A política italiana continua igual a si própria. Apenas uma semana depois de o Governo do país ter caído, por deterioração da base de apoio parlamentar ao executivo de Mario Draghi — o sexto primeiro-ministro de Itália nos últimos 12 anos, período pós-Berlusconi —, surge agora um novo escândalo na política interna do país. Desta vez, está relacionado com uma possível interferência russa na vida política italiana.
Esta quinta-feira, o jornal italiano La Stampa revelou que um funcionário da embaixada russa em Roma terá perguntado há meses a um assessor para as relações internacionais do líder da Liga, Matteo Salvini, se o partido de extrema-direita estaria disposto a deixar cair o apoio ao Governo de Draghi. Ao longo da guerra provocada por uma invasão militar russa à Ucrânia, o executivo italiano opôs-se reiteradamente ao Kremlin e alinhou com as potências europeias no apoio a Kiev.
As conversas entre este funcionário da embaixada russa em Roma, Oleg Kustyokov, e o mencionado assessor de Salvini, Antonio Capuano, terão acontecido em maio — três meses depois do início da guerra e dois meses antes da queda do Governo italiano. O La Stampa cita um “resumo informal” de dados obtidos pelos serviços secretos italianos (este “resumo” não será um documento oficial e classificado dos serviços secretos), que terá sido “comunicado às instâncias competentes”.
A notícia está a gerar uma onda de reações em Itália, aumentando as dúvidas sobre a relação do Presidente russo Vladimir Putin e o seu regime com a Liga de Matteo Salvini. O político italiano de extrema-direita chegou a expressar no passado a sua admiração por Putin (chamou-lhe até em 2019 “o melhor estadista do planeta”), de quem se tem tentado descolar publicamente desde o início da guerra na Ucrânia. No mês passado, foi noticiado um plano de viagem de Salvini a Moscovo que iria ser alegadamente paga pelo regime russo. Antes disso, em março, Salvini foi recebido com protestos numa viagem à fronteira entre a Ucrânia e a Polónia. No local, o político italiano ouviu: “Anda ver o que o teu amigo Putin fez”.
Para já, a existência da conversa entre o funcionário da embaixada russa e o assessor de Salvini não foi negada — o líder da Liga tem refutado, isso sim, que a queda do Governo de Mario Draghi tenha alguma relação com um desejo russo de mudança de Governo em Itália ou com essa alegada conversa. Em declarações a uma rádio italiana, citadas pelo La Stampa, Salvini garantiu que a suspeita sobre o envolvimento da Rússia na queda do Governo é “nonsense“ e garantiu ter “trabalhado continuamente pela paz e para parar esta maldita guerra”.
O líder da Liga acrescentou ainda, numa declaração posterior em que prometeu um “desmentido institucional”: “Foi a crise de Governo ditada pela Rússia? Sejamos sérios. Vamos fazer um desmentido institucional”. Salvini lamentou ainda que se estejam a espalhar o que chama de “fake news”, garantiu estar “com o Ocidente e com a democracia” e apontou o dedo “à esquerda e a alguns jornais”.
Apesar das garantias de que está “com o Ocidente e com a democracia”, Matteo Salvini defende uma estratégia diferente para lidar com o conflito em curso e com o Kremlin. Já o explicitou, aliás, dizendo que apesar de se sentir “orgulhosamente aliado dos países livres e democráticos do Ocidente”, tal não significa “não querer ter boas relações com Putin”. E mesmo que “a Aliança Atlântica” não seja colocada em causa pela Liga, Salvini distancia-se da estratégia de “países europeus beligerantes” — prefere uma Itália que “dialogue e ajude a mediar” o conflito.
Como explicava recentemente o Observador, a queda do Governo tecnocrata de Mario Draghi teve origem na deterioração crescente da base de apoio dos partidos políticos italianos que suportavam o Governo no parlamento.
O partido Movimento 5 Estrelas, de Giuseppe Conte, foi a formação partidária que mais se foi afastando de Draghi e do seu executivo. Porém, também o Força Itália, liderado por Silvio Berlusconi, e a Liga, de Matteo Salvini, vinham há muito a revelar discordâncias significativas com o Governo que ajudaram a suportar politicamente durante mais de um ano.
O primeiro-ministro italiano, que está demissionário, queixou-se mesmo recentemente da falta de apoio de alguns partidos políticos de Itália não só à política interna do Governo mas também ao “apoio do governo à Ucrânia”. Draghi aludiu mesmo a “tentativas de enfraquecer o apoio do governo à Ucrânia e de enfraquecer a nossa oposição ao plano do Presidente Putin”.