Talvez não haja melhor memória do que a do sistema imunitário. Nós esquecemos nomes, caras, histórias antigas. O corpo, através da “memória imunológica”, reconhece sempre – e por vezes para sempre – qualquer substância estranha com a qual alguma vez tenha contactado.
Desta extraordinária memória decorre uma capacidade que se pode resumir no aforismo “Tudo o que não nos mata, torna-nos mais fortes”. Quando temos contacto com um agente agressor externo – e sobrevivemos – o conjunto de órgãos, células e processos biológicos responsáveis por nos proteger das doenças aprende a reconhecer o invasor e a lutar contra ele, tornando-nos, efetivamente, mais resistentes e melhor preparados do que antes.
Por tudo isto, o cientista Luís Graça, que estuda o sistema imunitário há 25 anos, descreve-o como “fascinante”. E uma das suas habilidades mais extraordinárias resume-se assim: “não sabemos que vírus causará a próxima pandemia, mas sabemos que o nosso sistema imunitário será capaz de produzir anticorpos contra ele”. Porque consegue sempre. Evoluiu para isso. Para identificar e responder a qualquer vírus que surja. “Isso é possível porque temos células B e T, que têm receptores capazes de identificar as proteínas de tudo aquilo que surgir na natureza. Tudo.”
Essa é a força do sistema imunitário, mas ela não vem sem uma fraqueza. “Para cada uma destas proteínas, temos inicialmente poucos linfócitos B e T capazes de responder”, diz o investigador do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM) e vice-diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Isso significa que a resposta inicial pode não ser robusta o suficiente para evitar consequências graves ou mesmo fatais. Assim, o princípio explorado pelas vacinas é oferecer ao corpo uma memória: um primeiro contacto, em segurança, com os agentes agressores, como os vírus.
Aquilo que conseguimos com uma vacina – ou com uma resposta imunitária normal – é um aumento do número de células capazes de reconhecer as moléculas específicas do vírus e de produzir anticorpos.”
O princípio das vacinas é tão eficaz que foi responsável pela erradicação da varíola e pela quase erradicação da poliomielite. E olhando para doenças que continuam em circulação, como a gripe e a Covid-19, os estudos mostram, com clareza, que a vacinação reduz muito as consequências graves e a mortalidade, independentemente da idade. Apesar disso, há um “mas”: sabe-se que estas vacinas são menos eficazes em alguns grupos populacionais, nomeadamente nos idosos.
A razão é simples: as vacinas usam uma resposta normal do sistema imunitário e o de um idoso é menos competente. “Sabemos que, com a idade ou com algumas doenças que o afetam, o sistema imunitário perde a capacidade de responder de uma forma tão eficaz às ameaças externas”, diz Luís Graça. A diminuição de eficácia vacinal é uma consequência da diminuição dessa capacidade natural de gerar uma resposta protetora.
Mas o cientista acredita que a eficácia das vacinas tem margem para ser melhorada. E é isso que tentará fazer com o projeto “Controlo da regulação do centro germinativo para melhoramento da eficácia das vacinas”, financiado em quinhentos mil euros ao abrigo da edição de 2022 do concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde, promovido pela Fundação “la Caixa”. A investigação reúne especialistas em vacinas, nanopartículas e biologia computacional que vão estudar uma nova estratégia que visa potenciar a reação do sistema imunitário dos mais velhos, melhorando a resposta à vacinação.
Para isso vão tentar intervir onde tudo acontece: o centro germinativo, a estrutura que as raras células B e T (que reconhecem as proteínas do vírus) formam para colaborar entre si. O centro germinativo (ou germinal) funciona como uma escola. “As células T são as professoras e ensinam as células B a produzir anticorpos cada vez melhores.” A vacinação já maximiza esse processo, mas Luís Graça vai tentar melhorá-lo, usando nanopartículas para a administração de antígenos e compostos imunomoduladores.
“Temos razões para acreditar que podemos tornar as células T melhores professoras, fazer com que sejam mais eficazes a ensinar as células B”, detalha o investigador. Este seria um processo adaptável a várias vacinas, podendo vir a ter especial importância na vacina da gripe.
Cada dia, um novo dia
Luís Graça, 50 anos, licenciou-se em Medicina em 1995 pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Dois anos depois decidiu fazer um doutoramento em Imunologia da Transplantação, na Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Passar das consultas à investigação foi como passar das corridas de velocidade de cem metros para a maratona: um teste à resistência. Recorda-se que durante os primeiros anos sentia saudades de ver pacientes. “Na clínica temos uma resposta muito mais rápida às nossas ações: vemos um doente, fazemos alguma coisa, o doente melhora. Há uma recompensa muito imediata.” No doutoramento, pelo contrário, “podiam passar-se semanas ou meses de trabalho sem nenhum retorno muito palpável desse investimento”.
Hoje, com a progressão na carreira – e sendo coordenador de um laboratório onde decorrem muitos projectos em simultâneo – acabou por recuperar o prazer de ter todos os dias uma pequena recompensa, seja o resultado de um projecto, uma decisão para tomar ou um desafio para resolver.
Na verdade, os dias do cientista não podiam estar mais longe da monotonia. Há muito a ocupá-los: além de coordenar, no iMM, o grupo de investigação em Regulação de Linfócitos, é professor catedrático, regente da cadeira de Imunologia, e vice-diretor da Faculdade de Medicina, além de coordenador-adjunto da Comissão Técnica de Vacinação contra a COVID-19 da Direcção Geral de Saúde. Foi também, até ao ano passado, presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa.
