Uma “missão de paz”. É assim que Matteo Salvini, líder do partido de extrema-direita italiano Liga, está a tentar justificar a viagem que tinha planeado fazer até Moscovo e que, sabe-se agora, seria paga pela Rússia — isto apesar de Salvini estar há meses a tentar reposicionar-se e descolar-se de Vladimir Putin, de quem costumava ser admirador.
O objetivo da viagem, disse num briefing com jornalistas estrangeiros, seria “restaurar a paz”, tendo os pormenores que vieram à tona servido apenas para confirmar a “transparência e correção” do seu trabalho, insistiu o político italiano.
“Já me encontrei com o embaixador ucraniano para mostrar solidariedade, e com o russo para pedir um cessar-fogo. Para parar a guerra temos de pedir isso ao país onde a guerra começou”, justificou.
Como o The Guardian refere, até os aliados políticos de Salvini no governo italiano (que a Liga apoia) ficaram surpreendidos com a notícia da viagem, cujos contornos foram agora revelados pela embaixada russa, depois de terem circulado notícias sobre as intenções de Salvini de viajar até à Rússia no final de maio.
Num comunicado da embaixada citado pelo mesmo jornal, pode ler-se que Moscovo se tinha encarregado de comprar bilhetes de avião para Salvini e para a sua delegação, via Istambul, uma vez que os voos diretos de Roma estão suspensos, consequência das sanções impostas à Rússia. A embaixada diz que é por isso mesmo que precisou de “acompanhar” o político italiano na tarefa de conseguir bilhetes comprados com rublos.
No entanto, Salvini terá, depois de cancelar a viagem, devolvido os bilhetes, razão pela qual a embaixada justifica: “Não vemos nada de ilegal nestas ações”.
A questão não será, no entanto, de ilegalidade, mas sobretudo de incoerência ou até de perigo para a segurança nacional, como vieram acusar vários adversários políticos. Carlo Calenda, líder do partido de centro Azione, chamou a Salvini “um perigo para a segurança nacional”, enquanto o antigo primeiro-ministro Matteo Renzi ironizou dizendo que “seria muito melhor” que a Rússia comprasse um bilhete só de ida a Salvini.
A crítica mais comum será, no entanto, sobre a mudança radical de posição que Salvini tem assumido em relação a Vladimir Putin e ao seu regime, tendo condenado a guerra mas sem nomear diretamente Putin. Escassos meses depois de ter sido acusado de receber financiamento da Rússia para as eleições europeias, Salvini veio garantir que se opunha à invasão da Ucrânia e, apesar de boa parte do seu discurso residir na retórica contra refugiados, viajou até um centro de refugiados na fronteira entre Polónia e Ucrânia para anunciar que 50 seriam recebidos por autarquias lideradas pelo seu partido.
A mudança de posição não correu bem a Salvini: quando estava à porta do centro de refugiados, foi confrontado em frente aos jornalistas pelo presidente da câmara da cidade de Przemysl, Wojciech Bakun, pela “amizade” com Putin, a quem costumava chamar “o melhor estadista na terra”, ainda em 2019.
Incredible scenes.
LEGA leader and Putin supporter Matteo Salvini went to Polish border where refugees keep flowing in.
Przemysl mayor Bakun refused to welcome Salvini showing his t-shirt with Putin: “Come to the border and criticise your friend Putin!”pic.twitter.com/s4AX1YewSt
— Antonello Guerrera (@antoguerrera) March 8, 2022
Ora Bakun levou ainda consigo a t-shirt com a cara de Putin que Salvini já usou publicamente em pelo menos duas ocasiões, incluindo na Praça Vermelha de Moscovo. E convidou Salvini a acompanhá-lo na visita ao centro de refugiados vestindo a mesma t-shirt, para ver o que o “amigo” Putin fizera. O político italiano, visivelmente embaraçado, tentou interrompê-lo várias vezes, frisando que a Itália está a “ajudar refugiados, crianças, mães, pais, da Ucrânia”.
Em Itália, e não só, analistas apontam para essa improvável defesa de refugiados por Salvini como uma manobra para tentar aproveitar a onda favorável aos refugiados ucranianos na opinião pública — separando os grupos de refugiados entre os ucranianos e os que chegam do norte de África a Itália, pelo Mediterrâneo, e “abusam do sistema”.
Na semana passada, como escreveu a agência Ansa, Salvini defendeu mais uma vez que se opõe ao envio de mais armas da Itália para a Ucrânia, pedindo mesmo que as próximas tentativas de negociação para a paz entre as duas partes aconteçam em Itália, no Vaticano.