Foi em dezembro de 2018 que chegou o carimbo que conferiu ao World of Wine (WOW) o estatuto prévio de utilidade turística, num despacho assinado pela então secretária de Estado do Turismo, Ana Mendes Godinho. Os primeiros montantes relativos aos benefícios fiscais que o estatuto confere seriam registados no ano seguinte: 13,6 mil euros foi o bónus fiscal auferido em 2019, segundo a lista de contribuintes com benefícios fiscais desse ano consultada pelo Observador.

Os montantes mais significativos recebidos pela Hilodi – Historic Lodges & Discoveries, SA, a sociedade que detém o World of Wine, seriam registados nos dois anos seguintes, já com Rita Marques enquanto secretária de Estado do Turismo, cargo que assumiu em outubro de 2019. Nos anos de 2020 e 2021, o projeto conhecido como o quarteirão cultural de Gaia teve bónus fiscais, em sede de IMI, no valor de 133 mil euros por cada ano, ou seja, 266 mil euros no total. Esta sexta-feira, foi conhecido que a ex-governante vai gerir a empresa à qual concedeu o último visto para ter acesso ao benefício. Contactado pelo Observador, o Ministério da Economia recusou-se a fazer comentários, dizendo “nada ter a referir sobre o tema”.

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O Observador tentou também saber, junto do ministério das Finanças e da própria empresa, qual o montante do benefício fiscal relativo a 2022, mas não obteve resposta até ao momento. Segundo o despacho assinado por Rita Marques em janeiro do ano passado, que confere ao WOW a utilidade turística definitiva, os benefícios deverão estender-se até 2025, data em que termina a validade da utilidade turística, fixada em sete anos, “contados da data da atribuição da utilidade turística a título prévio (18 de dezembro de 2018), ou seja, até 18 de dezembro de 2025”.

Segundo Jane Kirkby, sócia da Antas da Cunha ECIJA, o prazo do estatuto não é prorrogável, contudo, “a utilidade turística pode ser atribuída por mais de uma vez ao mesmo empreendimento, desde que, decorrido o respetivo prazo, ele venha a preencher de novo os requisitos exigidos para a sua atribuição”.

O WOW foi contemplado por um benefício que deixou de existir em 2019. Ou, pelo menos, deixou de ser concedido pela tutela. “Atualmente, é na esfera dos municípios que é tomada a decisão sobre a eventual concessão ou manutenção de benefícios fiscais a entidades que gozam de utilidade turística, relativamente aos impostos cuja receita seja municipal – como seja, o IMT e o IMI”, explica ao Observador Joana Cunha d’Almeida, sócia responsável pelo departamento de Direito Fiscal da Antas da Cunha ECIJA.

Nesse sentido, “compete às Assembleias Municipais a aprovação dos critérios e condições para o reconhecimento das isenções, tendo em consideração critérios de interesse público e o particular impacto na economia local”. A lei previa “um conjunto de isenções em sede destes impostos no Estatuto dos Benefícios Fiscais, que foi sendo revogado ao longo do tempo e até 2019”. No entanto, segundo o Turismo de Portugal, “apenas os processos de utilidade turí​stica com decisão (a título prévio ou definitivo) até dia 31 de dezembro de 2018 têm efeitos relativamente a benefícios fiscais diretamente resultantes do estatuto de utilidade turística”. O que foi o caso do WOW.

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Além do bónus fiscal em sede de IMI, o estatuto de utilidade turística também permite que a “proprietária e exploradora do empreendimento fique isenta das taxas devidas à Inspeção-Geral das Atividades Culturais, pelo mesmo prazo fixado para a utilidade turística, caso as mesmas sejam, ou venham a ser, devidas”.

Questionada sobre a possível perda da utilidade turística face à situação de Rita Marques, que assinou o despacho final e agora foi nomeada administradora da empresa em causa, Jane Kirkby lembra que entre as causas de revogação da utilidade pública “não abrangem expressamente a situação descrita”. No entanto, “caso se verifique alguma invalidade no processo de atribuição desse estatuto, poderá haver anulação do ato administrativo respetivo, nos termos gerais do Código do Procedimento Administrativo“.

Uma sucessão de apoios

Os benefícios fiscais concedidos ao abrigo da utilidade turística somam-se aos vários apoios que a Hilodi recebeu nos últimos anos. A empresa concorreu com quatro projetos ao Instrumento Financeiro para a Reabilitação e Revitalização Urbanas (IFRRU 2020), que está sob a alçada do ministério das Infraestruturas, e em 2021 garantiu a maior fatia dos apoios concedidos a uma empresa: 26,5 milhões de euros no total.

Segundo a lista divulgada pelo IFRRU, os quatro projetos arrecadaram financiamento entre os 2,6 milhões de euros e os 8,6 milhões, sendo que o investimento total previsto para os quatro edifícios era de 58,7 milhões de euros. Foram financiados por fundos públicos em quase metade.

Em causa estava a “reabilitação de imóveis na zona ribeirinha de VN Gaia” para instalação de Museu Moda e Design, do Museu Wine Experience, do Museu Cork Experience e de um imóvel na Rua Guilherme Braga, 31, em Vila Nova de Gaia.

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Outro dos apoios concedidos ao WOW, também à base de incentivos fiscais, foi conhecido em junho de 2020. A Hilodi foi uma das contempladas pelo apoio, em forma de crédito a título de IRC, atribuído pelo Estado ao “investimento produtivo” previsto no WOW.  Um despacho assinado pelo primeiro-ministro aprova “a minuta do contrato fiscal de investimento e respetivos anexos, a celebrar entre o Estado Português, representado pela AICEP, E. P. E., e a sociedade HILODI – Historic Lodges & Discoveries, S. A”. O projeto tinha um investimento associado de 102,8 milhões de euros e a criação de 313 postos de trabalho até ao final de 2021.

O último apoio, noticiado esta segunda-feira pelo Expresso, foi um financiamento de 5,4 milhões de euros ao abrigo do Compete, um programa de fundos comunitários do Portugal 2020, dos quais foram pagos 4,3 milhões de euros. Segundo o Portal da Transparência, “o World of Wine será um empreendimento ancorado na herança cultural da zona do centro histórico e da produção de Vinho, que pretende criar um novo destino turístico de eleição para a região do Porto e Norte de Portugal”.

O WOW foi inaugurado a 31 de julho de 2020. Tem cinco museus, oito restaurantes, cafés, espaços para eventos e representou um investimento total de 100 milhões de euros.