“A pátria pode sobreviver aos pontos um e dois, pode não sobreviver aos quatro e cinco”. A ironia era do presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros no Parlamento, o socialista Sérgio Sousa Pinto. Os pontos um e dois que os deputados da comissão iam votar esta terça-feira tinham a ver com questões formais e de regimento; os quatro e cinco eram sobre vários votos, alguns deles contraditórios, sobre a guerra na Ucrânia.

No entanto, contas feitas, a reunião acabou com a criação de mais um grupo de trabalho para tentar encontrar algum consenso nos textos dos vários partidos — embora, no caso do voto do PCP, haja dúvidas de que tal seja possível — e uma picardia entre os comunistas e o Chega.

Os tais pontos mais polémicos da reunião previam a votação, que ficou assim adiada, de textos em que os partidos condenavam, em vários graus e formulações diferentes, a guerra na Ucrânia e as ações da Rússia, particularmente em Bucha (“uma coleção extraordinária de votos”, gracejava Sousa Pinto).

Começaram por apresentar os votos a Iniciativa Liberal, PSD, PS, Chega, Bloco de Esquerda e PAN e, até aqui, parecia haver sintonia — todos aceitavam que a comissão procurasse construir um texto conjunto, para evitar aprovar uma multiplicação de documentos parecidos ou até com partes iguais.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas depois chegou o ponto mais polémico: o voto do PCP, o que mais divergia dos restantes e que espelhava a posição que o partido tem defendido sobre a Rússia e a Ucrânia. Desde logo, o título do voto era bem diferente dos outros: se no resto dos projetos se liam condenações ao “massacre de civis” ou às “atrocidades” cometidas em Bucha, os comunistas propunham um voto “de solidariedade para com as vítimas da guerra na Ucrânia, pela paz e pelo cabal apuramento de denúncias de crimes de guerra”.

Massacre de Bucha. O que se sabe, o que falta saber e os próximos passos da investigação

Lendo o texto do projeto comunista por inteiro, mais diferenças: os comunistas defendem que se ponha fim à guerra, mas à que “tem lugar na Ucrânia há oito anos” (incluindo os confrontos na região do Donbass desde 2014), e pedem uma “solução negociada” que ponha fim às “sanções” que também Portugal tem defendido contra a Rússia.

Sobre Bucha, a versão dos factos era muito diferente: em vez de atribuir um “massacre de civis” às forças russas, os comunistas referem as “notícias difundidas a partir dos centros do poder ucraniano e ampliadas pela máquina de propaganda que tem rodeado a guerra na Ucrânia”, assim como “as alegações russas de que se tratou de uma operação de manipulação desencadeada por forças ucranianas”, defendendo que estas “informações contraditórias e inquietantes” exigem um “cabal apuramento”.

Sobretudo, prossegue o PCP, tendo em conta “exemplos comprovados de situações anteriores apresentadas como verdadeiras e que posteriormente se confirmou serem falsas e baseadas em operações de manipulação“, dando o exemplo do falso pretexto da existência de armas de destruição maciça no Iraque. Esses pretextos, diz o partido no mesmo texto, faziam parte de uma “linha de provocação para justificar junto da opinião pública estratégias de agressão e ingerência”.

Por isso, no seu voto, o PCP diz expressar a solidariedade para com as vítimas desde há oito anos, mas quanto à Rússia condena apenas “a recente intervenção militar”, colocando o ónus na “intensificação da escalada belicista dos EUA, da NATO e da União Europeia”. E condena também, no último ponto do texto, “todos os actos criminosos, incluindo em cenário de guerra, ocorridos em solo da Ucrânia, do Iraque, do Afeganistão, da Líbia ou de outros países”.

Consenso possível? “Nunca tinha acontecido”

Ora o conteúdo dos outros textos culpava explicitamente a Rússia não só pela invasão, mas também pelo “massacre” de Bucha. Por isso mesmo, Sousa Pinto chegou a assumir que não seria possível incluir o PCP na tentativa de consenso de um texto só que ficará para o grupo de trabalho criado dentro da comissão.

Sem efeito: a líder parlamentar comunista, Paula Santos, assegurou mesmo que o PCP estaria interessado em participar nesse grupo de trabalho e tentar chegar a uma versão comum do texto — “por vezes é possível, por vezes não”. Se para Sousa Pinto “não há conciliação possível” entre as posições, a deputada garantiu que não se pode “definir à partida” que não haja conclusões comuns a retirar de textos aparentemente tão diferentes.

“Tudo bem, se o PCP quiser participar, pode participar. Nunca tinha acontecido uma situação destas… Mas não tem gravidade”, arrumou o presidente da comissão, perante dúvidas de outros grupos parlamentares (o PS chegou a propor desagregar em várias partes o voto do PCP para poder “aproveitar” algumas alíneas).

Chega tentou condenar PCP, partido lembra 25 de Abril

Depois de um voto do Chega que só teve o acordo da Iniciativa Liberal para condenar a posição da China neste conflito e de um louvor, também do Chega, à ação dos Médicos sem Fronteiras e outras organizações não governamentais no terreno, chegou o outro motivo para discórdia entre os deputados. Desta vez, porque o Chega apresentou um voto de “condenação pela postura do PCP e da Internacional Comunista em relação ao conflito na Ucrânia”, em que critica os “ziguezagues” do partido nesta matéria e considera que o voto contra do PCP em relação à intervenção do presidente ucraniano no Parlamento português (agendada para esta quinta-feira) “envergonha a Assembleia da República”.

Quanto ao conteúdo do texto, até havia vários partidos que concordavam. O problema era a forma: o PS, pela voz do deputado Paulo Pisco, considerou “má prática”, numa comissão sobre assuntos externos, começar a criticar as posições de outros grupos parlamentares; o PSD, que se absteve, disse concordar com partes do texto, mas não com a forma; o Bloco de Esquerda recusou discutir o conteúdo, com José Soeiro a criticar o “precdedente”. “Se a moda pega, podíamos ter votos de condenação sobre posições do Chega todas as semanas. Em vez de estarmos a votar os projetos ficamos a fazer votos sobre as posições. É do domínio do absurdo”.

Paula Santos mostrou-se indignada com a proposta “inaceitável” do Chega, lembrando que o PCP “sempre primou pelos valores de liberdade e democracia e contribuiu de forma muito significativa para 25 de Abril”. E fez questão de deixar “uma coisa bem clara”. “O PCP assume e assumirá sempre as suas posições”, incluindo na questão da Rússia, que diz “nada ter de ambíguo”: “Sempre estivemos do lado da paz, procuramos e apresentamos soluções concretas na defesa da paz, contra toda a escalada de confrontação desde 2014 que levou a esta situação no leste da Europa”.

Sem acordo e com a abstenção da IL e do PSD, o projeto polémico ficou, assim, chumbado. Quanto aos restantes, será preciso esperar pelas conclusões do novo grupo de trabalho, que deverá limar arestas como as referências a “crimes de guerra” na Ucrânia, uma vez que a sua existência está ainda a ser investigada a nível internacional.

Como Sousa Pinto recordou logo no início dos trabalhos, têm acontecido “coisas extraordinárias” nos votos de condenação que o Parlamento emite, como a aprovação de votos em sentido contrário no Parlamento, e o esforço é agora de consensualizar as ideias dos vários partidos. Mesmo que, no caso do PCP, não acredite que isso vá ser possível.