Um concerto de Kraftwerk é sempre uma experiência sensorial. O espectador é transportado para um mundo alternativo, repleto de sons computorizados e minimalistas, em que as máquinas dominam e as naves espaciais descem dos céus para sobrevoar Lisboa. O ar robotizado dos quatro membros da banda criada em 1970 ajuda a acentuar essa sensação, mas também as vozes computorizadas, os gráficos datados e a música eletrónica “antiga”, mas que continua a puxar multidões.
Em termos performativos e musicais, os Kraftwerk têm pouco para oferecer além do que foi apresentado nos concertos dados em Portugal (e não só) nos últimos anos, mas isso não desmobiliza os fãs, que continuam a aparecer nos espetáculos com os mesmos óculos brancos 3D oferecidos à entrada. Mas quem compra um bilhete para ver os “pais da música eletrónica” já sabe com o que contar — a mesma música e atitude que tornou o grupo alemão famoso, há várias décadas.
Prova da contínua popularidade dos Kraftwerk foi a enchente que se viu junto ao palco secundário do Kalorama, o Colina. O espaço era pequeno para o número de espectadores com os seus óculos brancos, apesar de o estranho declive até facilitar a visualização do concerto. Felizmente, alguns começaram a abandonar o espaço, talvez desiludidos com o alinhamento — o mesmo de sempre, com os mesmos gráficos de sempre. Este incluiu, como já tinha incluído nas anteriores passagens do grupo por Portugal, temas como “Numbers” (com o habitual desfilar de números verdes sobre um fundo preto); “Computer World”; “Autobahn”; “Tour de France” (com carochas e outros carros de outra época); e “Spacelab” (com a mesma brincadeira da nave extraterreste, que vais descendo desde o espaço sideral até ao local do concerto, neste caso, o Parque da Bela Vista, em Lisboa). Nada de novo, portanto. O que não é de admirar, uma vez que os Kraftwerk não lançam nenhum álbum desde 2003.
A falta de novidade não é em si uma novidade, mas a monotonia do som compotorizado e mecânico dos Kraftwerk caiu mal depois da festa que foi Years & Years, no palco principal do festival. Os dois grupos não podiam ser mais diferentes. De um lado, Olly Alexander — expressivo, carismático e enérgico; e do outro, os alemães — robóticos, inexpressivos e, talvez por isso mesmo, intemporais. A música dos Kraftwerk fala de um tempo, mas também para um tempo — o presente –, que nasceu desse outro período, que pode parecer longínquo (mas sê-lo-á mesmo?) aos olhos daqueles que viram, esta quinta-feira à noite, a antiquada nave espacial descer sobre a Bela Vista; mas quando se presta atenção, percebe-se que há mais nos alemães do que números e carochas — há um mundo que se abre. Basta querer entrar.
O concerto dos Kraftwerk não foi o único deja vu desta quinta-feira. O festival é uma estreia, mas o recinto é bem conhecido de quem por lá se passeou — é no Parque da Bela Vista que, de dois em dois anos, se realiza o Rock in Rio. A mais recente edição lisboeta do evento de música brasileiro aconteceu há dois meses, mas a Bela Vista parece ter parado no tempo — algumas das estruturas parecem ter sido deixadas para trás e reaproveitadas para o Kalorama. O palco principal (que aqui se chama MEO, o principal patrocinador do festival) poderia ser o mesmo, não fosse a decoração outra e o cartaz bem diferente daquele a que, nos últimos anos, o Rock in Rio habituou os portugueses.
A energia explosiva, sem espinhas, dos Chemical Brothers
A transição dos históricos Kraftwerk, no palco Colina, para The Chemical Brothers, no palco principal (a que ainda estranharemos por algum tempo não chamar Palco Mundo), talvez tenha sido a melhor notícia do arranque. Funcionou na perfeição, atestando a coerência estética da programação deste primeiro dia do Kalorama.
Não faltam diferenças entre um grupo e outro, desde geográficas e temporais — da Düsseldorf dos 70’s à Manchester dos 90’s— a estilísticas. Mas não só a toada eletrónica teve sequência em horário nobre do festival como a sensação era de que a noite propiciava uma viagem por facetas diferentes e fases distintas da evolução das batidas dançantes no mundo. Talvez o caminho da primeira para a segunda paragem tenha sido feito numa daquelas plataformas mágicas a partir das quais Hütter, Schneider e companhia anteviram o futuro, mais robotizado e tecnológico, da música e das relações humanas.
