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Guerras mundiais do século XX não podem ser comparadas com a invasão da Ucrânia

Este artigo tem mais de 2 anos

Historiadores defendem que a comparação entre a invasão russa de 24 de fevereiro e o início das guerras mundiais em 1914 e 1939 não podem ser comparáveis, tratando-se de "contextos distintos".

Christopher Clark, professor de história em Cambridge, descartou a comparação entre Putin e Hitler
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Christopher Clark, professor de história em Cambridge, descartou a comparação entre Putin e Hitler

Twitter/Ucrânia

Christopher Clark, professor de história em Cambridge, descartou a comparação entre Putin e Hitler

Twitter/Ucrânia

Desde que teve início a invasão das tropas russas à Ucrânia, várias foram as comparações feitas com momentos do passado, em especial com as duas guerras mundiais do século XX, e houve mesmo quem comparasse Putin a Hitler, dado o seu alegado ideal de expansão. Para alguns historiadores, contudo, a comparação da invasão de 24 de fevereiro com qualquer uma das guerras do século XX é incorreta.

O historiador e professor da Universidade de Cambridge, Christopher Clark, conhecido pelo livro “Sonâmbulos: como a Europa começou a guerra em 1914”, não concorda com o paralelo entre o contexto internacional que originou a Primeira Grande Guerra e a atual invasão da Ucrânia pelas tropas russas.

No seu livro, publicado em 2013, e que vendeu mais de 350 mil cópias, Christopher Clark considera que “a Primeira Guerra Mundial é um evento complexo, e que no caso da invasão da Ucrânia, em 2014 e este ano, é um caso claro da violação da paz por apenas uma potência“.

Comparação pode ser feita com o século XIX e não com o século XX

Recentemente, de acordo com o The Guardian, o chanceler alemão Olaf Scholz citou o livro de Clark como um caso de estudo em como alguns políticos irresponsáveis poderiam incitar-se uns aos outros em direção a uma guerra através de uma retórico bélica, para um conflito que não seria do interesse dos líderes políticos. O chanceler alemão garantiu ainda aos jornalistas, segundo o jornal britânico, que “não se tornaria num kaiser Wilhelm II“, numa alusão ao imperador alemão considerado por muitos como uma das principais figuras políticos que originou a Primeira Grande Guerra.

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Para Christopher Clark, contudo, atualmente “as pessoas não querem dar o passo em frente [em direção à guerra], não querem arriscar um escalar do conflito”. O historiador continuou: “É um contexto muito diferente. Não há nenhuma crise dos Balcãs, e a Europa não está dividida num par binário de sistemas de alianças. Desta vez, pelo menos, a Rússia está isolada na Europa.”

Wilhelm II Family of Tsar Nicholas II of Russia Franz Ferdinand Archduke of Austria and his wife Sophie, Duchess of Hohenberg moments before they were assassinated in Sarajevo on June 28, 1914

O kaiser alemão Wilhem II (E), o czar russo Nicolau II (C), imperadores da Alemanha e da Rússia durante a Primeira Grande Guerra, e o arquiduque austríaco Franz Ferdinand, cujo assassinato deu início ao conflito (E)

Bildagentur-online/ Universal Im

Comparar com a Segunda Grande Guerra e não com Primeira também não é opção para, Christopher Clark pois Putin não é como Hitler.

O Hitler tinha uma profunda filosofia racista, segundo a qual os alemães eram uma raça que se iria expandir pelo continente europeu”, disse o historiador. Uma analogia melhor [da invasão da Ucrânia] seria com as incursões oportunistas russas do século XIX, a maioria destas desconhecidas para nós no Ocidente, uma vez que foram realizadas à custa do Império Otomano. O mundo, no geral, é cada vez mais parecido com o século XIX: multipolar e imprevisível.”

Há um mês, o historiador de Cambridge deu uma entrevista ao canal alemão Deutsche Welle, onde explicou igualmente o porquê de a comparação mais correta com o atual contexto internacional na Europa ser semelhante ao do século XIX e não à Europa de 1914.

“A Primeira Guerra Mundial não começou com um ataque frontal na fronteira de outro país, mas sim com uma crise estruturalmente complexa nos Balcãs, que começou com o assassinato do arquiduque austríaco [Franz Ferdinand] em Sarajevo“, afirmou Christopher Clark ao canal alemão.

