Quando Manuela Ferreira chama as duas filhas pequenas para a mesa e lhes põe um prato de sopa de cenoura à frente, tem em mente mais do que noções de senso comum sobre a importância dos legumes na alimentação das crianças. A investigadora do Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC) da Universidade de Coimbra estuda há mais de uma década o papel da dieta na defesa do sistema imunitário. E os anos de experiência trouxeram-lhe uma convicção: micronutrientes, nomeadamente retinóides, associados à vitamina A, presentes em legumes como cenoura, abóbora e batata-doce (entre outros alimentos, alguns de origem animal) fazem a diferença nos primeiros anos de vida. No seu projecto mais recente, a cientista está a estudar precisamente o papel que parecem ter nos linfócitos T do intestino.

Sabe-se que 70 a 80% das células do nosso sistema imunitário estão alocadas àquele órgão. E não há nisso nada surpreendente: estão onde fazem falta, porque este é um dos órgãos mais expostos ao meio que nos rodeia. “Nós ingerimos o meio ambiente através da nossa dieta, e é o intestino que faz essa interação”, diz Manuela Ferreira.

Este órgão permite a absorção dos nutrientes dos alimentos, mas isso deixa-o exposto a microrganismos que nos fazem mal, como as Salmonellas, a Escherichia coli ou o rotavírus. Nos primeiros anos de vida, a proteção contra estes agentes é menos eficaz, daí que as doenças infecciosas gastrointestinais sejam tão frequentes na infância e continuem a ser uma das principais causas de morte entre crianças com menos de cinco anos, sobretudo em países menos desenvolvidos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os resultados deste estudo podem ser críticos para desenhar estratégias dietéticas ou terapêuticas que aumentem as defesas do intestino das crianças nos primeiros anos de vida

Somos frágeis quando nascemos. Não estamos equipados com os conhecimentos nem com as capacidades que nos permitam sobreviver sozinhos. E grande parte das células do sistema imunitário vem ao mundo como nós: tábuas rasas, sem experiência. Como nós, não sabem o que esperar, nem como defender-se do mundo para onde são abruptamente atiradas. “São naïf”, resume a investigadora.

Assim que nascemos e ficamos expostos ao ambiente, começa a colonização pela microbiota intestinal. Enquanto o sistema imunitário ainda se está a desenvolver, as células ainda não tiveram tempo para aprender.”

Acontece que a investigadora acredita que há uma outra população de células T: as células T naturais ou não-convencionais, que, quando nascemos, já vêm equipadas com um programa de defesa que trazem do órgão onde se desenvolvem, o timo. “É como se já viessem ensinadas do berço, com capacidade de responder no imediato a fatores de perigo. E a nossa hipótese é que elas dependem de micronutrientes retinóides para se desenvolverem e desempenharem o seu papel de defesa no intestino nos primeiros tempos de vida, enquanto as outras células T, as convencionais, ainda estão a aprender a lidar com fatores adversos.”

Com este trabalho, financiado pela Fundação “la Caixa” [ver informação no final do texto], Manuela Ferreira tem dois objetivos: provar formalmente que as células T naturais ou não-convencionais, com origem no timo, são importantes para a defesa do intestino, sobretudo numa fase precoce da vida, e perceber a razão pela qual os sinais de vitamina A parecem ser tão importante para o seu desenvolvimento.

Para isso, a investigadora vai fazer estudos de modelação da dieta em animais e usar ferramentas da experimentação genética. “Tiramos partido de modelos geneticamente modificados, nos quais analisamos células ‘insensíveis’ aos sinais de vitamina A e tentamos perceber qual a sua capacidade de defesa intestinal numa situação de infecção por Salmonella.” Os resultados deste estudo podem ser críticos para desenhar estratégias dietéticas ou terapêuticas que aumentem as defesas do intestino das crianças nos primeiros anos de vida.

O intestino permite a absorção dos nutrientes dos alimentos, mas, uma vez que 70 a 80% das células do sistema imunitário estão alocadas a este órgão, isso deixa-o exposto a microrganismos que nos fazem mal, como as Salmonellas, a Escherichia coli ou o rotavírus

A investigadora de 42 anos, natural de Oliveira de Frades, onde fez “vida de aldeia”, ajudando os pais no campo, acredita que talvez tenha sido essa proximidade com o meio natural que levou ao interesse por ciências. A curiosidade nunca foi só teórica. “No 12º ano ia à biblioteca requisitar as enciclopédias da MacMillan, mas sentia que era uma ciência de livro, sem vida nem detalhe. Cheguei a fazer espontaneamente um insetário e um herbário.”

Estudou Bioquímica em Coimbra e passou pelo IPO de Lisboa, seguindo depois para o Cancer Research UK, no Reino Unido, onde desenvolveu o doutoramento em Biologia Molecular. De regresso a Portugal, fez o pós-doutoramento no laboratório de Henrique Veiga Fernandes, “onde comecei a desenvolver as bases deste projeto”.

A vida seguia sem imprevistos e de vento em popa: em 2014, foi mãe pela primeira vez e publicou, como primeira autora, um artigo altamente citado na revista Nature que estabeleceu uma relação sem precedentes entre os micronutrientes maternos e o sistema imunitário dos bebés. Em 2016 teve a segunda filha e em 2019, sentiu que estava na altura de voar sozinha, preparando-se para estabelecer o seu próprio laboratório de investigação.

A investigadora acredita que há uma população de células T naturais ou não-convencionais, que, quando nascemos, já vêm equipadas com um programa de defesa que trazem do órgão onde se desenvolvem, o timo

Mas esse acabou por ser o ano do diagnóstico de um cancro de mama. “Foi na altura da mudança para Coimbra, estava cheia de entusiasmo e com muitos projectos em mente.” É difícil travar quando se vai a acelerar a fundo, mas foi precisamente isso que fez: uma interrupção de um ano para cuidar de si própria. “Parei, mas havia sempre esta vontade de arrancar com o meu laboratório e acho que isso me ajudou a focar-me em coisas boas nessa fase difícil. Conseguia projectar-me numa situação mais positiva no futuro e não queria desistir disso.”

Está agora onde se imaginava. Começou em 2020, um ano depois do previsto, o seu próprio laboratório no CNC, onde estuda o ‘Imunometabolismo das Barreiras do Corpo’ e acabou de receber um financiamento para estudar o sistema de defesa do organismo. A resiliência da investigadora permitiu-lhe estudar a do nosso corpo.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Role of Diet-derived Retinoids in CD8αα Intraepithelial Lymphocytes and Intestinal Defence at Early-life, liderado por Manuela Ferreira, do CNC, foi um dos 33 selecionados (13 em Portugal) – entre 546 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do Concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde. A investigadora recebeu 408 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As datas para as candidaturas à edição de 2023 deverão ser conhecidas em breve.