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Morreu este sábado, aos 95 anos, o Papa emérito Bento XVI. O alemão, nascido Joseph Ratzinger, foi o líder da Igreja Católica entre 2005 e 2013 e morreu no Vaticano, uma década depois de ter feito história ao abdicar do trono papal. Desde a renúncia, Bento XVI vivia num mosteiro isolado nos jardins do Vaticano, dedicando-se essencialmente a uma vida de recolhimento e oração e à produção de textos teológicos — embora tenha protagonizado algumas aparições públicas a convite do seu sucessor, o Papa Francisco.
A notícia foi confirmada pelo gabinete de imprensa da Santa Sé: “Lamentamos informar que o Papa Emérito, Bento XVI, morreu hoje às 9h34 no Mosteiro Mater Ecclesiae, no Vaticano”. O corpo de Ratzinger estará na Basílica de São Pedro a partir da próxima segunda-feira, para que possa ser velado pelo público.
Durante os nove anos que viveu em recolhimento após a resignação, o Papa emérito viu a sua saúde física deteriorar-se gradualmente. No início de agosto de 2020, o biógrafo oficial de Ratzinger, Peter Seewald, visitou o antigo pontífice para lhe apresentar o texto de uma nova biografia. Depois da visita, Seewald revelou a um jornal alemão que encontrou Ratzinger “extremamente frágil” e gravemente doente com uma infeção viral — e, embora o pensamento e a memória continuassem lúcidos, a sua voz era já praticamente inaudível. Apesar disso, ao longo dos últimos dois anos Ratzinger manteve uma modesta agenda de encontros. Em junho deste ano, o seu secretário pessoal, o arcebispo Georg Gänswein, emocionou-se ao falar do agravamento do estado de saúde do Papa emérito: “Nunca acreditei que a última parte do caminho entre o mosteiro Mater Ecclesiae e as portas do céu de São Pedro seria tão longa.”
A última viagem de Ratzinger tinha ocorrido em meados de junho de 2020, quando o Papa emérito se deslocou discretamente à cidade alemã de Ratisbona para visitar o irmão, Georg Ratzinger, que estava gravemente doente. Os dois irmãos foram ordenados padres no mesmo dia, 29 de junho de 1951, na catedral de Frisinga, na Alemanha. Embora os seus caminhos eclesiásticos se tenham separado a partir daí (enquanto Joseph se dedicou a um percurso académico na teologia que o tornou num dos maiores teólogos católicos do século XX, Georg seguiu o caminho da música sacra e manteve-se como sacerdote na Alemanha e tornou-se maestro do conhecido coro da catedral de Ratisbona), os dois irmãos sempre foram muito próximos e, depois da eleição de Bento XVI, Georg era visita frequente no Vaticano. Georg morreu no dia 1 de julho de 2020, duas semanas depois da visita do irmão.
Joseph Ratzinger nasceu a 16 de abril de 1927 em Marktl am Inn, na Alemanha, numa família pobre ligada à agricultura. O pai era polícia e a mãe tinha sido cozinheira em hotéis. Viveu praticamente toda a sua juventude sob o regime nazi, fez parte da Juventude Hitleriana e foi alistado nas Forças Armadas alemãs durante a Segunda Guerra Mundial. Foi no ano a seguir ao fim da Guerra que entrou na universidade para estudar filosofia e teologia, percurso que o levaria à ordenação sacerdotal em 1951. Em 1977, foi nomeado arcebispo de Munique e Frisinga, cargo que lhe valeu o título de cardeal, para quatro anos depois seguir para a Cúria Romana, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF).
Foi eleito Papa em 2005 depois da morte de João Paulo II, de quem foi colaborador próximo durante mais de vinte anos. O alemão foi o nome mais votado desde a primeira ronda de votações (sempre com o argentino Jorge Bergoglio, hoje Papa Francisco, em segundo lugar), mas só à quarta ronda reuniu mais de dois terços dos votos: 84 cardeais dos 115 eleitores presentes votaram em Ratzinger e 26 votaram em Bergoglio.
[Leia aqui o perfil completo de Joseph Ratzinger]
Perfil. Bento XVI, o teólogo rebelde que transformou a Igreja
Apesar de ter sido eleito para a liderança da Igreja Católica em 2005, Ratzinger já era considerado uma das figuras mais relevantes da cúpula eclesiástica global havia vários anos. Em 1981, três anos depois de ser eleito, o Papa João Paulo II nomeou Ratzinger para o cargo de prefeito da CDF, o organismo do Vaticano responsável por supervisionar e legislar sobre a prática da fé católica. O alemão manteve-se no cargo, um dos mais importantes da Cúria Romana e considerado o braço direito do Papa, até à morte de João Paulo II, o que tornou a sua eleição em 2005 um passo natural de continuidade na liderança.
