A imagem parece épica: nos céus de Kiev, um piloto solitário engana e derrota todas as probabilidades, voando agilmente e atacando com eficácia os aviões da inimiga Rússia. Vai conseguindo destruir cada vez mais: primeiro são cinco, depois sete, por fim já 40 os aviões que abate sozinho pelos céus da capital ucraniana.
A história mítica — alimentada com fotografias e vídeos pelas próprias autoridades ucranianas — vai ganhando tração, gera cada vez mais comentários de admiração nas redes sociais e chega a um triste final com a morte do suposto “fantasma de Kiev”, assim batizado também pelas tropas da Ucrânia. O problema é que esse “fantasma”… não existe.
O fim do mito foi confirmado pelas próprias Forças Armadas ucranianas, que decidiram desfazer o que muitos já consideravam uma espécie de “lenda urbana” e, principalmente, uma história propagandística para dar força a um país (e um exército) sob ataque.
“Pedimos à comunidade ucraniana para não negligenciar as regras básicas de higiene da informação“, pode ler-se numa publicação no Facebook da força aérea que pede que as pessoas verifiquem primeiro as “fontes da informação” que partilham. E negam que o tal “fantasma de Kiev” seja, como se vinha especulando, o major Stepan Tarabalka, que morreu a 13 de março, aos 29 anos, a pilotar o seu avião de combate MiG-29.
Fantasma não é uma pessoa, mas um “espírito coletivo”
Quem é, então, o fantasma de Kiev? A resposta pode desiludir quem acreditou no mito, mas é dada pelo próprio exército ucraniano: “O fantasma de Kiev está vivo, representa o espírito coletivo dos pilotos altamente qualificados da brigada de aviação tática que estão a defender com sucesso a região de Kiev”. Em resumo: “O fantasma de Kiev é um super herói — uma lenda e personagem criada pelos ucranianos”.
Mistério desfeito: o fantasma de Kiev será então uma espécie de personagem composta, um mito que este domingo já passou a ter direito a uma página de Wikipédia própria e que desde março se foi tornando parte do imaginário desta guerra. Mas a ideia de que se trataria de um piloto específico (com competências fora do comum) não surgiu do nada.
Estávamos no fim de fevereiro quando a invasão da Ucrânia por parte da Rússia começou e, na altura, todas as comparações tornavam evidente o que parecia tratar-se de um conflito de David contra Golias, em termos de poderio militar. Só no caso dos aviões de combate, por exemplo, a desproporção era de 1.328 aparelhos russos para apenas 146 ucranianos, como o Observador explicava aqui.
Daí que a ideia de um único piloto que conseguia abater dezenas de aviões inimigos sozinho se tenha espalhado como uma espécie de lenda, usada, como conta a BBC, como estratégia de marketing por fábricas de peças de aviões e até em t-shirts. Mas as fontes oficiais fizeram o mesmo: logo no início da invasão, o Serviço de Segurança da Ucrânia publicou a imagem de um caça na rede social Telegram, falando num “anjo” dos céus que deitara abaixo dez aviões russos.
Surgiu depois um vídeo de um avião ucraniano a perseguir um russo e a conseguir abatê-lo — mas, como conta um fact check feito pela rádio alemã Deutsche Welle, a imagem tratava-se, na verdade, de uma sequência retirada de um videojogo, o Digital Combat Simulator World, como acabou por confirmar a própria pessoa que publicou o vídeo. “Se ele for real, que Deus esteja com ele; se é falso, rezo por mais como ele”, escrevia este utilizador no Youtube, referindo-se ao fantasma de Kiev.
#BREAKING
Crazy footage of a MiG-29 of the Ukrainian Air Force shooting down a Su-35 fighter jet of #Russia’s Air Force over Ukraine’s capital #Kyiv today. Likely using the R-73 infrared homing missile. #Ukraine #RussiaInvadesUkraine #worldwar3 #WorldWarIII #WWIII pic.twitter.com/MWGRfhnexB— Ukraine Russia war (@warupdates9) February 25, 2022
As próprias Forças Armadas ucranianas chegaram a publicar uma foto de um piloto com uma viseira negra e uma máscara de oxigénio a bordo de um caça MiG-29, identificando o homem como o fantasma de Kiev e juntando-lhe uma promessa — ou ameaça — escrita: “Olá, inimigo russo, vou voar [em perseguição] pela tua alma”.
Noutra ocasião, logo no fim de fevereiro, publicavam a seguinte mensagem no Twitter: “Dezenas de pilotos experientes, do capitão ao general que estava na reserva, voltaram para a Força Aérea. Quem sabe, talvez um deles seja o vingador aéreo no MiG-29, que tem sido avistado pelos habitantes de Kiev.”
O antigo presidente ucraniano Petro Poroshenko também contribuiu para alimentar o mito ao identificar o suposto fantasma numa fotografia de um piloto não identificado, com um capacete posto, e uma descrição animadora: “Com combatentes tão fortes, a Ucrânia vai de certeza vencer!”. Como o Observador explicava aqui, a fotografia era antiga, publicada três anos antes pelo ministério da Defesa ucraniano, e retratava apenas um piloto a fazer um voo de teste.
На фото – пілот МіГ-29. Той самий «Привид Києва».
Він викликає жах у ворогів та гордість в українців ????????
На його рахунку 6 перемог над російськими пілотами!
З такими потужними захисниками Україна точно переможе! pic.twitter.com/GJLpcJ31Si
— Петро Порошенко (@poroshenko) February 25, 2022
Além do major Stepan Tarabalka, que recebeu um louvor póstumo das autoridades ucranianas, também se chegou a especular que o fantasma de Kiev se chamaria Vladimir Abdonov, um suposto militar que aparecia em várias fotografias.
Mas, como a Deustche Welle explicava no mesmo fact check, muitas das fotografias eram, na verdade, montagens, usando imagens de aviões das forças aéreas do Canadá, por exemplo. Chegou a haver uma fotografia que usava o corpo de um militar ucraniano que já morreu — Vitaliy Skakun, também premiado postumamente por ter feito explodir uma ponte para travar os avanços russos e morrido na explosão — mas a cara de um advogado de Buenos Aires — que, no Twitter, chegou a brincar com a situação.
Asi recibieron al fantasma de Kiev al llegar a la base ???? pic.twitter.com/TtnlXPr4TT
— ABDON (@AlberdianoArg) February 26, 2022
À BBC, especialistas militares explicaram que seria no mínimo improvável que um piloto tivesse conseguido abater 40 aviões sozinhos. O historiador militar da Ucrânia Mikhail Zhirohov classificou a história como “propaganda para levantar a moral”, explicada pela desproporção das forças: “É essencial termos esta propaganda, porque as nossas forças armadas são mais pequenas, e muitos acham que não conseguimos igualá-los. Precisamos disto em tempos de guerra”.
Outro especialista, que falou sob anonimato, explicou que a história “ajudou a levantar a moral numa altura em que as pessoas precisam de histórias simples“.
No meio da propaganda e da contra-informação, é difícil dizer exatamente quais as perdas que as forças aéreas de cada lado já sofreram desde o início da guerra. A Ucrânia garantia a 30 de abril que a Rússia já teria perdido 190 aviões e 155 helicópteros, mas analistas independentes apontam para poucas dezenas de aparelhos abatidos, sem que seja possível confirmar com certeza os números, já que alguns aviões caem em território russo.