Antes de entrar no Supremo Tribunal de Justiça, na Praça do Comércio, em Lisboa, o juiz desembargador já jubilado, Luís Vaz das Neves, parou para falar aos jornalistas. E disse aquilo que, segundo ele, tem dito sempre: “estou inocente”. Vaz das Neves foi o único dos 17 arguidos a subir a escadaria de carpete vermelha do Supremo que dá acesso à sala de audiências. E foi o único a sentar-se esta sexta-feira no banco dos arguidos. Durante a sessão, que atrasou e demorou cerca de duas horas, o magistrado foi tirando notas à mão num bloco à medida que ia percebendo que os argumentos do juiz Sénio Alves corroboravam cada vez mais a acusação. E só se levantou depois de ouvir que ele e os 16 restantes arguidos do processo, nascido da Operação Lex, iam mesmo a julgamento. O juiz desembargador será julgado ao lado do juiz já demitido, Rui Rangel, e da ex-mulher deste, a juíza Fátima Galante, mas também do antigo presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira e do empresário José Veiga.

Em causa estão crimes de corrupção, recebimento indevido de vantagem, abuso de poder, falsificação de documento e fraude fiscal num esquema que melindrou a reputação do Tribunal da Relação de Lisboa e que misturou justiça com grandes figuras do futebol. À data era na Relação que os três juízes, assim com o oficial de justiça também pronunciado, prestavam serviço e Vaz das Neves era mesmo o Presidente do tribunal.

As mensagens de Vieira a “apertar” com Rui Rangel para resolver um processo e as exigências do juiz para ajudar

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Enquanto lia as várias páginas da decisão, com passagens da acusação e dos argumentos dos cinco arguidos que pediram a instrução do caso  – uma fase processual em que a acusação é apreciada por um juiz – o magistrado foi tirando conclusões que faziam antever o desfecho da decisão. O Tribunal confirmou que os juízes desembargadores Rui Rangel e Vaz das Neves, assim como o oficial de justiça Octávio Correia, terão sido corrompidos pelo empresário José Veiga. E concluiu que dos factos apontados na acusação, há provas que de todos os arguidos acusados de terem sido corrompidos por José Veiga — Rui Rangel, Vaz das Neves e Octávio Correia — tiveram de alguma forma intervenção no crime de corrupção, com tarefas bem definidas.

Operação Lex. Juiz Vaz das Neves nega ter beneficiado com distribuição de processos

Segundo o Ministério Público, entraram em contas dominadas por Rui Rangel cerca 250 mil euros vindos de uma empresa de Veiga que terão servido para pagar uma decisão no tribunal da Relação. Este processo de Veiga foi sorteado manualmente por ordem de Vaz das Neves — o que não gerou estranheza no juiz Sénio Alves, porque por vezes há necessidade de sorteios manuais — mas não houve “razão aparente” nem para esse procedimento, muito menos para o processo cair nas mãos precisamente do juiz Rui Rangel. José da Veiga será também julgado pelo crime de corrupção para ato ilícito, mas como corruptor ativo.

“Rui Rangel tinha um tratamento privilegiado [de Vieira] sem qualquer justificação”

Também os privilégios que o juiz do Supremo destacou em relação ao juiz Rui Rangel no Benfica, sem qualquer explicação (a seu ver) possível, fizeram adivinhar que Luís Filipe Vieira também seguiria para julgamento. Segundo ele, o juiz da Relação Rui Rangel, que entretanto foi demitido, tinha um tratamento especial por parte do então presidente do clube para assistir a jogos do Benfica na tribuna presidencial e que tal se terá devido ao facto de antigo presidente do Benfica ter um processo em Sintra que precisava de uma solução rápida. O juiz Sénio Alves destacou mesmo as mensagens trocadas entre Vieira, o advogado e seu assessor Jorge Barroso e o dirigente do Benfica Fernando Tavares – também arguidos no processo – em que diziam que tinham que “apertar” com Rangel para chegarem à juíza que estava com o caso.