Durante o seu mandato como prefeito da CDF, Ratzinger teve um papel central em algumas das decisões mais relevantes para a Igreja Católica dos dias de hoje. A título de exemplo, a assinatura de Joseph Ratzinger que surge num documento central promulgado pelo Vaticano em 2001 e que passou a incluir os abusos sexuais de menores entre os crimes mais graves da Igreja e que estão sujeitos a um julgamento direto a partir de Roma. Esse documento, que viria a ser atualizado em 2010 por Ratzinger já como Papa, é ainda hoje um dos textos fundamentais nos esforços da Igreja no combate aos abusos sexuais por membros do clero.
Enquanto prefeito da CDF, o cardeal Ratzinger teve também uma grande importância para o catolicismo português. Foi ele quem, em 2000, escreveu o comentário teológico ao terceiro segredo de Fátima, que fixou a interpretação oficial da Igreja Católica sobre as visões dos pastorinhos na Cova da Iria e os escritos da Irmã Lúcia, dando ao maior fenómeno de piedade popular em Portugal (e um dos maiores do catolicismo a nível mundial) a sustentação teológica de que necessitava para se afirmar entre os setores mais intelectuais da Igreja, mais céticos e menos adeptos das manifestações populares de fé.
Um pontificado conturbado
O pontificado de Bento XVI ficará para a história da Igreja como um dos mais definidores do percurso da instituição com mais de dois mil anos. Ainda assim, foi um dos períodos mais polémicos na história recente do catolicismo. Depois da morte de João Paulo II, a fasquia da popularidade era elevada. O Papa polaco governou a Igreja Católica durante 26 anos (o segundo maior pontificado da história, sem contar com São Pedro) e tornou-se tão popular entre crentes e não crentes que no seu funeral se ouviram gritos de “Santo Subito!” (em português significa: “Santo já!”).
Embora relativamente óbvia nos corredores do Vaticano, a escolha de Ratzinger para a liderança da Igreja gerou controvérsia logo no arranque do pontificado, quando o alemão deixou evidentes as diferenças de estilo face ao seu antecessor: Ratzinger fez questão de utilizar muitos dos acessórios habitualmente associados ao passado, incluindo os múleos (sapatos vermelhos), as capas vermelhas e até o camauro (barrete vermelho que já não era usado pelos papas desde antes do Concílio Vaticano II).
A aparência tradicionalista, aliado às notícias surgidas pouco depois da eleição papal sobre o envolvimento de Ratzinger na Juventude Hitleriana — a organização juvenil da Alemanha Nazi — tornaram Bento XVI numa figura distante do povo católico, que o seu estilo mais intelectual do que pastoral acabaria por não corrigir.
Mas seriam os sucessivos escândalos relativos aos abusos sexuais de menores e à gestão financeira do Vaticano que viriam a abalar profundamente o pontificado de Bento XVI. Depois do caso de Boston (revelado em 2002 pelo jornal Boston Globe e que ficaria imortalizado no filme “O Caso Spotlight”, de 2015), foram feitas investigações judiciais por todo o mundo, fazendo surgir dezenas de escândalos semelhantes entre o clero católico de dezenas de países. Muitos desses escândalos vieram a público precisamente durante o pontificado de Bento XVI, associando definitivamente o Papa alemão ao fenómeno.
Um dos escândalos de maior dimensão surgiu na Irlanda, com a divulgação das conclusões de uma ampla investigação judicial que concluiu que os abusos sexuais nas escolas e orfanatos católicos no país eram sistemáticos e duravam há décadas, envolvendo milhares de vítimas e centenas de padres abusadores. O escândalo na Irlanda levou Bento XVI a escrever uma carta aos católicos irlandeses na qual se posicionou firmemente contra os abusos e dirigiu duras palavras aos padres abusadores. “Traístes a confiança que os jovens inocentes e os seus pais tinham em vós. Por isto deveis responder diante de Deus omnipotente, assim como diante de tribunais devidamente constituídos”, escreveu Bento XVI na carta, ainda hoje interpretada como um dos documentos centrais na mudança de atitude da Igreja face ao problema.
Em 2012, o pontificado de Bento XVI sofreu o maior abalo de todos: a divulgação de dezenas de documentos que expuseram anos de escândalos financeiros nos corredores do Vaticano, incluindo esquemas de corrupção, favorecimento de aliados e muita opacidade nas instituições económicas e financeiras da Santa Sé. O escândalo, que ficou conhecido como Vatileaks, deixou clara uma certa impotência de Bento XVI perante os esquemas conduzidos por vários elementos da cúpula da Igreja Católica e enfraqueceu profundamente a imagem do Papa. Veio a saber-se que a informação tinha sido divulgada aos jornais pelo mordomo do Papa, Paolo Gabriele, que foi preso pelo Vaticano em 2012. No mesmo ano, Bento XVI perdoou-o.
