A poeta portuguesa Ana Luísa Amaral e a sua tradutora para língua inglesa Margaret Jull Costa anularam o distanciamento, durante a pandemia, com a troca de poemas de autores preferidos, num exercício de tradução que resultou na antologia “50/50”.
Editada pela Avesso, “50/50 — Uma breve antologia bilingue” reúne 25 poemas de língua inglesa traduzidos para português por Ana Luísa Amaral e 25 poemas de língua portuguesa traduzidos para inglês por Margaret Jull Costa, através de mais de 450 anos de humanidade, “de William Shakespeare a Amy Lowell, de Sá de Miranda a Florbela Espanca”, cruzando testemunhos do dia-a-dia, visões, anseios e vozes de homens e mulheres, numa “celebração da amizade e da grande literatura” entre ambas, segundo a apresentação da obra.
“Ana Luísa foi uma excelente tradutora, particularmente atraída por escritores difíceis, nomeadamente Emily Dickinson e William Shakespeare”, escreveu Margaret Jull Costa, no obituário dedicado à poeta portuguesa, que morreu no passado dia 06 de agosto, aos 66 anos.
“Tinha uma memória fenomenal e podia recitar de cor tanto os seus próprios poemas como os de outros autores”, prosseguiu a tradutora britânica, nesse testemunho escrito para o jornal The Guardian, a 24 de agosto, sublinhando a obra “linguisticamente aventureira e lúdica” de Ana Luísa Amaral, marcada pelos “seus conhecimentos de português e de outras literaturas, mas principalmente pelo seu amor à sua própria língua e ao mundo”.
As características marcam as escolhas da poeta portuguesa, que abre a seleção com o Soneto 4 de Shakespeare – “Tu, graça imprevidente, porque vais esbanjar a herança que a ti a beleza legou?” -, acrescentando mais um à série de 31 que em 2015 publicara na Relógio d’Água.
“Sol nascente”, de John Donne, os “belos narcisos que cedo morrem”, de Robert Herrick, o “Gato Jeoffrey”, de Christopher Smart, e o “Tigre”, de William Blake, sucedem-se numa escolha que também inclui William Wordsworth, além da sua irmã, Dorothy Wordsworth, assim como Coleridge, Shelley, Keats e Tennyson, e que não deixa de fora “a noite que escurece” de Emily Brontë, nem o elogio à Democracia, de Walt Whitman: “Criarei cidades inseparáveis, os braços de umas rodeando os ombros das outras”.
Na “voz rica e calorosa” de Ana Luísa Amaral, que fez “dela uma maravilhosa leitora de poesia, com um sentido apurado do ritmo de cada linha”, como escreveu Magaret Jull Costa, cruzam-se ainda Thoreau (“Os homens dizem muito conhecer […] mas o sopro do vento é tudo o que o corpo entende”), Matthew Arnold, Christina Rossetti, Thomas Hardy, Gerard Hopkins, Robert Bridges, Alfred Houseman, até à modernidade de William Butler Yates (“A leda e o cisne”) e de Amy Lowell.
De Emily Dickinson — a autora de “A minha carta ao mundo que nunca me escreveu” –, à qual Ana Luísa Amaral dedicou o doutoramento e a tradução de 300 poemas, escolhe “Saí cedo — levei o meu cão”, numa sucessão de acasos diários, até que o mar “em olhar poderoso”, a saúda e depois recua.
Na “resposta” de Margaret Jull Costa a Ana Luísa Amaral, há Francisco Sá de Miranda (“Que farei quando tudo arde?”), Camões (“Amor é fogo que arde sem se ver”), Bocage (“Nascemos para amar”), Antero de Quental (“Na mão de Deus”), Gomes Leal (“Carta ao mar”), Cesário Verde (“De tarde”), António Nobre (“Georges! Anda ver o meu país de marinheiros!”), Camilo Pessanha (“Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho”).
A sequência de quase cinco séculos pelo essencial da poesia em língua portuguesa não deixa de fora Almeida Garrett, João de Deus, Júlio Dinis, Eugénio de Castro, Augusto Gil, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes, Afonso Lopes Vieira, tão pouco os brasileiros Machado de Assis e Olavo Bilac, nem as vozes de mulheres como as sorores Violante do Céu e Maria do Céu, numa escolha que culmina em Florbela Espanca: “O mundo quer-me mal porque ninguém tem asas como eu tenho”.
As duas sequências de poemas de “50/50 — Uma breve antologia bilingue” abrem-se “em avesso”, num livro onde uma recolha tem início na contracapa da outra, e onde o desfecho de ambas se cruza a meio caminho.
Margaret Jull Costa, que detém mestrados em Estudos Portugueses e Espanhóis pelas universidades de Bristol, no Reino Unido, e de Stanford, na Califórnia, traduziu, ao longo de mais de três décadas, escritores de língua portuguesa como Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Saramago, António Lobo Antunes, Teolinda Gersão, Luís Cardoso e Lídia Jorge.
Em 2018 recebeu a Ordem do Infante D. Henrique, depois de já ter sido distinguida com o grau de oficial da Ordem do Império Britânico e de ter sido premiada pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Royal Society of Literature, de que faz parte.
Ana Luísa Amaral recebeu alguns dos principais prémios portugueses e estrangeiros, do Vergílio Ferreira da Universidade de Évora ao Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, do Correntes d’Escritas, ao Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, por toda a carreira.
Foi investigadora, professora universitária, ensaísta, ficcionista, tradutora e, desde infância, poeta porque, como escreveu Jull Costa, “poesia era o que ela fazia, o que ela simplesmente tinha de fazer”.
“Traduzi a sua poesia para inglês — recordou a tradutora britânica no jornal The Guardian — e a nossa colaboração foi pura alegria, o seu entusiasmo palpável e, a generosidade, incansável”.