A comissão independente que está a investigar os abusos sexuais de menores na Igreja Católica ao longo das últimas décadas revelou esta terça-feira que já recebeu 290 testemunhos válidos, tendo confirmado que desde a década de 1950 até aos dias de hoje “houve claras situações de graves abusos sexuais cometidos no interior da Igreja Católica portuguesa”.

Foi também possível encontrar indícios de encobrimento de casos de abuso sexual de menores por parte da hierarquia eclesiástica ao longo das últimas décadas, incluindo por bispos portugueses que ainda se encontram hoje no ativo.

Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” com sobre as suspeitas de abusos de menores na Igreja.

Qual é a real dimensão dos abusos sexuais de menores na Igreja em Portugal?

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A informação foi adiantada pela comissão independente durante uma conferência de imprensa realizada na manhã desta terça-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, para dar conta do trabalho realizado nos primeiros três meses de funcionamento do organismo criado por decisão da Conferência Episcopal Portuguesa.

Na conferência de imprensa, o coordenador da comissão, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, recordou que “foi por uma iniciativa da Conferência Episcopal Portuguesa que esta comissão se organizou” e que, nesta fase, já é “possível dar uma resposta concreta à Igreja Católica a partir do seu interesse e sobretudo da coragem revelada em fomentar este estudo“.

Essa resposta, disse Strecht, materializa-se “confirmando que no passado houve múltiplos casos de abusos sexuais de menores que estavam entregues” aos elementos da Igreja “ou que com eles contactam de forma regular ou esporádica”, como na catequese, escuteiros, grupos de jovens e outros.

“Começa a ser expectável que se possa vir a materializar o que as vítimas precisam”, disse Pedro Strecht. “Um inequívoco pedido de desculpas, honrando a dignidade humana daqueles que a reclamam.”

Dado o recado à hierarquia da Igreja Católica, ao longo da conferência, a comissão adiantou vários detalhes sobre os testemunhos recolhidos ao longo dos três primeiros meses de trabalho:

Os 290 testemunhos contabilizados são apenas os validados. Excluem-se desta estatística os inquéritos preenchidos em duplicado, os inquéritos que se situam fora do âmbito da investigação e ainda alguns inquéritos preenchidos com insultos que foram recebidos pela comissão.

A comissão já entregou pessoalmente 16 casos ao Ministério Público. São casos em que, devido ao momento em que ocorreram, poderá ainda não se ter esgotado o prazo de prescrição, motivo pelo qual ainda poderão ser investigados pelas autoridades civis. Todos os casos, garantiu a comissão, são individualmente avaliados para discernir a possibilidade de serem ou não enviados às autoridades. Álvaro Laborinho Lúcio, juiz jubilado e membro da comissão, explicou que “a falta de datas exatas” é um dos principais obstáculos no processo, uma vez que em alguns casos é impossível perceber se determinado crime ainda pode ou não ser investigado pelas autoridades. Por isso, sublinhou, não é estranho que apenas 16 casos em 290 tenham sido enviados ao MP. Ainda assim, disse Laborinho Lúcio, existe uma “troca constante de informação” entre a comissão e as autoridades.

Mais de metade dos casos têm possibilidade ou alta probabilidade de incluir mais vítimas. A comissão explicou que, com base nos dados atualmente recolhidos, não é possível confirmar se a 290 vítimas correspondem necessariamente 290 abusadores. Há casos em que os abusadores não são diretamente nomeados, há outros casos que se referem ao mesmo abusador e há ainda dúvidas sobre a identidade de vários dos agressores.

Abusos de menores na Igreja. Comissão encontrou indícios de encobrimento e ocultação por bispos no ativo

As vítimas têm hoje entre 13 e 88 anos de idade — e houve casos de abuso de crianças de 2 anos. A comissão deu vários dados sobre o universo de vítimas identificadas até agora. Segundo a socióloga Ana Nunes de Almeida, que integra o grupo, estão representadas todas as regiões do país e todos os grupos etários, desde uma vítima nascida em 2009 a uma vítima nascida em 1934. As idades em que aconteceu o primeiro abuso sexual variam entre os 2 e os 17 anos. Além disso, embora haja vítimas de ambos os sexos, existe uma clara predominância de vítimas do sexo masculino. Quanto à escolaridade, todos os níveis de instrução estão representados na amostra, desde a antiga instrução primária até ao doutoramento.

A esmagadora maioria dos abusadores são homens e trabalham diretamente para a Igreja. A comissão não revelou dados concretos sobre o perfil dos abusadores, mas afirmou que a esmagadora maioria são homens (embora também existam mulheres) e trabalham diretamente para a Igreja Católica, seja como padres ou outro tipo de funcionários. “É perfeitamente possível distinguir o estatuto em relação à igreja de todas as pessoas abusadoras”, disse Ana Nunes de Almeida. Contudo, a comissão não avançou estatísticas por ser impossível determinar um número exato de sacerdotes abusadores. “A maioria dos abusadores são pessoas diretamente ligadas à Igreja, a trabalhar para a Igreja”, e não apenas leigos, afirmou Pedro Strecht.

