Maria de Lourdes Modesto, autora de vários livros, incluindo “Cozinha Tradicional Portuguesa”, morreu esta terça-feira, 19 de julho. A professora, gastrónoma e conhecida “diva” da gastronomia portuguesa estava hospitalizada há alguns dias.

A notícia, confirmada pelo Observador, foi avançada por fonte próxima da família ao Público e por Fátima Moura, autora do projeto “Conversas à Mesa”, na sua página no Facebook: “Perdemos uma pessoa muito importante para a cozinha portuguesa e para a nossa cultura: faleceu Maria de Lourdes Modesto. Eu perdi uma grande amiga. Não tenho mais palavras do que estas.”

A diva e a crítica. Maria de Lourdes Modesto, a mulher a quem devemos a original cozinha portuguesa

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Numa nota publicada no site oficial da Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa também já reagiu à morte da figura que deixa um enorme legado na cultura gastronómica portuguesa: “O Presidente da República evoca Maria de Lourdes Modesto, que durante anos se tornou numa figura muito simpática e popular da nossa televisão, através do programa de culinária que apresentava e que, em vários aspetos, era inovador para a época.”

Lembra ainda que Maria de Lourdes Modesto foi, em 2004, galardoada como Comendadora da Ordem do Mérito, pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio, destacando ainda o seu trabalho como “autora e tradutora de livros de referência na arte culinária.” Marcelo Rebelo de Sousa “lembra com saudade esta grande comunicadora, apresentando à família sinceras condolências”.

O primeiro-ministro, António Costa, destaca o trabalho de “recolha que Maria de Lourdes Modesto fez de receitas originárias de todo o país” e que foi, precisamente, este que esteve na origem daquela que é a “bíblia da cozinha tradicional portuguesa.” Descreve-a como uma das “figuras mais populares e respeitadas” da cozinha portuguesa.

“Maria de Lourdes nunca vai desaparecer”

José Avillez lembra ao Observador o legado eterno que Maria de Lourdes Modesto deixa para trás: “Quando se fala e escreve sobre as pessoas que morrem, refere-se o seu desaparecimento. Maria de Lourdes nunca vai desaparecer”.

O chef do Belcanto lamenta a morte da autora, com quem teve aulas e de quem foi sempre muito próximo: “Estou muito triste. Era uma pessoa muito importante para mim, que me adotou como neto emprestado e eu como avó emprestada, como nos tratávamos um ao outro.”

Lembra a sua “alegria de viver”, destacando ainda do contributo para o trabalho de todos os cozinheiros portugueses: “Deu-nos a nós, cozinheiros e chefs de cozinha, o melhor que poderíamos desejar”, diz. “Vai ficar para sempre no meu coração, no coração das pessoas que tiveram a oportunidade de estar com ela e de a conhecer. Vai ficar como uma referência absolutamente incontornável da cozinha portuguesa, que nos deixou uma herança absolutamente única.”

Virgílio Nogueira Gomes, referência da gastronomia portuguesa, autor de “Dicionário Prático da Cozinha Portuguesa”, reconhece a importância deste legado, mas prefere recordar a pessoa de quem era tão próximo: “Quero lembrá-la como a pessoa que era.  Conhecia-a há 40 anos. Com a aproximação e desenvolvimento da amizade, conclui que a pessoa que ela era conseguia suplantar o trabalho que desenvolvia”, conta, destacando o seu sentido de humor “invulgar”, por vezes “sarcástico”.

Maria de Lourdes Modesto. “Cozinhados era uma coisa a que eu não achava graça nenhuma”

Paulo Amado, diretor das Edições a Gosto, responsável pela organização do concurso Chefe Cozinheiro do Ano, recorda Maria de Lourdes Modesto como “um grande nome, uma figura indelével da gastronomia deste país” nas últimas cinco décadas. “Gastronomia é cultura, é reflexo do território, das gentes, dos produtos”, acrescenta, lembrando o trabalho da autora na recolha e seleção de receitas tradicionais portuguesas. “Todos nós estamos de luto”, refere Rui Paula, chef à frente dos projetos gastronómicos DOP, o DOC e a Casa de Chá da Boa Nova.

A capa de “Cozinha Tradicional Portuguesa”, de Maria de Lourdes Modesto

Recordada pela alegria, boa disposição e humor, não deixa de ser curioso que, em Beja, Maria de Lourdes Modesto tenha nascido no dia da criança: a 1 de junho de 1930. Veio para Lisboa aos 17 anos, onde tirou o curso de Economia Doméstica, tornando-se professora no Liceu Francês. Foi nesta instituição, onde passou oito anos, que foi descoberta: a sua energia e forma de estar chamou a atenção da RTP quando em palco, no âmbito de um projeto da disciplina Literatura Francesa, fazia parte do elenco da peça Monsieur de Pourceaugnac, de Molière. A gastronomia não fazia parte dos seus planos, mas veio a tornar-se na disciplina e no projeto da sua vida: em 1958, pouco depois de a televisão pública se ter estrado em Portugal, Modesto saltou para o ecrã, conduzindo o primeiro momento culinário na televisão portuguesa, através de uma rubrica inserida num programa feminino.

Pioneira do live cooking, tornou-se na rapariga sensação da RTP e em 1958 estreou-se em “Culinárias”, programa de cozinha a solo, o mais popular que já alguma vez passou na televisão nacional. Deixou-o passados 12 anos, desencantada com as transmissões que haviam deixado de ser em direto. Ao longo de mais de uma década, cresceu e sedimentou-se o seu profundo interesse pela culinária, tornando-se na mãe da cozinha tradicional portuguesa que, a par da francesa, estudou incansavelmente. Em 1981, publicou “Cozinha Tradicional Portuguesa”, bíblia da gastronomia nacional, obra que é a grande referência do conjunto de receitas da comida portuguesa. Em 2021 publicou o seu último livro: “Coisas que Eu Sei”, com receitas, truques e os segredos da diva que, pela herança que deixa, “nunca vai desaparecer”.