Nove militares da GNR — oito em exercício de funções e um já reformado — do posto de Carvalhos, em Vila Nova de Gaia, foram acusados pelo Ministério Público, em 2019, dos crimes de sequestro e de tortura por terem agredido, dentro da esquadra, um suspeito de furto. Os arguidos pediram abertura de instrução e o tribunal do Porto decidiu não levar nenhum deles a julgamento. Mas, agora, o Tribunal da Relação do Porto aceitou o recurso do Ministério Público e anulou a decisão da primeira instância, que deve, segundo a Relação, “ser substituída por outra que pronuncie os arguidos nos exatos termos que constam da acusação”. Os sete militares terão mesmo de ir a julgamento.

Os militares constituídos arguidos e que estão no ativo (oito dos nove envolvidos no caso) foram alvo de processos disciplinares por parte da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI). Mas esses processos foram suspensos, estando “a aguardar decisão no processo” que ainda corre na Justiça. Ao Observador, a IGAI avançou que “não foram, até ao presente momento, aplicadas aos militares as medidas provisórias” — que podem ser, segundo o regulamento de disciplina da GNR, a apreensão de documentos, desarmamento, transferência preventiva ou a suspensão preventiva do exercício de funções. O Observador tentou perceber se os militares foram alvo de processos internos instaurados pela GNR, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.

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Em agosto de 2019, o antigo militar da GNR apresentou uma queixa no posto onde tinha estado colocado antes de passar à reforma — um local onde, por esse mesmo motivo, aponta o Ministério Público, “conhecia e tinha mesmo proximidade com os restantes arguidos”. A queixa apresentada pretendia dar início a uma investigação sobre o desaparecimento do seu carro, que lhe tinha sido roubado. Seis dias mais tarde, o militar reformado voltou ao posto para, segundo o Ministério Público, apresentar novos dados sobre o autor do furto. E, nesse momento, já teria um nome para apontar: o de um vizinho seu.

Nesse dia 25 de agosto, os militares da GNR do posto de Carvalhos terão ido até à casa do homem indicado pelo antigo militar e, de seguida, conduziram-no ao posto de Carvalhos. Já na esquadra, colocaram o suspeito “num quarto sem luz, sem local para se sentar, amontoado de mobiliário e caixotes”. Foi também ali que três dos arguidos “violentamente o agrediram” na tentativa de obter uma confissão. No total, o homem esteve dentro daquele posto durante nove horas — entre as 13h e as 22h.

Dentro da sala de pequenas dimensões, três dos arguidos terão ofendido o homem durante o tempo em que o suspeito se encontrava detido. “Desferiram-lhe vários socos e pontapés, atingiram-no com golpes de bastão e com parte de uma mangueira”, descreveu o Ministério Público no processo. Nesse momento, o homem estava “quase deitado no chão” e com os braços levantados, para evitar que fosse agredido na cabeça. Noutro dos momentos descritos pela acusação, “foi-lhe encostada à cabeça um cano de arma de fogo”. Também dentro do posto estaria o antigo militar, que terá testemunhado as agressões e que acabou, por essa razão, por ser constituído arguido.

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Perante as agressões de que estava a ser alvo por parte de três dos militares da GNR, o homem, suspeito de ser o autor do roubo, terá acabado por indicar  “falsamente” uma possível localização do carro, como forma de pôr termo aos socos, pontapés e bastonadas. Depois de ter sido libertado, o homem deu entrada no hospital, devido aos ferimentos provocados pelas agressões de que terá sido alvo.

Para o Tribunal da Relação do Porto — que pede agora o julgamento dos sete arguidos —, é possível tirar várias conclusões dos factos que considera terem ficado provados: “A primeira é a de que a deslocação à casa do ofendido, e a sua posterior condução ao posto da GNR, para identificação por suspeita de crime, e onde permaneceu por mais de seis horas, é ilegal“.

Depois, o tribunal sublinha: “Se não fosse para obter a confissão através da privação da liberdade e das agressões, bastaria tomar nota das suas declarações e deslocarem-se [os militares] aos locais indicados”.

O processo ainda está na Relação do Porto, devendo ainda ser remetido ao tribunal de primeira instância para que os nove militares possam ser julgados pelos crimes de sequestro e tortura.