De todos os monstros, a múmia é provavelmente aquele que recebeu menos atenção e que, por isso, teve menos impacto cultural. Mas houve uma altura em que a egiptomania e o enorme entusiasmo por tudo o que era relacionado com o Antigo Egito deram origem a uma corrente literária específica dentro do género gótico, caracterizada pela exploração dos elementos típicos do gótico, como a morte e o oculto, juntamente com temas retirados da Egiptologia, que dava ainda os primeiros passos, e preocupações políticas relacionadas com o imperialismo e o colonialismo, abordadas em muitas obras da literatura gótica.
A Egiptologia enquanto disciplina surgiu apenas na década de 1820, com a decifração da escrita hieroglífica pelo francês Jean-François Champollion. A descoberta de Champollion incentivou uma série de pioneiros, como os também franceses Auguste Mariette e Gaston Maspero, que, na primeira metade do século XIX, se aventuraram na exploração dos antigos monumentos egípcios, soterrados pelas areias do deserto. Depois de Maspero, uma influência decisiva para os egiptólogos do início do século XX, a disciplina tornou-se cada vez mais profissional, científica e diversificada.
Segundo a crítica Ailise Bulfin, as histórias de múmias tornaram-se populares durante a polémica construção do Canal do Suez, entre 1859 e 1869, que permitiu a circulação de navios entre a Europa e a Ásia Meridional sem terem de contornar a costa africana. Mas foi a escavação de importantes locais arqueológicos, como os túmulos do Vale dos Reis, que mais pesou no nascimento do fascínio por todas as coisas egípcias que tomou conta da sociedade britânica do final do século XIX. A “febre” egípcia influenciou a produção de joelharia, cerâmica e até a arquitetura (por essa altura, tornou-se usual a construção de uma “sala egípcia” nas grandes casas senhoriais). Os romances do período dão conta de um interesse mais ou menos generalizado pelo tema entre a elite britânica – eram muitos os que de uma forma mais ou menos profissional se dedicavam ao estudo da história do Egito Antigo, através da leitura de obras sobre o tema ou do colecionismo, muitas vezes feito à revelia das autoridades egípcias.
Em 1922, a descoberta do túmulo de Tutankhamon, no Vale dos Reis, por Howard Carter e Lord Carnarvon insuflou uma nova vida à egiptomania, que se transformou então numa verdadeira “Tutmania”. A história da maldição do faraó, que terá sido responsável pela morte precoce de todos os que estiveram presentes na abertura do túmulo, teve um importante impacto literário – depois de Tutankhamon, a maldição da múmia instalou-se definitivamente como o tema preferencial das histórias inspiradas pelo Antigo Egito.
Entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, foram publicadas inúmeras histórias “egípcias”. A grande maioria girava em torno da maldição lançada por uma múmia vingativa sobre aqueles que ousaram perturbar o seu eterno descanso. Inglaterra foi, desde o início, o centro desta egiptomania literária, mas foram publicadas obras também noutros países de língua inglesa, como os Estados Unidos da América. A obra literária mais famosa do período é The Beetle, de Richard Marsh, que foi publicado no mesmo ano que Drácula (1897), de Bram Stoker. Apesar da popularidade de Drácula nos dias de hoje, o romance de Richard Marsh superou inicialmente em número de vendas a obra de Stoker, sendo hoje conhecido apenas por isso. O próprio Stoker não ficou alheio à “febre” egípcia — a temática inspirou um dos seus melhores romances, The Jewel of Seven Stars, publicado em 1903 e revisto em 1912, pouco antes da morte do autor.
Além destes dois romances, selecionámos outras três histórias que vale a pena ler e que estão disponíveis gratuitamente online em inglês e noutras línguas:
“Lost in a Pyramid; or, The Mummy’s Curse” (1869)
Louisa May Alcott
Ficou conhecida por Mulherzitas, mas a carreira literária de Louisa May Alcott não se resumiu a este romance ou à sua sequela, Boas Esposas. Para tentar fazer dinheiro, May Alcott escrevia, sob pseudónimo, contos e histórias de suspense, com personagens femininas independentes e passadas em lugares elegantes e exóticos, que tentava vender a revistas femininas. Um dos seus contos mais famosos, e um dos mais populares inspirados pela temática egípcia, é “Lost in a Pyramid; or, The Mummy’s Curse”. Publicado originalmente na New World em janeiro de 1869, o conto é considerado uma das primeiras histórias sobre a maldição de uma múmia. “Lost in a Pyramid” fala sobre as consequências negativas da escavação e abertura de antigos túmulos egípcios.
A história está disponível gratuitamente no repositório digital Project Gutenberg.