Não se pode dizer que por esta altura, em pleno 2022, um concerto de The Chemical Brothers em Portugal seja exatamente uma revelação: já atuaram no país mais de uma dezena de vezes, tendo esta sido a 14ª que nos deram música. Outros números que reforçam a proximidade dos britânicos ao público português? Nos últimos sete anos, deram quatro concertos (este incluído) no país. E se excluirmos os pandémicos 2020 e 2021, aliás, verificamos que de 2016 para cá apenas num ano, 2017, não nos fizeram uma visita.
Se os The Chemical Brothers são visitantes regulares, uma espécie de The National nas madrugadas dos festivais, é porque são receita mais do que comprovada de sucesso: a eficácia em proporcionar um espectáculo inebriante e capaz de contagiar uma multidão está mais do que vista, é de uma fiabilidade germânica, nunca falham.
Há uma espécie de aceleração prego a fundo quando deixamos os Kraftwerk para trás e entramos nos terrenos de Tom Rowlands e Ed Simons. Liga-se o turbo e a música fica mais agressiva, mais intempestiva, mais torrencial. Durante mais de uma hora, incendeiam a pista, levam o público numa viagem dos 90s (com “Block Rockin’ Beats”) a 2015 (“Go”), como se de uma data para outra, pouco tivesse mudado. No ecrã vão surgindo elaboradas animações dançantes, bonecos irrequietos e que reagem à música, enquanto Rowlands e Simons ficam mais na penumbra, pouco iluminados — a música que fale e o ritmo que galvanize.
Ao longe, que o Parque da Bela Vista estava apinhado de gente para os celebrar, as reações são mais efusivas a alguns êxitos: “Hey Boy Hey Girl” primeiro, “Got to Keep On” e “Wide Open” depois, “Star Guitar” mais tarde, “Galvanize” a fechar. Mas há canções que se revelam talvez mais surpreendentemente eficazes nesta fórmula-Brothers, espécie de injeção de adrenalina rítmica e energia explosiva em melodias, como a recente “Eve of Destruction”, do álbum No Geography (2019). Está visto e revisto, Rowlands e Simons continuam aí para as curvas, quem quiser uma festa de arromba só tem de os chamar, eles apanham os foguetes, as canas e dão molas aos pés de quem os ouve. Vemo-nos no próximo ano?
A missão de James Blake: conjugar o recolhimento com a festa
São sete da tarde e ele aparece em palco com pontualidade britânica, imponente, 1.96m de sensibilidade eletrónica, sempre com um pé na pista de dança e outro no recolhimento do sofá. E quando chega já tem dois parceiros ao lado, haveria mais tarde de pedir palmas para eles, um “na bateria”, outro “na guitarra e, bom, a tocar uma centena de coisas”.
James Blake já não é propriamente uma novidade, tem 33 anos mas anda há mais de uma década (desde 2011) a revelar-se um dos baladeiros digitais desta época, cruzando a solenidade do piano com enfumaradas batidas eletrónicas, filhas do dubstep e do bass britânico. Esta quinta-feira, deu o seu sétimo concerto em Portugal e o primeiro desde a pandemia da Covid-19.
Curiosamente, este foi também o sétimo concerto de Blake em festivais portugueses. É mistério difícil de decifrar, nunca ter atuado em nome próprio e em sala fechada, ainda para mais quando a sua música, apesar de eletrónica, é mais recolhida do que expansiva, mais delicada do que eufórica, alimentando-se do silêncio e do canto baladeiro que assentam bem a um concerto em sala.
Quase paradoxalmente, ainda que sejam as canções mais antigas — do primeiro par de discos mas em particular da estreia (James Blake, 2011) — a aguentar-se melhor em ambiente de festival (gerando mais reações do público), os anos fizeram-no crescer notoriamente como artista de envergadura, não abanando hoje num palco festivaleiro de grande dimensões.