Já foram identificados indícios de encobrimento de casos por parte de bispos no ativo. Além de estar a identificar casos de abuso sexual de menores, a comissão está também a analisar o modo como a Igreja Católica lidou com eventuais denúncias que lhe tenham chegado nas últimas décadas. “Há situações em que nos apercebemos da tal situação de encobrimento e ocultação”, disse Pedro Strecht, sublinhando que existem “mecanismos de defesa, negação, projeção, deslocamento” nas instituições. “Existia muito a prática da deslocação da pessoa abusadora de local para local, como se anteriormente o local fosse visto como o determinante, e não a pessoa em si”, clarificou o coordenador da comissão. “Temos referência a bispos anteriores e bispos no ativo.”

Há relatos de abusos alegadamente cometidos em escolas públicas. A comissão confirmou que existem vários relatos que dizem respeito a escolas católicas, ligadas a ordens e congregações religiosas em Portugal, mas também em escolas da rede pública, nomeadamente por parte de pessoas da Igreja ligadas ao ensino, por exemplo, professores de Religião e Moral.

A comissão criou uma equipa científica para consultar os arquivos da Igreja. A equipa vai ser liderada pelo historiador Francisco Azevedo Mendes, da Universidade do Minho, e contará com a colaboração de vários especialistas das áreas da história e dos arquivos. O grupo de trabalho já está no terreno e irá consultar os arquivos das dioceses portuguesas em busca de indícios de casos de abuso sexual de menores ou de encobrimento de crimes por parte da hierarquia.

Os bispos portugueses não são unânimes na disponibilidade para ajudar a comissão. De acordo com Ana Nunes de Almeida, a comissão independente pretende reunir-se individualmente com todos os bispos portugueses para avaliar a situação em cada uma das 21 dioceses católicas do país. Porém, após duas rondas de pedidos de reunião, a comissão ainda só conseguiu reunir-se com 11 bispos, estando uma reunião com um outro bispo agendada para esta quarta-feira. Quatro bispos disponibilizaram-se para uma reunião, mas ainda não foi possível marcá-la por motivos de agenda. Contudo, cinco bispos não responderam de todo à comissão. Já depois da conferência de imprensa, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, garantiu ao Observador através do seu porta-voz que todos os bispos vão colaborar com a comissão independente.

Abusos na Igreja. Presidente da Conferência Episcopal garante que todos os bispos vão aceitar reunir-se com comissão independente

Apesar disso, a comissão está confiante na colaboração da Igreja. No entender de Álvaro Laborinho Lúcio, “a Igreja tem, com certeza, todo o interesse” em ajudar a comissão e seria “bizarro” se assim não fosse, uma vez que foi a própria Igreja a tomar a iniciativa de convocar uma comissão para o efeito. Até porque, diz de modo contundente, os elementos já existentes “permitem ter uma primeira visão global” de que, “ao longo destes anos, houve claras situações de graves abusos sexuais cometidos no interior da Igreja Católica portuguesa”. Pedro Strecht, por seu turno, garantiu que, mesmo entre os bispos mais reticentes em colaborar, “as pessoas vão percebendo que temos de estar do mesmo lado” e que as resistências se têm vindo a quebrar (embora não tenha revelado nomes).

A comissão independente foi anunciada em novembro do ano passado quando, ao fim de quase quatro décadas de escândalos de abusos na Igreja em todo o mundo e sobretudo na sequência da reforma que o Papa Francisco tem promovido dentro da Igreja desde 2018, a Conferência Episcopal Portuguesa decidiu confiar a uma comissão independente uma investigação histórica sobre os abusos sexuais de menores na Igreja em Portugal, à semelhança do que tem acontecido em vários países. Ainda em novembro, foi anunciado que o pedopsiquiatra Pedro Strecht, o especialista nas questões da infância e adolescência que ganhou especial notoriedade por ter sido o médico que acompanhou as vítimas do caso Casa Pia, tinha sido convidado pela Igreja portuguesa para coordenar esta comissão.

Abusos na Igreja. Comissão já encontrou indícios de encobrimento. Maioria dos casos já prescreveu e vítimas são predominantemente rapazes

Em janeiroa comissão independente entrou em funcionamento, começando a recolher testemunhos e a consultar arquivos eclesiásticos, de modo a pintar um retrato tão real quanto possível sobre a história dos abusos de menores na Igreja em Portugal ao longo das últimas décadas. Nas primeiras semanas, o número de testemunhos recolhidos pela comissão já superava os 200. Espera-se que o relatório final da comissão esteja pronto ainda este ano e seja divulgado em dezembro.

A comissão é composta pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, pela socióloga Ana Nunes de Almeida, pelo psiquiatra Daniel Sampaio, pelo juiz jubilado Álvaro Laborinho Lúcio, pela assistente social Filipa Tavares e pela cineasta Catarina Vasconcelos. O grupo de trabalho está disponível para receber testemunhos através do contacto 91 711 00 00 e de várias outras formas de contacto disponíveis na página da comissão na internet.