Entre os séculos XVIII e XX, funcionaram na Irlanda as chamadas Lavandarias de Madalena. Estas instituições, geralmente geridas e financiadas por instituições católicas em parceria com o Estado irlandês, serviam para acolher as “mulheres caídas”, prostitutas ou mulheres que tinham tido relações sexuais sem serem casadas, uma transgressão grave num país ultra conservador e católico como a Irlanda. Estas mulheres eram obrigadas a trabalhar em lavandarias em condições sub-humanas, escondidas dos olhares alheios. Não podiam abandonar estas instituições — quem entrava para uma Lavandaria de Madalena, sabia que nunca mais sairia ou voltaria a ver a sua família. As mulheres que chegavam grávidas, viam os seus filhos serem-lhes retirados, levados para lares de mães solteiras ou vendidos a casais que não podiam engravidar, muitas vezes estrangeiros. Alguns morriam.

Não se sabe quantas raparigas e mulheres foram aprisionadas e obrigadas a trabalhar nas Lavandarias de Madalena até 1996, quando a última foi encerrada, ou quantos bebés morreram nestas instituições. A maioria dos registos foram destruídos. Os números que existem são estimativas por baixo — entre 10 mil e 30 mil mulheres terão passadas pelas Lavandarias de Madalena e nove mil crianças terão morrido em 18 instituições investigadas. Em 1993, uma descoberta feita no terreno de uma lavandaria a norte de Dublin permitiu ter uma ideia mais clara do que acontecia no interior destas instituições —nesse ano, foram descobertas as sepulturas de 133 mulheres, que tinham morrido há mais de 100 anos. Não havia certidão de óbito para a maioria. Em 2003, foram encontradas outras 22 sepulturas.

Título: “Pequenas Coisas Como Estas”
Autor: Claire Keegan
Tradutor: Inês Dias
Editora: Relógio D’Água
Páginas: 81

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É a cruel realidade das Lavandarias de Madalena que serve de pano de fundo a mais recente novela da irlandesa Claire Keegan, Pequenas Coisas Como Estas, publicado em Portugal no passado mês de outubro. O livro, finalista do Booker Prize de 2022, não aborda diretamente a questão das lavandarias, mas como, apesar de a população ter conhecimento do que se passava, nada fazia para lutar contra a exploração e violência de que essas mulheres eram alvo. O tema não é, também, abordado de forma direta, mas através de uma narrativa tensa, que vai avançando em crescendo, até revelar o lado negro de uma sociedade aparentemente normal que não tem nada a esconder.

A personagem principal não é uma mulher, mas um homem, Bill Furlong, um comerciante de carvão e pai de família de uma pequena localidade, New Cross, no condado de Wexford. Filho de uma mãe solteira, Furlong conseguiu fugir ao triste destino de outras crianças sem pai devido à boa vontade da Sra. Wilson, para quem a mãe trabalhava. Protestante, e por isso sem os preconceitos da comunidade cristã, e rica, Wilson acolheu Furlong debaixo da sua asa e permitiu-lhe crescer num ambiente acolhedor e sem dificuldades e completar os estudos elementares. Com esforço e dedicação, conseguiu estabelecer-se como o principal comerciante de carvão em New Cross no início dos anos 80, numa altura em que o carvão era ainda o principal combustível de aquecimento. A altura do Natal era a mais atarefada, e é na véspera da Consoada de 1985 que Pequenas Coisas Como Estas começa, com Bill Furlong atarefado e procurando despachar todo o trabalho a tempo de passar as festas com a família, a mulher e três filhas.

A narrativa acompanha o dia a dia de Furlong, enquanto ele, talvez inspirado pela época, se dedica a reviver melancolicamente as memórias da sua infância em casa da Sra. Wilson. As recordações tornam-se cada vez mais insistentes à medida que o Natal se aproxima e, sobretudo, após uma entrega no convento local, onde o comerciante de carvão é confrontado com uma realidade que até então desconhecia, a da lavandaria. Ao aperceber-se como os habitantes de New Ross fecham os olhos ao que se passa, com medo das poderosas freiras, que dominam económica e socialmente a localidade (uma referência à influência da Igreja Católica na sociedade irlandesa), o comerciante de carvão começa a por em causa a sua existência e deixa-se corroer pelos remorsos. Pode um só homem fazer a diferença? Furlong não sabe, mas decide agir. Apesar dos conselhos da mulher e amigos e da pressão exercida pela Madre Superiora, certa madrugada, regressa ao convento do Bom Pastor, comprometendo a sua existência e a da sua família. O que lhe acontece depois disso, não  é desvendado, cabendo ao leitor imaginar como Furlong, um herói improvável, conseguiu ultrapassar, ou não, a situação.

Claire Keegan é conhecida por publicar apenas esporadicamente (em 22 anos, publicou apenas quatro obras), Os seus livros são geralmente curtos, mas certeiros. A novela anterior, Foster, foi amplamente elogiada e o seu trabalho comparado ao de importantes escritores irlandeses, como Seamus Heaney e William Trevor. Publicado 11 anos depois de Foster, Pequenas Coisas Como Estas é um pequeno tesouro. Com uma escrita poderosa e frases de um lirismo surpreende (para ler e reler e reler), a curta novela, com os seus silêncios marcados, é reveladora do modo como as maiores atrocidades são ignoradas para proveito próprio. Denuncia da hipocrisia da sociedade irlandesa, Pequenas Coisas Como Estas é um hino aos heróis improváveis; àqueles que, com pequenos gestos de rebeldia, conseguem insuflar uma nova esperança aos lugares onde aparentemente ela já não existe.