É difícil fazer uma crítica literária ao que não é bem literatura, antes um puzzle em forma de texto, portanto mais vale a priori tirar-se esse peso deste texto. Estando as mãos lavadas, vamos ao livro.

Em 1934, A Mandíbula de Caim veio a público. Edward Powys Mathers, que o assinou com o pseudónimo Torquemada, era o autor das palavras cruzadas do jornal The Observer, em Inglaterra. O seu gosto pelo críptico terá aqui assumido o seu expoente máximo, não só à escala da sua produção, mas num sentido muito mais lato: este é, para além de um policial, o mais difícil puzzle textual que se conhece.

São cem pequenos fragmentos textuais, mas desengane-se quem achar que se lê num tiro. Ou, pelo menos, que é possível fazê-lo encontrando-lhe um sentido. A história foi escrita na forma destes pequenos textos e o leitor sabe de antemão que há seis vítimas de assassinatos e seis assassinos. O problema é que a impressão foi feita de forma aparentemente aleatória, cabendo ao leitor juntar as peças, encadear os fragmentos, até chegar à solução. Não é tanto uma leitura, é mais engenharia. E não é o mesmo que ler um livro tentando descobrir um mistério – aqui o mistério é o próprio livro e criá-lo é resolvê-lo. Com isto, é possível que quem empreenda na leitura não chegue a ler o livro, já que lê-lo é atingir a fórmula correcta. O estilo da prosa é cativante, com frases pungentes, limpas, e densidade. Nisto, sugere-se que, findo o puzzle, a leitura de obra de enfiada também valha por si.

A dificuldade de montar o puzzle é tal que, neste momento, a editora, que segue uma tradição criada pelo próprio autor, vai oferecer um prémio à primeira pessoa que resolver o mistério. E se mil euros podem parecer aliciantes para encaixar um livro, os resultados desanimam: em 1930, apenas dois leitores conseguiram acertar. Na altura, quem ordenasse as páginas e solucionasse os crimes recebia 15 libras. Os premiados foram S. Sydney-Turner e W. S. Kennedy. E muito tempo passou até que outros lhes seguissem os passos.

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Décadas depois, deu-se como perdida a resposta, até que uma cópia do livro foi oferecida à Fundação Laurence Sterne. O curador desafiou doze pessoas a montarem o puzzle. Apenas John Finnemore, actor, conseguiu lá chegar, e já estávamos em 2020. Ou seja, são quase cem anos e apenas três cabeças. Contudo, a partir do momento em que a Fundação Laurence Sterne recebeu o livro, o interesse pela obra ressurgiu, e esta foi entretanto publicada em vários países, sendo já um fenómeno de culto. O segredo está guardado ao abrigo de acordos de confidencialidade e os leitores lá vão tentando, enfrentando um desafio que em muito extrapola as habituais relações dialógicas estabelecidas entre texto e leitor.


Título: “A Mandíbula de Caim”
Autor: Torquemada
Editora: Lua de papel
Tradução: Inês Fraga
Páginas: 208

Cada página compõe-se de duas partes: numa, está um pequeno fragmento; noutra, está um espaço para notas, para o leitor ver se se encaminha. Há ainda uma marca para que seja possível recortar cada folha, de forma a reordenar as páginas e a facilitar leituras. E, mesmo no início, há grelhas para as soluções, onde o leitor deve registar a nova ordem.

Resolver o puzzle apresenta várias dificuldades, grande parte delas escondidas no estilo de escrita. A escrita está na primeira pessoa. O leitor preparado para a empreitada cogitará essa primeira pessoa não é, afinal, várias primeiras pessoas. Para mais, há fragmentos que terminam a meio das frases, o que significa que há outros que continuam a meio das frases. Estes exemplos rareiam, podendo ser os mais fáceis de encaixar, embora depois falte o resto, que é praticamente tudo: não só todos os outros fragmentos que faltam, mas também saber onde se encaixa esta parte. Como os fragmentos são muito pequenos, e é possível ler-se a última parte e depois a primeira, é muito difícil que o leitor se familiarize com cada parte, de forma a conseguir contextualizá-la. Para mais, muitos dos fragmentos não são compostos por acção que dê para encaixar sem criar dúvidas. Por isso, a sensação permanente do leitor é a de uma queda sem paraquedas. De repente, dá por si a ler coisas como “Os dedos toscos de Morte, tão inglês, eis a coisa verdadeiramente assustadora: eu vira-os sob um sorriso jovial, metidos por um longo tempo nos seus assuntos.” Há um tom noir que vai acompanhando a leitura, mesmo que o leitor fique às aranhas o tempo todo, mas o espaço para as notas serve para se ir orientando ou fingindo que sabe para onde vai.

A grande novidade deste livro em relação ao policial tradicional reside precisamente no lugar que cabe ao leitor. O policial, regra geral, já apresenta a dificuldade de duvidar do que lê: apresentado a uma forma, procura ser mais sagaz do que o autor, chegar ao resultado antes do momento em que lhe é oferecido. Assim, o policial já implica, da parte do leitor, uma leitura mais activa, já que há um jogo directo entre a capacidade de manipular e a capacidade de não se ser manipulado.

Em A Mandíbula de Caim, esta ideia é levada a outro campeonato: há um confronto de cabeças na mesma, e é ainda maior, já que o autor já provoca a priori. Criar o livro é uma provocação na medida em que é um desafio. Lê-lo passa por aceitar o desafio, e aqui ou há ganhar ou perder. Por isso, o trabalho de formiga de tentar montar um puzzle já é per se um combate, e isto ao mesmo tempo que se vai na onda do entretenimento. Os resultados positivos são de tal forma raros que não conseguir atingi-los não é vergonha nenhuma. Assim, que seja a onda de entretenimento a safar tudo.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.