O cancro é uma doença cada vez mais diagnosticada: em 2020 registaram-se 19,3 milhões de novos casos e cerca de dez milhões de mortes relacionadas com doenças oncológicas. Também há cada vez mais fármacos eficazes para os combater, mas a maioria afeta não só as células “más” e doentes, como também as “boas” e saudáveis. E é isso que causa alguns dos efeitos secundários típicos dos tratamentos de quimioterapia, como as náuseas, vómitos, perda de cabelo, diminuição dos glóbulos brancos e plaquetas e suscetibilidade a infeções.
Devido a esta toxicidade, a investigação relacionada com o tratamento do cancro tem passado cada vez mais por terapias-alvo, muito seletivas, que se dirigem exclusivamente às células malignas, sem afetar as outras. Ora, para isso é preciso encontrar características distintivas nas células cancerígenas que possam funcionar como um alvo para os tratamentos. E recentemente encontrou-se mais uma: o metabolismo do ferro.
“Temos dois tipos de ferro no nosso organismo: o ião férrico – Fe(III) –, que representa cerca de 99 por cento do total, e o ião ferroso – Fe(II) –, que representa apenas um por cento. Foi descoberto e documentado há uns anos que esse um por cento, o ião ferroso, está aumentado em células cancerígenas quando comparado com os tecidos saudáveis”, explica Diogo Magalhães e Silva, investigador da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. “O que desenvolvi foi tecnologia química que, ao reagir com o ião ferroso, provoca a libertação de fármacos anticancerígenos.”
O autocarro – que é a solução química que desenvolvemos – tem um número fixo de passageiros: o fármaco. Mas só abre a porta para saírem passageiros quando detecta ião ferroso. Quando não o deteta, os passageiros não descem.”
É com esta analogia que o investigador de 30 anos – licenciado em Química pela Universidade do Porto e prestes a concluir o doutoramento em Farmácia pela Universidade de Lisboa – gosta de explicar o mecanismo de ação. Por outras palavras, a tecnologia química liberta uma maior quantidade do fármaco para as células cancerígenas, poupando assim as saudáveis, o que evita efeitos secundários.
O metabolismo de ferro em que o investigador está a trabalhar encontra-se alterado em muitos tipos de cancro, mas, de momento, Diogo Magalhães e Silva está focado no cancro colorectal que, segundo os dados de 2020, é o terceiro mais incidente no mundo e o segundo mais mortal nos países ocidentais. Os estudos preliminares, em células vivas, que saíram precisamente do projeto de doutoramento, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), já mostraram que o composto tem menos toxicidade quando comparado com fármacos atualmente usados na clínica. É bom, dá boas publicações em revistas científicas, mas para o investigador não chega. “A tecnologia está interessante do ponto de vista científico, mas ainda não suficientemente interessante para atrair investimento de farmacêuticas ou de capital privado.”
E este ponto é essencial, porque só com investimento privado é possível suportar os custos de milhões de euros que implicam as fases mais avançadas do desenvolvimento de um produto farmacêutico. “Fazer uma produção industrial e ter um pacote de dados que possa avaliar a segurança, toxicidade e propriedades farmacocinéticas é algo que pode custar entre um e dois milhões de euros. Já um ensaio clínico de fase I pode custar entre 10 e 15 milhões. Já não há bolsas de investigação que cubram este tipo de valores, é necessário investimento de privados”, diz o cientista. E, claro, para haver investimento privado tem de haver a convicção de que o produto vingará e é um bom investimento.
Diogo lança-se então, com entusiasmo, num mundo de palavras e conceitos pouco ouvidos dentro de laboratórios de química medicinal: ajuste do produto ao mercado, proposta de valor, estratégia de mercado, start-up, spin-off. O seu mundo não é só feito do metabolismo do ferro, de pipetas e culturas de células. Ele domina a linguagem do mercado, interessa-se por ela e há uma explicação para isso: foi bolseiro Fulbright para a investigação com o apoio da FCT na Universidade da Califórnia, em São Francisco, em 2019. E trouxe uma coisa que não poderia ter ido buscar a mais sítio nenhum: a famosa mentalidade de Silicon Valley, fundada numa predisposição para correr riscos, para a colaboração e, sobretudo, para o empreendedorismo. “Posso estar a fazer a melhor ciência do mundo na minha bancada do laboratório, mas, se não a souber explicar e se não tentar criar valor social com ela, isso não adianta de nada.”
Chegado a Portugal, encontrou pouco entusiasmo por estas ideias, mas procurou forma de continuar a fazer esse caminho. Fez a StartUp Research, uma pós-graduação desenhada por investigadores e empreendedores, a funcionar no Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier (ITQB/NOVA) e na NOVA SBE, que sensibiliza os investigadores para a criação de valor que a sua ciência pode gerar. Depois candidatou-se ao StartHealth@ULisboa, um programa de aceleração de ideias e negócios promovido pela redeSaúde da Universidade de Lisboa e venceu a edição de 2021.
Com a bolsa CaixaResearch Validate, da Fundação “la Caixa”, que venceu este ano, está a continuar esse caminho de empreendedorismo. “Estou a certificar-me em transferência de tecnologia através da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, adquirindo mais conhecimento na área de empreendedorismo, desenvolvimento de produto, técnicas de negociação, aspectos financeiros, propriedade intelectual, desenvolvimento de ensaios clínicos e contacto com entidades regulatórias.”
O objetivo é sempre o mesmo: acelerar a chegada do produto ao mercado. “Acredito que um cientista tem essa responsabilidade: empenhar-se em conseguir fazer a transferência de tecnologia, do laboratório para o mercado, para benefício dos doentes e da sociedade, o mais rapidamente possível.” Se for bem-sucedido, abrir-se-á mais uma porta a um novo sistema de administração da quimioterapia dirigida à assinatura metabólica das células tumorais que pode melhorar a esperança e qualidade de vida dos doentes com cancro.
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto sobre melhoria da eficácia dos tratamentos contra o cancro reduzindo a sua toxicidade, liderado por Diogo Magalhães e Silva, investigador da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, foi um dos 15 selecionados (quatro em Portugal) – entre 110 candidaturas internacionais – para financiamento (setenta mil euros) pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do CaixaResearchValidate, um programa que promove a transformação do conhecimento científico criado em centros de investigação, universidades e hospitais em empresas e produtos que geram valor para a sociedade. As candidaturas para a edição de 2023 deverão abrir em novembro.