Continuam a surgir imagens de cadáveres — alguns de mãos atadas atrás das costas — nas ruas de Bucha, cidade a cerca de 30 quilómetros de Kiev, de onde as tropas russas saíram no final da semana passada. Vários países do Ocidente estão a condenar, em bloco, o alegado massacre e a União Europeia já anunciou uma investigação conjunta com a Ucrânia “para recolher provas e investigar crimes de guerra e crimes contra a humanidade”. O número provisório de vítimas subiu para 410.

Bucha, cidade que tinha cerca de 37.000 habitantes localizada a cerca de 30 quilómetros a noroeste Kiev, foi ocupada pelas forças russas logo no terceiro dia da guerra e ficou desde então inacessível. As forças ucranianas só terão conseguido entrar no sábado, depois da retirada das tropas russas, que rejeitam qualquer envolvimento nas mortes que têm ficado registadas nas lentes dos jornalistas. A Rússia diz que tudo se trata de encenação para “manchar” a imagem de Moscovo.

O que se terá passado e o que se vê em Bucha?

  • Além da entrada das forças ucranianas, a libertação de Bucha permitiu também a entrada de jornalistas, que rapidamente começaram a relatar o cenário de destruição na cidade. Repórteres da AFP encontraram, logo no sábado, os sinais dos bombardeamentos de que foi alvo Bucha, com edifícios e carros destruídos, ruas repletas de escombros, linhas elétricas derrubadas. E cadáveres, vários cadáveres com aparentes sinais de tortura.
  • No sábado, numa única rua, a AFP encontrou pelo menos 22 cadáveres espalhados, vestidos à civil. As imagens divulgadas tanto pela imprensa como por meios ucranianos oficiais mostram cadáveres de mãos atadas atrás das costas, alguns queimados, outros no meio da estrada, vestidos à civil. São também vistos corpos dentro de carros baleados e cadáveres junto a bicicletas caídas.

Russos deixaram rasto de morte nas ruas de Bucha. Militares ucranianos falam em “execuções arbitrárias” de civis

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  • Quem não conseguiu fugir a tempo da cidade, ficou ‘encurralado’ e os relatos ouvidos são de pessoas que ficaram dias escondidas em abrigos, sem eletricidade, água e aquecimento. Várias testemunhas disseram à AFP que viram combatentes chechenos entre as forças russas. A mesma ideia foi transmitida pelo presidente de Bucha, Anatoliy Fedoruk, que mostrou a zona no domingo aos jornalistas. A área, indicou, foi controlada por chechenos que teriam amarrado habitantes com um pano branco nos pulsos. Um habitante ouvido pela Reuters relatou que os civis estavam “apenas a andar” na rua e que os soldados inimigos “dispararam sem qualquer razão, sem fazer perguntas”.
  • As forças armadas ucranianas, que também publicaram imagens, acusam a Rússia de ter executado civis “arbitrariamente”. “A cidade ucraniana de Bucha esteve nas mãos dos animais russos durante várias semanas”, apontam.

Quantas pessoas morreram durante a ocupação russa?

  • Não há nenhum número oficial e as estimativas que têm sido conhecidas vêm do lado ucraniano. No domingo, o presidente da Câmara de Kiev, Vitaly Klitshcko, disse à AFP que até então tinham sido contabilizadas mais de 300 mortes. “Isto não é uma guerra, é um genocídio, um genocídio da população ucraniana”, criticou. O número tem subido e o mais recente dá conta de 410 corpos encontrados na região de Kiev. Destes, 140 tinham sido examinados no domingo.
  • No sábado, o presidente de Bucha adiantou que as forças ucranianas tiveram de abrir valas comuns — os cemitérios que existem na cidade não são suficientes para tantos corpos — onde terão sido enterradas cerca de 300 pessoas. Foi, no entanto, descoberta outra vala, alegadamente feita pelas tropas russas, perto de uma igreja vala comum encontrada junto a igreja. A Maxar Technologies, que ao longo do conflito tem divulgado imagens de satélite da Ucrânia, partilhou duas fotografias do terreno dessa igreja e diz que os primeiros sinais de escavação são de 10 de março, altura em que a zona ainda estava a ser controlado pela Rússia.
  • Um dos corpos enterrados é o da presidente da Câmara de Motyjyn e do seu marido, segundo revelou a primeira-ministra ucraniana Iryna Vereshchuk. Os corpos tinham sinais de tortura, como dedos e braços partidos.
  • As tropas ucranianas deparam-se agora com outro desafio, segundo denunciou o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky: há corpos armadilhados, com explosivos, o que obriga a cuidados redobrados por parte dos militares da Ucrânia, que já disseram também que vão procurar minas nas cidades reconquistadas.

