, mas perdeu o caso.
Adam Kimmel (2021)
O cinéfilo por trás de filmes como “Capote” e “Lars e o Verdadeiro Amor” foi expulso da Academia em 2021, depois de se saber que Adam Kimmel era um predador sexual registado nos Estados Unidos da América.
Em 2003, Kimmel foi detido e declarado culpado de agressão sexual em terceiro grau de uma menor. A segunda detenção, também envolvendo uma menor, deu-se em 2010, e Adam Kimmel foi condenado por ter falhado no seu registo enquanto predador sexual.
Nem só de expulsões se pinta a tela que retrata a Academia
Como já se viu com o caso de Roman Polanski, a Academia, embora tenha expulsado alguns elementos da instituição, também tem a sua quota parte de momentos questionáveis.
Um desses casos deu-se na cerimónia de entrega de prémios de 2017, e envolveu o ator Casey Affleck, irmão do também ator e realizador Ben Affleck, e vencedor do prémio de Melhor Ator pela sua participação no filme “Manchester By The Sea”.
Na altura, o galardão foi entregue a Casey Affleck pela atriz Brie Larson, que não aplaudiu, ao contrário da plateia, o ator pela conquista do troféu. Tal poderá ter que ver com o facto de a atriz ter representado uma vítima de violação em “Room”, no que poderá ter sido um ato silencioso de protesto contra a entrega do prémio a Affleck, acusado de assédio sexual durante a filmagem do filme “I’m Still Here” — o caso, explica o The Warp, foi resolvido fora dos tribunais.
A tradição dita que os vencedores de uma edição apresentem a entrega dos prémios na edição seguinte dos Óscares. Casey Affleck, contudo, optou por não integrar os apresentadores dos Óscares de 2018. A Academia, perante a desistência de Affleck, afirmou num comunicado que “apreciava a decisão de manter o foco na cerimónia”.
Este gesto, embora possa ser tido como o ‘mais leve’ de entre as sanções (ou opções) possíveis, é algo que poderá ser copiado por Will Smith na edição de 2023.
Outro momento onde a Academia foi palco de um marco, não só reprovável, como apoiado pela instituição, deu-se há mais de 80 anos, e tem que ver com aquele que é considerado um dos maiores clássicos do cinema: “E Tudo o Vento Levou“.
A atriz Hattie McDaniel, que representou o papel de “Mammy” na longa-metragem, tornou-se na primeira atriz afro-americana a receber um Óscar.
O momento, embora histórico pelo seu marco na indústria do cinema, foi pautado por racismo e segregação. À atriz foi apenas permitido participar na cerimónia depois da pressão feita pelos produtores do filme à instituição. Na gala, Hattie McDaniel teve de sentar-se à parte dos restantes elementos da cerimónia, numa mesa ‘própria’ para si.