O professor de Cambridge justificou igualmente o paralelo com o século XIX: “Se pensarmos como o czar [da Rússia] justificou, em 1848, a sua intenção de invadir e ocupar Valáquia, o reino que corresponde mais ou menos à atual Roménia, este disse que ‘há potências, que são tratadas enquanto iguais, e há meros territórios, que podem ser ocupados’, e penso que o Putin vê a Ucrânia como um território, pelo que estamos de volta ao mundo do século XIX e não ao mundo de 1914.”

“Cada momento deve ser interpretado num contexto específico”

Também para António Ventura, professor de História Contemporânea da Universidade de Lisboa, embora cada período possa ter raízes históricas “que os políticos muitas vezes não se apercebem”, cada momento deve ser interpretado num contexto específico. A comparação com as incursões russas do século XIX, para o professor, não é correta, explica ao Observador.

A guerra na Ucrânia, esclareceu, deve ser vista “recuando ao fim da URSS e da Jugoslávia“. Para o professor de história, aquilo a que se está a assistir é ao resultado da “existência de um sistema que terminou e que resultou na criação de Estados que nunca existiram”, como é o caso de alguns dos países que formaram no passado parte da União Soviética.

Atualmente, explicou, o que aconteceu foi uma situação em que a Federação Russa, que era a maior entidade da antiga URSS, tornou-se numa “potência de segunda ordem”, e portanto “quer recuperar um estatuto de poder geopolítico”.

António Ventura discorda ainda da semelhança entre a situação atual e as incursões russas do século XIX. “A expansão russa dá-se para o Médio Oriente e Extremo Oriente, e em disputas com os ingleses, pelo que não tem comparação possível, não houve uma ameaça para o Ocidente”, afirmou.

St. Alexander Nevski Cathedral in Sofia, Bulgaria

Catedral de Alexandre Nevsky, em Sofia, Bulgária

Getty Images

O professor da Faculdade de Letras explicou também que, quando o Império Otomano se desmembrou, “a Bulgária tornou-se independente com a ajuda da Rússia, e hoje é um país que se opõe à Federação Russa“, não sendo, portanto, possível traçar uma comparação entre os dois momentos. “A Catedral de Alexandre Nevsky, em  Sofia (capital da Bulgária) foi erguida em homenagem aos soldados russos”, recordou.

A divisão histórica da sociedade alemã

Christopher Clark explicou igualmente que alguma indecisão alemã num apoio rápido e incondicional a um dos lados não é novidade, tendo a mesma acontecido durante a guerra da Crimeia, em 1853, quando um artigo do Times of London apelava a que a Prússia (na altura parte do império alemão) se”alinhasse mais com as potências europeias progressistas”, escreve o jornal britânico.

De acordo com o historiador de Cambridge, a elite cultural e política alemã esteve, ao longo dos séculos, dividida entre aqueles que apoiavam uma aliança com o Reino Unido e França, e aqueles que “acreditavam que  a Prússia ou a Alemanha não deveriam fazer nada que desagradasse aos russos“.

View of Serene Sevastopol in 1848

A cidade de Sevastopol em 1848, antes do início da Guerra da Crimeia, em 1853

Corbis via Getty Images

“Aqueles que atacam Olaf Scholz por não dizer o suficiente deveriam perceber o quão horrorizados todos ficariam se um chanceler alemão quisesse saltar [para uma guerra]”, afirmou Christopher Clark. Para o historiador, contudo, o líder do executivo alemão arrisca perder credibilidade na Europa caso não sejam realizadas ações específicas que consolidem o país.

Já António Ventura considera que esta divisão é natural em qualquer Estado, e não exclusiva deste país. “O Império Alemão, no último quartel do século XIX, olhou sempre para os seus próprios interesses, e na Primeira Grande Guerra não teve problemas em fazer acordos com os bolcheviques”, esclareceu. “Mas não é só na Alemanha, os interesses nacionais estão sempre à frente das decisões de qualquer Estado.”

Quando saiu para o público, o livro de Christopher Clark foi encarado como uma crítica direta aos argumentos do historiador Fritz Fischer, que, durante a década de 1960, formou a tese segundo a qual a Alemanha foi a responsável, não apenas pela Segunda, como pela Primeira Grande Guerra.

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