Por isso, Quando tem de preencher um formulário, hesita no campo “profissão”. “Não tenho um padrão de resposta. Às vezes sinto-me mais professor, outras mais investigador. É uma dúvida saudável, que reflete bem a interacção entre duas realidades: às vezes estamos a ensinar, outras a aprender e a descobrir coisas novas.”
Esse é justamente um dos fascínios da investigação: oferece uma espécie de prolongamento da infância. “Desde que somos crianças gostamos de descobrir coisas novas e, enquanto investigadores, continuamos a fazê-lo. Todos os dias são um dia novo. Estamos hoje a trabalhar em coisas que há dez anos não sabíamos que existiam.”
Luís Graça tem dado contribuições para a ciência de que se orgulha. Como a descoberta de um tipo de células T, por exemplo, as Tfr, especializadas na regulação da produção de anticorpos e prevenção do surgimento de autoimunidade. Ou o estudo, publicado a 31 de agosto deste ano, na prestigiada New England Journal of Medicine, que mostra o risco de reinfecção com a variante actualmente dominante de Covid-19, a BA.5, em pessoas previamente infetadas com outras variantes, como a BA.1. É um trabalho importante “porque mostra que as vacinas bivalentes, que estamos a usar, têm efetividade contra a variante em circulação”.
Apesar disso, aquilo que mais satisfação lhe deu recentemente foi o contributo pessoal, do seu grupo de investigação, do iMM e da comunidade científica em geral, para a resposta à pandemia. “Num momento difícil para todos, foi uma grande satisfação poder contribuir para a sociedade de uma maneira rápida e imediata.” No início da pandemia, lembra, quando o uso de testes ainda não estava generalizado, foi no iMM que foram testadas muitas amostras vindas de lares, o que fez uma enorme diferença na saúde individual e na saúde pública.
A memória do sistema imunitário
A pergunta “O que é que queria muito saber, em termos científicos, que ainda não se sabe?” causa no investigador um silêncio invulgarmente prolongado. “Estou a tentar priorizar”, justifica a rir. A escolha acaba por recair sobre a capacidade de regulação do sistema imunitário que, de uma assentada, poderia resolver problemas muito diferentes. “Queria saber de que forma poderíamos ‘ligar’ e ‘desligar’ o sistema imunitário, de maneira controlada, como se fosse um interruptor. Ligando-o para ter uma resposta otimizada contra infecções e cancros, desligando-o para evitar a resposta excessiva que causa doenças autoimunes e alergias.”
O funcionamento do sistema imunitário, que já era um interesse quando era clínico e a que se dedicou totalmente como investigador, também o tem levado a explorar a intersecção entre ciência e arte. Pelo seu laboratório já passaram mais de dez artistas, que procuram nestas residências novas formas de discurso. “São sobretudo artistas visuais, que incorporam ferramentas de tecnologia e de biologia nas suas obras, de forma a transmitir mensagens sobre coisas não-científicas, como a individualidade ou a paixão.”
Uma das artistas que passou pelo laboratório foi a sua própria mulher, a artista visual Marta de Menezes, com quem o cientista já fez dois trabalhos colaborativos. O primeiro foi a obra Immortality for Two, em que criaram em laboratório células imortais do sangue de ambos, que são expostas em dois frascos pequenos, em pontos opostos de uma mesa. “Existe um microscópio escondido que tira imagens em tempo real das células e as projecta no tampo da mesa, usado como ecrã. A ideia da Marta foi explorar a ideia de que a imortalidade tem sempre um preço e, neste caso, é o isolamento perpétuo: as células do sistema imunitário, se estiverem em contacto, vão destruir-se umas às outras.” O único ponto em que elas podem estar juntas é no espaço virtual, no centro da mesa, onde as duas projecções de vídeo se sobrepõem.
Na segunda peça, Anti-Marta, reproduziram as experiências desenvolvidas nos final dos anos 1960 para identificar as regras da histocompatibilidade – que permitem fazer a correspondência entre dador e receptor de transplantes. Com a ajuda de um cirurgião, Marta e Luís fizeram transplantes de pequenos círculos de pele, com cerca de um centímetro de diâmetro, do antebraço de um para o do outro. “Foram ambos rejeitados, como calculávamos que iria acontecer. A ideia foi explorar o conceito da identidade.” A instalação é apresentada também numa mesa em que os visitantes são convidados a colocar o seu próprio antebraço, sendo que é sobre ele que são projectadas as imagens da cirurgia e um time-lapse dos transplantes a serem rejeitados.
Mas ao mesmo tempo que a obra mostra os limites da identidade, também mostra como essa extraordinária capacidade do sistema imunitário – a memória – cria laços eternos com tudo o que contacta. “O transplante resulta na aquisição de um novo sentido, uma espécie de sexto sentido, para ambos: uma vez que a rejeição conduz à produção de anticorpos. Ao nível molecular, as células de cada um de nós adquiriram a capacidade de reconhecer o outro para sempre.”
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Harnessing Germinal Centre Regulation for ImprovedVaccines, liderado por Luís Graça, do Imm, foi um dos 33 selecionados (13 em Portugal) – entre 546 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do Concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde. O investigador recebeu 500mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2022 encerram a 15 de novembro.