Giulia Ghedini já esteve num impasse entre escolher estudar o universo da evolução ou da ecologia. A investigadora italo-australiana resolveu assim essa questão: “Tomei a decisão quando percebi que a ecologia me obrigaria a ir mais vezes ao terreno, porque sempre tive uma relação especial com a natureza e queria estar mais tempo perto dela.”

Mas a escolha do rumo da evolução científica deu-se quando leu o livro “O Gene Egoísta [no original em inglês The Selfish Gene, de 1976] do ​​etólogo e biólogo evolutivo britânico Richard Dawkins. “Usei-o para fazer uma dissertação no secundário e fiquei maravilhada pelo mundo da Biologia.”

Há um ano em Portugal, com uma bolsa Junior Leader da Fundação “la caixa”, a cientista é fundadora e líder do grupo de investigação Ecologia Funcional no Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, com o proposta “Competição e a evolução dos fluxos de energia das comunidades” de fitoplâncton. O projeto tem uma colaboração com a cientista portuguesa Isabel Gordo, líder mundial em biologia evolutiva, conhecida por estudar a evolução bacteriana no contexto dos ecossistemas.

Giulia quis ficar mais perto da biologia evolutiva e o IGC, enquanto centro de investigação multidisciplinar, oferece-lhe as condições perfeitas para responder a três questões matriciais:

  1. “Como é que o ambiente competitivo dessas comunidades afeta o ritmo a que as espécies evoluem e os seus efeitos no fluxo energético da comunidade?”
  2. “Qual é o papel das bactérias na condução da evolução?”
  3. “Será que a coevolução aumenta a estabilidade e a eficiência dessa comunidade?”

Ora, uma vez que nenhuma espécie ocorre isoladamente, as mudanças ecológicas e evolutivas no metabolismo em resposta à concorrência são relevantes para compreender a maioria dos sistemas biológicos.

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No Instituto Gulbenkian de Ciência, a cientista lidera o grupo de investigação em Ecologia Funcional

A investigadora apresenta-se como ecologista, interessada na interseção dessas questões para “compreender os mecanismos que regulam o funcionamento das comunidades ecológicas”, utilizando o “fitoplâncton marinho para desvendar a interação entre o metabolismo dos organismos, as interações entre espécies, e o funcionamento das comunidades.”

“A nossa equipa estuda como a competição pelos recursos altera o metabolismo do fitoplâncton para influenciar a produtividade dos oceanos agora e face às alterações climáticas. Isto é importante também para a sustentabilidade da pesca, uma vez que muitas unidades populacionais de peixes se alimentam de fitoplâncton.” Além disso, reflete: “de uma maneira geral, como todas as espécies competem por recursos, o nosso trabalho pode revelar mecanismos fisiológicos que influenciam a produtividade das comunidades e, por exemplo, a emergência de resistência aos antibióticos nas bactérias, mas não trabalhamos diretamente sobre isto, a ligação é através dos mecanismos que podemos desvendar”.

E porquê o fitoplâncton? Ele é composto por organismos aquáticos, constituído por seres fotossintéticos de pequenas dimensões, nomeadamente certas bactérias e algas microscópicas e filamentosas e é um bioindicador com sensibilidade e capacidade para responder às alterações ambientais de forma rápida. É indispensável para que o oceano respire e equilibre o planeta terra.

Ecologicamente, [o fitoplâncton] desempenha um papel vital nos nossos oceanos. Não só constitui a base das teias alimentares marinhas, como fornece metade do oxigénio e da absorção de carbono do mundo. É um sistema perfeito para casar ecologia e evolução, porque assim podemos estudar tanto aspetos ecológicas, como competição e a evolução.”

Logo, argumenta a investigadora, “compreender como a concorrência influencia a evolução da utilização de energia fitoplâncton é primordial para antecipar as mudanças na produtividade marinha”. A questão é que ainda não se sabe como a utilização de energia evolui nas comunidades.

Giulia Ghedini conseguiu recriar laboratorialmente condições de cenários futuros de aquecimento global e poluição, manipulando a temperatura da água, oxigénio e nutrientes

Giulia poderia ficar horas a falar da investigação, até porque, este admirável mundo novo do fitoplâncton como modelo de estudo experimental permite seguir diferentes caminhos de investigação, que podem trazer aportes científicos valiosos para os estudos de ecologia.

Saber melhor como as espécies evoluem nas suas comunidades é um desafio em biologia, na medida em que tem implicações abrangentes que vão desde a gestão da resistência bacteriana aos antibióticos e até à previsão de mudanças na produtividade sob influência das alterações climáticas”. Apesar de a evolução das comunidades ser um universo de estudo pertinente, com a devida ressalva para o mundo das bactérias, ele permanece inexplorado no que diz respeito à maioria das espécies.

”Viver numa comunidade pode ser positivo ou negativo: há espécies co-concorrentes que podem aumentar a competição pelos recursos, só que também oferece novas oportunidades que não estão disponíveis para espécies isoladas”. É esses mecanismos que a equipa pretende identificar.

Giulia Ghedini com Moritz Klaassene, diretor do laboratório do grupo de Ecologia Funcional, na sala de fitoplâncton onde conduzem as experiências

Giulia está interessada em saber como a competição molda a evolução das espécies e o funcionamento das suas comunidades, uma vez que a evolução fornece pistas consistentes sobre a dinâmica ecológica, sobretudo numa espécie de vida rápida como o fitoplâncton.

