A Igreja Católica no continente africano está preocupada com a atuação do exército moçambicano no combate ao terrorismo na região de Cabo Delgado, no norte do país, afirmando que há o risco de as forças armadas de Moçambique atacarem a população civil nos esforços de eliminação dos extremistas islâmicos.

“As forças armadas moçambicanas têm um longo historial de cometer atrocidades contra civis”, disse esta semana o diretor do Instituto Denis Hurley para a Paz (IDHP), Johan Viljoen, numa entrevista ao jornal Crux, especializado em informação sobre a Igreja Católica.

O IDHP é um instituto da Conferência Episcopal da África Austral, que tem monitorizado os desenvolvimentos no terreno de uma guerra entre extremistas islâmicos e forças armadas que já dura há cinco anos e que já provocou centenas de mortos e quase um milhão de deslocados internos.

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Para Johan Viljoen, “não há nenhuma indicação” de que o exército moçambicano tenha melhorado as práticas descritas em relatórios anteriores da Amnistia Internacional. “Se eles andarem casa a casa à procura de suspeitos de pertencerem aos grupos insurgentes, podem acabar a levar jovens rapazes para ‘interrogatório’ ou tortura”, acusa o responsável católico.

“Houve um incidente há cerca de dois anos, quando se tornou viral um vídeo de soldados moçambicanos a matarem a tiro uma mulher nua numa aldeia”, lembra Johan Viljoen.

Na altura, a Amnistia Internacional publicou um relatório acusando as forças moçambicanas de levarem a cabo execuções extrajudiciais. “O relatório da Amnistia Internacional que referi está repleto de atrocidades cometidas pelas forças armadas”, acrescenta Viljoen. “Há jornalistas que foram detidos pelos militares há três ou quatro anos que não foram vistos desde então.”

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O clima de violência armada no norte de Moçambique remonta a outubro de 2017, mês em que foi registado o primeiro ataque de insurgentes islâmicos contra a população local na vila de Mocímboa da Praia, no norte da província de Cabo Delgado, nas proximidades da fronteira com a Tanzânia.

Aquele foi o primeiro de uma série de violentos ataques por parte de um grupo de insurgentes com centenas de militantes que, ao longo de vários meses, conseguiu obter o controlo de uma parte significativa da região de Cabo Delgado.

Os insurgentes seriam elementos ligados ao al-Shabaab, um grupo fundamentalista islâmico conhecido pelos atentados na Somália que resultou de uma cisão dentro da organização radical islâmica Ansaru-Sunna. Esse grupo disseminou-se discretamente por vários pontos da África oriental — e em 2017 deu início a um processo insurrecional na província de Cabo Delgado com o objetivo de ali instituir um regime teocrático.

A falta de informações detalhadas torna difícil fazer um retrato fiel dos números desta guerra. Em 2020, a Amnistia Internacional falava em mais de 2.000 mortos; mais recentemente, em outubro de 2022, quando se completaram cinco anos desde o primeiro ataque, as Nações Unidas apontavam para cerca de 946 mil deslocados internos provocados pelo conflito.

O avanço dos jihadistas a partir do norte do país obrigou centenas de milhares de pessoas a largarem as suas vilas e aldeias e a procurarem refúgio mais a sul, na cidade de Pemba, a capital da província, como testemunhou o Observador em abril de 2021, num conjunto de reportagens em Cabo Delgado.

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Embora o conflito tenha saído das páginas dos jornais nos últimos meses, a violência armada continua no norte de Moçambique.

“A insurgência continua”, diz Johan Viljoen ao Crux. “Os insurgentes dividiram-se em grupos mais pequenos e continuam com os ataques e as decapitações, especialmente nos distritos de Muidumbe e Macomia. Os ataques também se estão a alargar para o sul e o ocidente de Cabo Delgado.”

O responsável católico acusa também as forças internacionais presentes no país — nomeadamente as da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral e as do Ruanda — de estarem “simplesmente a guardar a empresa mineira e os interesses corporativos multinacionais, e não a proteger as comunidades locais”.

A região de Cabo Delgado, rica em gás natural, é uma importante fonte de riqueza para Moçambique e os ataques dos extremistas ameaçam o desenvolvimento da indústria — e as autoridades moçambicanas têm garantido que a retoma dos projetos de gás é uma das grandes prioridades do país.

Johan Viljoen diz ainda que as forças armadas sul-africanas mobilizadas para o conflito têm violado os direitos humanos na região, registando-se violações de adolescentes e tráfico de pedras preciosas durante a presença militar no país.

Um vídeo que mostra um conjunto de militares sul-africanos a queimar uma pilha de corpos humanos tornou-se viral e chamou a atenção para a atuação daqueles elementos no país. “Este vídeo justifica a perceção dos moçambicanos no terreno de que os militares são cruéis e indisciplinados”, disse Viljoen.

“[O vídeo] também reforça as repetidas declarações dos bispos da Conferência Episcopal de Moçambique de que uma solução militar não é a solução, de que a violência gera violência e de que o diálogo e as negociações são o único caminho a seguir”, afirmou ainda o responsável católico.