O concerto começou com uma voz latina a ouvir-se nas colunas (pareceu-nos de Rosalía) antes de “Life Round Here”, repescada ao segundo álbum Overgrown, de 2013, abrir as hostilidades. E durante uma hora exata, vimo-lo navegar por entre águas mais agitadas e noturnas e marés mais serenas.
Depois da reconhecida versão de “Limit To Your Love”, de Feist, ouvimo-lo agradecer, garantir que estava “muito feliz por estar de volta” e “tinha saudades” nossas, agradecer “o apoio”, notar que esteve “muito, muito tempo” longe (de Lisboa, certamente, mais do que de Portugal), anunciar que ia tentar tocar “um bocadinho de tudo” e rir-se com a multidão à sua frente: “Está tanta gente”.
Houve também espaço para canções mais recentes, como “Say What You Will”, e para se ouvir o hip-hop mais festivo e hedonista do trap infiltrado na sua música, através de “Mile High”, que gravou com o rapper Travis Scott e o produtor Metro Boomin e recuperada em palco esta quinta-feira.
O mais curioso, porém, foi ver como num concerto James Blake alia as suas duas faces, de baladeiro que se expõe, vulnerável e quase pedindo silêncio e compenetração ao público às suas emoções, a comandante de uma mini-orquestra eletrónica acelerada, capaz de tornar o solar e ainda luminoso Parque da Bela Vista em discoteca na madrugada. E ficou também claro que, excluindo para as primeiras filas mais devotas, foi a segunda versão que cativou uma maioria que foi ao Kalorama predominantemente para dançar, neste dia inaugural de The Chemical Brothers, Kraftwerk e Moderat.
É ainda assim quando o ouvimos cantar “Retrogade”, do seu segundo álbum Overgrown, já na ponta final de um concerto em crescendo, que nos assalta a ideia que James Blake foi já, no seu melhor, capaz de moldar o protótipo da canção de amor do século XXI. Ouvimo-lo, delicado e com o coração aberto, cantar “ignore everybody else / we’re alone now“, e imaginamos uma dylanesca “Shelter From the Storm” transposta ao mundo digital, James Blake a propor um abrigo de toda a confusão exterior com a veia romântica mais saliente. Talvez já seja altura de o ouvirmos em nome próprio e em sala fechada.
Um vocalista-estrela com os Years & Years
Tinham passado duas horas desde o concerto de James Blake e a noite tinha caído na Bela Vista, criando o cenário perfeito para os Years & Years. Projeto a solo do vocalista britânico Olly Alexander, desde 2010 que os Years & Years andam na estrada, transformando todos espaços por onde passam em gigantescas pistas de dança.
Esta quinta-feira à noite, no festival Kalorama, não foi diferente. O público deixou-se contagiar pelo eletro-pop dançável dos Years & Years, as melodias que ficam no ouvido e a coreografia impecável e com a dose certa de arrojo, que se estende aos figurinos sensuais e ao cenário minimalista, mas funcional. Este resumiu-se a uma cabine telefónica colocada no meio do palco, por de trás da qual se esconderam os três back vocalists, que surgiram em palco antecedendo a entrada rompante de Alexander, de gabardina curta em vinil, semelhante à que envergava no vídeo de apresentação, projetado no ecrã gigante do palco.
Tudo na atuação dos Years & Years gira em torno do vocalista, desde os vídeos que acompanham o concerto, espécie de curtas-metragens que exploram visualmente os temas das canções (o amor, a atração, a sensualidade) e que têm Alexander como personagem principal, à coreografia, passando pela forma como a sua voz se eleva acima da dos três cantores que o acompanham, mas sem os excluir.
Em palco, Alexander é a estrela do seu universo. Simpático, afável e carismático, não exclui quem o vê (“Boa noite, Lisbon”, começou por dizer, com um sotaque de português do Brasil), mas antes abraça-o, transportando-o para o seu universo dançável, que, na noite desta quinta-feira, se fez de temas tirados do seu mais recente álbum, o ainda fresco e sexy Night Call, lançado este ano, mas também de hits antigos, como “Shine” e “King”, do álbum de estreia, Communion (2015).