O que diz a Ucrânia?

  • “Massacre deliberado”, “genocídio”, “crimes de guerra”. A Ucrânia não tem poupado nas palavras perante as imagens que têm surgido do massacre em Bucha. O próprio Volodymyr Zelensky visitou a cidade esta segunda-feira, mais concretamente uma estrada onde as tropas russas emboscaram uma coluna militar russa. E afirmou que a Rússia está a cometer crimes de guerra e genocídio na Ucrânia.
  • A mesma narrativa de que as mortes em Bucha representam crimes de guerra tem sido repetida por outros representantes ucranianos (e do Ocidente). Um porta-voz de Zelensky, Sergey Nikiforov, também classificou o episódio como “genocídio” e disse que as imagens pareciam configurar“exatamente crimes de guerra”.
  • Da mesma forma, Dmytro Kuleba, ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, afirmou que a Rússia levou a cabo um “massacre deliberado” e acusa os russos de quererem eliminar “o maior número possível de ucranianos”. Também voltou a pedir que os países do G7 aumentem as sanções ao país.

O que diz a Rússia?

  • A Rússia tem rejeitado a autoria das mortes registadas nas fotografias divulgadas de Bucha. O ministério da Defesa do país disse, no Telegram, que os relatos de civis mortos são “falsos”. A argumentação do país é que as tropas russas saíram da cidade a 30 de março e que as forças ucranianas bombardearam Bucha depois dessa retirada. A Rússia alega mesmo que em dois momentos de um vídeo de Bucha divulgado pela Ucrânia os cadáveres estavam a mexer-se. Mas a BBC, que viu o vídeo em causa, negou essa informação.

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  • O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, em conferência de imprensa, também vincou que “os factos e a cronologia” não suportam as acusações ucranianas. Peskov pede que os líderes internacionais não apressem o julgamento do que terá acontecido e diz que “especialistas russos” detetaram sinais de edição e distorções nas imagens divulgadas pela Ucrânia.
  • Também esta segunda-feira, o embaixador russo em Washington, Anatoly Antonov, alegou que não houve mortes de civis em Bucha enquanto a cidade esteve ocupada por forças russas. Acusando as forças ucranianas de terem bombardeado a cidade após a retirada de tropas russas, afirmou: “Gostaria de vincar que as tropas russas deixaram Bucha a 30 de março. As autoridades ucranianas continuaram em silêncio todos estes dias [na verdade, entre dois a três dias] e agora foram publicadas de repente todas estas filmagens sensacionalistas de modo a manchar a imagem da Rússia”.
  • Maria Zakharova, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, apoia a tese de manipulação. Numa entrevista à televisão estatal russa citada pela Reuters, disse que as imagens foram “ordenadas” e encenadas pelos norte-americanos para manchar a reputação da Rússia. “Neste caso, parece-me que o facto de estas declarações sobre a Rússia terem sido feitas nos primeiros minutos depois do aparecimento destes materiais não deixa dúvidas sobre quem ‘ordenou’ esta história”, disse Zakharova.
  • Pouco depois, o regime russo anunciou uma investigação oficial de recolha de provas ao que diz ser uma “provocação” da Ucrânia, através do Comité de Investigação da Rússia, o principal órgão de investigação criminal e federal do país. Alexander Bastrykin, responsável do Comité, acusa a Ucrânia de ter “espalhado deliberadamente informações falsas” sobre o alegado massacre e sobre a identidade das vítimas filmadas e fotografadas em Bucha.
  • Também o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia reforçou a ideia de que o Kremlin não teve envolvimento nas mortes: foi “um falso ataque” russo, acusou Serguei Lavrov. As imagens, argumenta, são “provocações” ucranianas que ameaçam a “segurança internacional”.