Uma renúncia histórica
Em fevereiro de 2013, Bento XVI apanhou todo o mundo católico de surpresa quando anunciou que iria renunciar ao papado. Numa curta declaração perante os cardeais no Vaticano, Ratzinger afirmou que as suas forças, “devido à idade avançada, já não [eram] idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino”. O Papa alemão disse que a sua força física diminui de tal forma que se viu obrigado a reconhecer a “incapacidade para administrar bem” a Igreja Católica.
Bento XVI foi o primeiro Papa da história moderna a renunciar ao papado. É preciso recuar até 1415 para encontrar outra renúncia: Gregório XII, que foi forçado a abdicar do trono papal durante o Cisma do Ocidente, época em que o surgimento de antipapas e a divisão das sedes papais entre Roma, Avinhão e Pisa causou enorme confusão na liderança da Igreja Católica.
Em março de 2013, estava escolhido o sucessor de Bento XVI. O argentino Jorge Mario Bergoglio, que já em 2005 tinha reunido uma grande parte dos votos dos cardeais, mas perdido para Ratzinger, foi eleito à quinta ronda com 85 votos favoráveis entre os 115 cardeais eleitores presentes, de acordo com informações reveladas num livro publicado em 2019 pelo vaticanista irlandês Gerard O’Connell.
Perante a novidade da situação, foi criado para Bento XVI o título de Papa emérito. Ratzinger continuou a usar a batina branca tradicional dos papas, embora sem uma série de acessórios adicionais (como a peregrineta, pequena capa pelos ombros, e a faixa à cintura), e o anel do pescador, que simboliza o poder do Papa, foi destruído — uma vez que apenas pode haver um Papa reinante. Bento XVI retirou-se para o convento Mater Ecclesiae, no interior dos jardins do Vaticano, para viver em recolhimento e oração.
Embora não houvesse, até ao momento, um protocolo específico para esta situação, o Papa Francisco incluiu o Papa emérito Bento XVI como concelebrante nos principais momentos de celebração que acontecem no Vaticano — o que normalizou as imagens inéditas de dois Papas juntos.
Contudo, a presença de Bento XVI no Vaticano após a renúncia não foi sempre pacífica. O Papa Francisco assumiu, perante os fiéis católicos, um perfil completamente diferente do antecessor, apresentando-se como mais pastoral do que professoral, largou as vestes elaboradas e os sapatos vermelhos (gesto que foi sempre lido como um romper com o tradicionalismo) e focou o seu discurso em temas fraturantes frequentemente associados à ala mais progressista da Igreja, como o casamento homossexual, os refugiados ou a pobreza.
Para muitos dos descontentes com este novo rumo dado à Igreja Católica, a presença física de Bento XVI no Vaticano tornou-se num foco de esperança de que seria possível reverter a reforma de Francisco. Nos jardins do Vaticano, multiplicavam-se as visitas de bispos e cardeais associados à ala conservadora da Igreja a Bento XVI. Em vários momentos, o nome de Bento XVI acabaria arrastado para o centro de polémicas como modo de legitimar algumas lutas do setor mais tradicionalista.
O caso mais notório aconteceu no início de 2020, quando foi noticiado aquilo que, à primeira vista, pareceu uma flagrante intromissão do Papa emérito nas decisões do atual pontífice. Numa altura em que, a propósito do Sínodo da Amazónia, se aguardava um pronunciamento do Papa Francisco sobre a possibilidade de ordenar como sacerdotes alguns homens casados para fazer face à grande escassez de padres naquela região da América do Sul (uma medida que os bispos e cardeais conservadores criticaram duramente, usando mesmo a palavra “heresia”), foi noticiado que o Papa emérito havia escrito um texto no qual afirmava que o celibato dos padres era “indispensável”.
O texto surgia num livro alegadamente escrito a quatro mãos por Bento XVI e pelo cardeal Robert Sarah, uma das mais influentes vozes conservadoras dentro da cúpula da Igreja Católica, mas rapidamente veio a público que Ratzinger podia ter sido manipulado pelo cardeal. Na verdade, os dois não tinham escrito um livro a quatro mãos, como a capa da publicação sugeria. O cardeal Sarah havia dito a Bento XVI que estava a escrever um livro sobre o assunto e pediu-lhe um contributo, tendo o Papa emérito escrito um pequeno texto para poder ser usado pelo cardeal. “Ele não tinha aprovado nenhum projeto para um livro assinado conjuntamente nem tinha visto e autorizado a capa”, esclareceu o secretário pessoal de Bento XVI. O cardeal teve de esclarecer a situação e prometeu retirar o nome de Bento XVI das futuras edições do livro.