Perto da reta final do concerto, sentou-se ao piano para tocar os primeiros acordes de “It’s a Sin”, tema de “uma das bandas mais icónicas de sempre”, os Pet Shop Boys. Às 22h em ponto, Alexander abandonou o palco, para dar lugar os míticos Kraftwerk (os 2ManyDjs, que vinham a seguir, acabaram por ser cancelados “devido a conflitos de som entre os palcos MEO e Colina”, não chegando a estar nem dez minutos em cima do palco), que se prepararam para assumir os lugares marcados no palco secundário do Kalorama, o Colina, na outra ponta do recinto. Foi um exemplar regresso do britânico a Portugal, desta vez perante um recinto cheio e pronto para o receber.
Madrugada entre batidas de Moderat e o balanço de Marina Sena
Na ponta final da noite, ainda os The Chemical Brothers atuavam no palco principal (e ainda não se tinha ouvido “Galvanize”), já a multidão se começava a deslocar lentamente em direção ao palco Colina, onde os Moderat, outro grupo alemão, eram esperados para encerrar o primeiro dia do Kalorama. A noite não estava quente, mas o espaço junto ao Colina transbordava de calor humano com uma nova enchente a provar que, no que diz respeito à música eletrónica, os alemães permanecem reis.
Geralmente descritos como um “supergrupo”, os Moderat nasceram em 2002, em Berlim, a partir da conjugação perfeita da voz de Sascha Ring com as batidas eletrónicas de Gernot Bronsert e Sebastian Szary, o duo que compõe os Modeselektor. Com Ring, Bronsert e Szary encontraram um tom mais suave, que se torna quase etéreo quando conjugado em palco com o cenário minimalista dos espetáculos dos Moderat. Entre a luz e a sombra, o grupo apresentou no Kalorama alguns dos temas do novo álbum, More D4ta, editado em maio passado, e também temas mais antigos, num alinhamento que não terá desiludido nenhum fã. Depois da explosão de Chemical Brothers, foi um fim de noite mais modesto, mas igualmente dançável na Bela Vista.
Menos concorrido do que a atuação dos Moderat foi o concerto, à mesma hora, da brasileira Marina Sena, que ainda assim atraiu uma quantidade assinalável de público. Era percetível a expectativa para ver uma das novas figuras emergentes da pop brasileira, que andará certamente à procura de capitalizar e repetir o sucesso retumbante de “Por Supuesto”, tema que na plataforma de streaming Spotify, por exemplo, conta já com mais de 90 milhões de plays.
Com apenas um álbum completo editado, De Primeira, lançado no ano passado, Marina Sena é um fenómeno pop em franco crescimento, alguém que tem já um culto crescente em seu redor — vimo-lo bem, na quantidade de pessoas (muitas das quais, convém dizer, brasileiras) que conheciam as letras das suas canções.
Não terá sido por este concerto, porém, que o culto cresceu. Logo no arranque o som fraquejou e se mais à frente subiu de volume, nunca ficou perfeito. A insuficiência técnica, porém, não explica tudo. Ao vivo, ainda faltam algumas coisas a Marina Sena para que um concerto seu seja imaculado, desde afinação na voz — que, exposta sem maquilhagens de produção, revela-se um problema sério — até uma quantidade maior de canções com qualidade próxima a “Por Supuesto” e sobretudo a “Me Toca”, com o seu refrão catchy, um balanço tropical e sensual e um casamento feliz entre esse ritmo insinuante e a ótima letra.
Quanto a nós, “Me Toca” é não só “A” grande canção de Marina Sena como aquela que, por agora, melhor é transposta para palco. Mas, podendo ser injusto tomar como amostra este concerto (porque o som, efetivamente, não esteve perfeito), a impressão com que ficámos é que à popularidade da cantora ainda não equivale nem um grande corpo de canções, à prova de bala, nem um grande concerto. Haveremos certamente de revê-la com outros argumentos, porque a sua ascensão na pop brasileira parece já impossível de travar. Se possível, sem aquela versão infeliz de “La Isla Bonita”, de Madonna.
Ao longo deste primeiro dia, passaram ainda pelos três palcos do festival Rodrigo Leão, Xinobi, Bomba Estéreo, Fred, D’Alva, Jake Shears e a curadoria Chelas é o Sítio. O festival prossegue esta sexta-feira com atuações de Arctic Monkeys, Jessie Ware, Roisin Murphy, Bonobo, Alice Phoebe Lou e Bruno Pernadas, entre outros.