O que está a ser feito?

  • Logo no domingo, a Ucrânia anunciou a abertura de uma investigação aos alegados crimes perpetrados por militares russos em Bucha. E esta segunda-feira, foi a Procuradora-Geral da Ucrânia a anunciar que abriu uma investigação por crimes contra a humanidade por considerar que muitas das ações das forças russas na região de Kiev, nomeadamente em Bucha, podem ter essa classificação.
  • Dmytro Kuleba, ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, também pediu ao Tribunal Penal Internacional, em Haia (Países Baixos) que investigue o alegado massacre.
  • Já a União Europeia anunciou que vai abrir uma investigação conjunta com a Ucrânia, avançou a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, esta segunda-feira. “Esta tarde falei com o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, sobre os terríveis assassínios que foram descobertos em Busha e noutras áreas de onde as tropas russas saíram recentemente. Transmiti-lhe as minhas condolências e assegurei-lhe o total apoio da Comissão Europeia nestes tempos terríveis”, afirma Ursula von der Leyen, esta segunda-feira.
  • Em causa está a criação de uma equipa de investigação com a Ucrânia “para recolher provas e investigar crimes de guerra e crimes contra a humanidade”. É nesse sentido que a UE diz estar disponível para enviar equipas de investigação para o terreno para apoiar o Ministério Público ucraniano, o que inclui a ajuda de agências europeias de questões judiciais (Eurojust) e de polícia (Europol). Estão, anunciou, em curso “conversações entre a Eurojust e o Tribunal Penal Internacional para unir forças e para que o Tribunal faça parte da Equipa Conjunta de Investigação”.
  • Além disso, a União Europeia anunciou que prepara “urgentemente” mais sanções contra a Rússia depois dos ataques de Bucha. Josep Borrell, alto representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros, também condenou os alegados crimes “de forma mais veemente possível” e assegurou que a UE vai dar apoio total ao inquérito das Nações Unidas e à investigação do Tribunal Penal Internacional. Outros países, como a França, o Reino Unido e a Alemanha apoiaram o reforço das sanções.

O que falta saber e quais os próximos passos?

  • Vários países do Ocidente estão a exigir a punição da Rússia por crimes de guerra e essa parece ser a linha que a Ucrânia vai tentar seguir para a condenação do país liderado por Putin. O Reino Unido disse que está mesmo a recolher provas para apoiar o Tribunal Penal Internacional na investigação. E o Presidente Emmanuel Macron, considera que existem “indícios muito claros de crimes de guerra”.

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  • Mas, para provar a existência de crimes de guerra, o processo terá de passar por várias fases. A alta comissária para os Direitos Humanos da ONU disse esta segunda-feira que todos os cadáveres de Bucha têm de ser “exumados e identificados” para estabelecer as causas da morte — e ligá-las a eventuais crimes de guerra. Só assim a Rússia poderá ser condenada. “É essencial que todos os corpos sejam exumados e identificados para que as famílias das vítimas possam ser informadas e que as causas de morte sejam estabelecidas. Têm de ser adotadas todas as medidas para preservar as provas”, referiu Michelle Bachelet, num comunicado.
  • Essa investigação será essencial para apurar o que realmente aconteceu nas semanas em que Bucha foi controlada pelas tropas russas, que rejeitam a autoria dos alegados crimes, a veracidade das imagens que estão a ser divulgadas, e quais as violações de direitos humanos em causa — há relatos que, além de execuções sumárias, dão conta de violações e abusos sexuais contra mulheres. A ONG Human Rights Watch já terá o testemunho de uma mulher que alega ter sido alvo de violação repetida por um soldado russo, sendo ferida com uma faca na cara e pescoço.
  • Pode Bucha dificultar as negociações entre os dois lados? A pergunta foi endereçada à Rússia, que não respondeu. E a Zelensky, que, apesar de dizer que “é muito difícil”, vai continuar com as negociações. “Porque a Ucrânia tem de ter paz. Estamos na Europa no século XXI. Vamos continuar os esforços diplomática e militarmente”, disse o Presidente da Ucrânia.