“Lot No. 249” (1892)
Sir Arthur Conan Doyle
Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, foi responsável por aqueles que são talvez os melhores contos inspirados no Antigo Egito. Um deles, este “Lot No. 249”, foi publicado pela primeira vez na Harper’s New Monthly Magazine em outubro de 1892 e tem, desde então, integrado quase todas as antologias de histórias clássicas de múmias, como a que foi editada pela British Library em 2016. A história passa-se na Universidade de Oxford, onde uma misteriosa figura (que se descobre ser uma múmia comprada num leilão) ataca os estudantes que entram em confronto com outro aluno, Edward Bellingham. O conto reflete uma preocupação pela existência de artefactos egípcios possivelmente amaldiçoados em solo inglês, que o romance The Jewel of Seven Stars de Bram Stoker também expressa.
Além desta curta história, Conan Doyle escreveu um outro famoso conto egípcio, “The Ring of Thoth”. A história, originalmente divulgada na The Cornhill Magazine em janeiro de 1890, integrou posteriormente a coletânea The Captain of the Polestar, and Other Tales, que saiu no mesmo ano. O enredo gira em torno do estranho encontro de um estudante de Egiptologia com um homem que tenta acordar uma múmia em exposição no Museu do Louvre, em Paris.
Ambos os contos estão disponíveis online, no Project Gutenberg e na The Arthur Connan Doyle Enciclopedia.
The Beetle: A Mystery (1897)
Richard Marsh
Provavelmente o melhor romance egípcio, e o mais famoso no seu tempo, The Beetle: A Mystery, de Richard Marsh, conta a história de uma múmia (que tem a particularidade de conseguir alterar a sua forma e de se transformar, por exemplo, em escaravelho), que se tenta vingar de um influente deputado e orador britânico com o qual se cruzou muitos anos antes, no Egito. Cada capítulo é relatado da perspetiva de uma personagem diferente, seguindo um modelo semelhante ao de Drácula, de Bram Stoker. Um thriller intenso e viciante, é fácil perceber porque é que, inicialmente, o inteligente romance de Marsh, pseudónimo do prolífico escritor inglês de histórias de suspense e terror Richard Bernard Heldmann, superou em vendas a obra-prima de Stoker. Mais recentemente, The Beetle tem gerado interesse entre os académicos de diferentes áreas, por abordar questões tão diversas como o imperialismo e colonialismo, o género e a identidade.
The Beetle: A Mystery está disponível online no Project Gutenberg, que tem também outras obras de Marsh.
The Jewel of Seven Stars (1903)
Bram Stoker
Considerado o melhor romance de Bram Stoker a seguir a Drácula, The Jewel of Seven Stars gira em torno da tentativa, levada a cabo por um lorde inglês com a ajuda de um grupo de amigos, de ressuscitar uma antiga rainha e feiticeira egípcia, cuja múmia ele descobriu num túmulo secreto no deserto. A obra explora temas comuns na literatura gótica do período, como o imperialismo, o progresso social e o papel da mulher. O oitavo romance de Stoker foi publicado pela primeira vez em 1903, pela editora londrina Heinemann, tendo recebido pouco crédito na altura. Pouco antes de morrer, o autor irlandês reviu a obra, alterando-lhe o final e subtraindo-lhe o 16.º capítulo. Essa nova edição, que saiu em 1912, terá sido motivada pelos pedidos dos editores de Stoker, que queriam um final “mais feliz”. Esta versão dos factos foi relatada por Harry Ludlam, que publicou uma biografia do escritor nos anos 70, mas não existe nenhuma prova que confirme que foi essa a motivação de Stoker.
As duas versões do romance, de 1903 e 1912, estão disponíveis para download aqui.
The Living Mummy (1910)
Ambrose Pratt
Ao contrário das histórias anteriores, The Living Mummy, do australiano Ambrose Pratt, não se passa na Europa, mas no Egito, onde a abertura de um túmulo corre, naturalmente, mal. O romance explora, à semelhança de “Lost in a Pyramid” de Louisa May Alcott, as consequências negativas da escavação e abertura de antigos túmulos egípcios, sugerindo que não se deve perturbar o descanso dos seus ocupantes. Obra fascinante, The Living Mummy está à altura do seu autor — uma figura igualmente impressionante: terceiro filho de Eustace Pratt, um médico fluente em mandarim que passou algumas temporadas na Índia e China, Pratt foi criado por uma ama asiática, teve tutores franceses e alemães e aulas de boxe, equitação e esgrima. Formado em Direito, preferia, no entanto, viajar a estar na barra do tribunal. Foi durante uma visita a Inglaterra que começou a colaborar com revistas literárias, onde publicou contos de terror e policiais, e se iniciou no jornalismo, no Daily Mail. Depois de se reformar, dedicou-se à preservação da fauna e flora australianas e à defesa dos povos indígenas.
O romance The Living Mummy está disponível online no Project Gutenberg.