“As declarações do arguido Luís Filipe Vieira, que diz que apenas chamou Rangel à atenção para o seu processo, são contrariadas pelas comunicações trocadas entre ambos e com Jorge Barroso”, notou o magistrado. “Torna-se claro que existia um acordo no sentido da abordagem a Rui Rangel”

O tribunal entendeu que os deveres a que cada arguido estava sujeito foram violados. “Rui Rangel tinha um tratamento privilegiado sem qualquer justificação. Tinha prerrogativas idênticas às de um vice-presidente do clube”, disse. E decidiu que todos eles deviam ser julgados por um alegado crime de recebimento indevido de vantagem.

As mulheres do “esquema” de Rui Rangel e as contas por onde terão passado milhares de euros

As antigas companheiras de Rui Rangel, Fátima Galante e Bruna Amaral, que ajudavam o juiz a escrever decisões em troca de dinheiro também serão julgadas. Galante foi pronunciada por nove crimes: corrupção passiva, abuso de poder, seis crimes de fraude fiscal e um crime de branqueamento. Uma outra antiga companheira de Rangel, e o seu pai vão responder também por crimes de fraude fiscal de dinheiro que receberam nas suas contas.

Lex. Como os juízes Rui Rangel, Fátima Galante e Vaz das Neves são acusados de terem viciado o sistema judicial

O caso de corrupção que abalou o Tribunal da Relação de Lisboa e que levou também à acusação de 17 arguidos segue agora para julgamento. Veja aqui os crimes de cada um dos arguidos:

Rui Rangel, juiz desembargador demitido (21 crimes)

  • um crime de corrupção passiva para ato ilícito
  • dois crimes de abuso de poder
  • um crime de corrupção passiva para ato ilícito
  • um crime de recebimento indevido de vantagem
  • um crime de abuso de poder
  • um crime de usurpação de funções
  • um crime de abuso de poder
  • Três crimes de falsificação de documento
  • Seis crimes de Fraude Fiscal
  • Um crime de branqueamento

Fátima Galante, juíza desembargadora aposentada compulsivamente (nove crimes)

  • um crime de corrupção passiva por ato ilícito
  • um crime de abuso de poder
  • seis crimes de fraude fiscal
  • um crime de branqueamento

Luís Vaz das Neves, juiz desembargador jubilado

  • um crime de corrupção passiva
  • Dois crimes de abuso de poder

Octávio Correia, oficial de justiça 

  • um crime de corrupção passiva para ato ilícito
  • um crime de abuso de poder
  • um crime de fraude fiscal

 José Veiga, empresário

  • um crime de corrupção ativa para ato ilícito

Ruy Carrera Moura, gerente comercial

  • um crime de corrupção ativa para ato ilícito

Luís Filipe Vieira, empresário

  • recebimento indevido de vantagem

As mensagens de Vieira a “apertar” com Rui Rangel para resolver um processo e as exigências do juiz para ajudar

Fernando Tavares – economista e dirigente do Benfica

  • recebimento indevido de vantagem

Jorge Barroso – advogado e assessor de Vieira

  • recebimento indevido de vantagem

José Bernardo Santos Martins, advogado

  • um crime de corrupção para ato ilícito
  • um crime de corrupção para ato ilícito
  • crime de abuso de poder
  • três crimes de falsificação de documento
  • seis crimes de fraude fiscal
  • um crime de branqueamento

“Preciso urgentemente de 500€.” O amigo de Rangel e Galante que era o “testa de ferro” do casal

Bernardo Santos Martins, assistente de administração hotelaria

  • seis crimes de fraude fiscal
  • um crime de branqueamento

Nuno Costa Ferreira, comerciante

  • dois crimes de fraude fiscal

Albertino Figueira, reformado

  • seis crimes de fraude fiscal

Rita Figueira, sem profissão conhecida

  • seis crimes de fraude fiscal

Bruna Garcia do Amaral, advogada

  • um crime de abuso de poder
  • quatro crimes de fraude fiscal (e

Elsa Correia, técnica de comércio 

  • um crime de fraude fiscal

Oscar Hernandez Lopes, economista e advogado

  • três crimes de falsificação de documento (