Este projeto vai além das respostas fenotípicas de curto prazo para identificar as assinaturas da evolução, utilizando fluxos energéticos para ligar as espécies às comunidades. É uma abordagem considerada inovadora e que pode dar um contributo importante ao campo, integrando aspetos de ecologia, fisiologia e evolução.”

Ou seja, “desvendando os efeitos da competição na utilização de energia, proporcionarei um novo entendimento mecanicista para prever a evolução nas comunidades”. Além disso, “a resolução dos fatores impulsionadores do uso de energia do fitoplâncton é fundamental para gerir os orçamentos da pesca e do carbono, porque o fitoplâncton sustenta as teias alimentares marinhas e captura dez gigatoneladas de carbono da atmosfera todos os anos”. Ao acompanhar as mudanças na produtividade e eficiência do fitoplâncton, elucida, “informarei a política de gestão da pesca e de mitigação do clima.”

Para chegar até aqui, Giulia teve de percorrer, em 13 anos, cerca de 67 mil quilómetros entre a Europa e a Oceania. De uma pequena cidade na província de Rovigo, no nordeste italiano, rumou à Universidade de Ferrara, na Itália, onde fez a Licenciatura em Ciências Biológicas. Depois, em Sidney, na Austrália, fez uma especialização em Biologia Marinha, no Centre for Research on Ecological Impacts of Coastal Cities, “uma espécie de Mestrado onde fiz muito snorkelling e mergulho para conhecer e identificar a ecologia marinha”.

A investigação no Centre for Research on Ecological Impacts of Coastal Cities, na Austrália, permitiu a Giulia Ghedini tomar contacto com a ecologia marinha da Oceania

De seguida, em Pisa, concluiu o Mestrado em Biologia Marinha (“a minha paixão científica”). Já em Adelaide, na Austrália, doutorou-se em Ecologia, unindo o trabalho de campo, no mar, ao trabalho laboratorial. “Incidi a pesquisa dos mecanismos ecológicos que podem ajudar a estabilizar os ecossistemas sob a influência das alterações climáticas, estudando as florestas de algas [kelp forest] e outras espécies como pequenas algas de relva [turf algae] que crescem muito rápido.”

Com esse estudo, Giulia conseguiu recriar, laboratorialmente, condições de cenários futuros de aquecimento global e poluição, manipulando a temperatura da água, oxigénio e nutrientes, para perceber como essas condições mudam o equilíbrio dessa ecologia e sua sobrevivência.

“A nossa equipa estuda como a competição pelos recursos altera o metabolismo do fitoplâncton para influenciar a produtividade dos oceanos agora e face às alterações climáticas”

Os resultados deste trabalho doutoral conduziram-na à investigação seguinte, em Melbourne, onde fez o primeiro pós-doutoramento, no Centre for Geometric Biology, na Universidade de Monash e, depois, enquanto bolseira de investigação na Escola de Ciências Biológicas da mesma universidade, “para investigar como os organismos absorvem e gastam energia nas suas populações e comunidades”, de uma perspetiva metabólica e da fisiologia da ecologia. Giulia ficou fascinada. “Compreendemos as consequências das interações entre espécies, tais como a competição, na utilização da energia a diferentes escalas, das espécies às comunidades.”

Agora, no IGC, Giulia estuda “como as interações entre espécies alteram o uso de energia e como a comunidade como um todo muda ao longo do tempo”. Em suma, “o trabalho está a colmatar uma lacuna entre a teoria metabólica, que escalona diretamente o metabolismo das espécies para prever as taxas comunitárias, e a ecologia comunitária, que considera como as interações entre espécies afetam as propriedades da comunidade.”

Para isso, a ecologista e a equipa estão já a combinar uma abordagem multidisciplinar, através de “medições eco-fisiológicas do consumo e produção de energia com a evolução experimental, potenciando novos avanços na genómica do fitoplâncton, para quantificar a mudança em três escalas: genes, fenótipos e comunidades”. Dessa forma, irão identificar alguns mecanismos graças aos quais as interações das espécies moldam os fluxos energéticos através das escalas biológicas.

No IGC, Giulia estuda a forma como as interações entre espécies alteram o uso de energia e como a comunidade como um todo muda ao longo do tempo

Depois, ao sinalizar a produtividade e a eficiência do fitoplâncton, “forneceremos nova teoria e novos dados para testar alterações em funções críticas dos oceanos, tais como a produção de oxigénio e a absorção de carbono.

Para já, os resultados sugerem que “há comunicação química entre espécies e esse é um mecanismo que afeta o metabolismo”. Depois, conseguiu provar que “o metabolismo do fitoplâncton evolui no prazo de dez semanas em resposta à competição”, além de ter criado um método eficaz para cultivar fitoplâncton dentro de uma comunidade e “estabelecer um quadro para estudar a evolução do metabolismo, tamanho e demografia de outras espécies de fitoplâncton.”

Esta informação é essencial para compreender como as comunidades irão mudar no futuro, uma vez que as alterações climáticas e a introdução de espécies estão a mudar a disponibilidade de recursos e a concorrência.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto de Giulia Ghedini no IGC foi um dos 45 selecionados (quatro de Portugal) – entre 635 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2021 do programa de bolsas de Pós-Doutoramento Junior Leader. A investigadora recebeu 30o mil euros por três anos. As bolsas Junior Leader apoiam a contratação de investigadores que pretendam continuar a carreira em Portugal ou Espanha nas áreas das ciências da saúde e da vida, da tecnologia, da física, da engenharia e da matemática. As datas para as candidaturas à edição de 2023 deverão ser conhecidas em breve.