O ex-ministro Eduardo Cabrita “estava em condições de, no mínimo, dizer ao motorista para cumprir as regras de trânsito fora de qualquer urgência” e que tinha esse “dever de cuidado”. Se tivesse dado essa ordem ao seu motorista Marco Pontes, acusado de um crime de homicídio negligente, Cabrita poderia “evitar o resultado (no caso, o homicídio)”.

Quem o afirma é o juiz desembargador João Carrola, relator do acórdão do Tribunal da Relação da Évora a que o Observador teve acesso e que obriga o juiz de instrução criminal deste caso a reabrir audiência para ouvir Eduardo Cabrita e o seu chefe de segurança Nuno Dias como arguidos pela alegada prática do crime de homicídio negligente.

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Nuno Santos, 43 anos, foi a vítima desse alegado homicídio. A viatura conduzida por Marco Pontes seguia a 180 jm/hora pela via da esquerda, sem os quatro piscas ligados, sem luz de emergência e sem sinais sonoros numa zona da auto-estrada n.º 6 (sentido Estremoz-Évora) quando atropelou mortalmente Nuno Santos, trabalhador que fazia a manutenção da via.

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Recorde-se que a juíza Silvia Petronilho, do Juízo Central de Instrução Criminal de Évora, decidiu não aceitar os requerimentos de abertura de instrução (RAI) da família de Nuno Santos (representada pelo advogado José Joaquim Barros) e da Associação de Cidadãos Automobilizados (que tem o advogado Paulo Graça como seu representante.

Ambos eram assistentes e ambos desejavam a pronúncia de Eduardo Cabrita e de Nuno Dias, mas o juíza Petronilho entendeu que os RAI da família de Nuno Santos e da ACAM continham “omissão de imputação de factos susceptiveis de integrarem os elementos subjetivos do crime de homicídio por negligência grosseira.”

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Os dois assistentes recorreram para a Relação de Évora e o relator João Carrola, juntamente com os adjuntos Maria Leonor Esteves e Gomes de Sousa, deram-lhe razão: “a omissão apontada no despacho recorrido não ocorre, pelo que importa revogar esses despacho e determinar que o mesmo seja substituído por outro que, admitindo o requerimento , determine a abertura de instrução requerida pela recorrente, seguindo os ulteriores termos dessa fase processual”, lê-se no texto do acórdão.

Cabrita não pode alegar que não sabia que omissão é crime

O relator João Carrola também assegura que não está em causa a consciência da ilicitude. Ou seja, Eduardo Cabrita não pode alegar que não sabia que a sua alegada omissão era um crime.

Isto porque o crime de homicídio negligente faz parte de um catálogo de crimes cuja “ilicitude se presume conhecida de todos os cidadãos, sendo-lhe exigível tal conhecimento”.

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E agora? Eduardo Cabrita pode ser julgado por homicídio negligente?

Depois de os autos descerem ao Juízo de Instrução Criminal de Évora, a fase de instrução criminal vai ter de ser reaberta, sendo que a juíza Silvia Petronilho terá de admitir os RAI dos dois assistentes e apreciar os mesmos.

No caso da família de Nuno Santos, este assistente pediu para Eduardo Cabrita e o seu chefe de segurança Nuno Dias serem ouvidos como arguidos e defendeu, tal como a ACAM, que ambos fosse pronunciados para julgamento. Recorde-se que a juíza Petronilho só pronunciou o motorista Marco Pontes.

Seja como for, a Relação de Évora não se pronunciou — nem podia, porque não era esse o objeto dos recursos — sobre se Eduardo Cabrita deve ser levado a julgamento.

É verdade que afirma que o ex-ministro “estava em condições de, no mínimo, dizer ao motorista para cumprir as regras de trânsito fora de qualquer urgência” e que tinha esse “dever de cuidado”. Se tivesse dado essa ordem ao seu motorista Marco Pontes, acusado de um crime de homicídio negligente, Cabrita poderia “evitar o resultado (no caso, o homicídio)”. Mas a única coisa que ordenou foi a admissão dos dois RAI dos assistentes.

E ordenou que seja apreciada os pontos específicos que estão relacionados com a alegada responsabilidade criminal de Eduardo Cabrita. Por exemplo, o assistente ACAM, representado pelo advogado Paulo Graça, alega o seguinte:

  • Eduardo Cabrita não podia “alhear-se, como se alheou, da forma concreta como Marco Pontes conduzia, nas circunstâncias de tempo e de lugar”.
  • Isto é, quando Marco Pontes circulava à “velocidade de 180 km/hora, sem que estivesse em situação se serviço urgente e, por consequência, sem que usasse os sinais sonoros e luminosos legalmente impostos nesse caso”. Além disso, “circulava na via da esquerda” quando se “realizavam trabalhos na berma, sinalizados de acordo com a lei”.
  • Por isso mesmo, entende o assistente que Eduardo Cabrita “omitiu (…) o dever de instruir ou ordenar a Marco Pontes que circulasse com uma velocidade que lhe permitisse parar no espaço livre e visível que tinha à sua frente”. A que estava obrigado atenta a “sua situação de superioridade hierárquica máxima” naquela viatura.

A juíza Silvia Petronilho, contudo, pode apreciar de forma livre a prova que existe nos autos ou que venha a ser produzida durante a fase de instrução. E, no final, pode concluir que não existem indícios para levar Cabrita a julgamento. Se tal acontecer, os assistentes poderão recorrer novamente para a Relação de Évora.

O processo do caso do acidente rodoviário na A6 tem sido marcado por diversos volte-faces. Por exemplo, após a procuradora titular do inquérito no DIAP de Évora ter-se recusado a constituir Eduardo Cabrita, tendo acusado a 3 de dezembro de 2021 apenas Marco Pontes do crime de homicídio negligente, os assistentes recorreram hierarquicamente para o diretor do DIAP de Évora, procurador-geral adjunto José Carlos Franco.

Surpreendentemente, o diretor do DIAP de Évora concordou com os assistentes e obrigou a procuradora titular do inquérito a reabri-lo. Foi assim que Eduardo Cabrita e o chefe de segurança Nuno Dias também foram constituídos arguidos. Mas a titular do inquérito manteve a sua decisão: não acusou nem o ex-ministro da Administração Interna, nem o chefe de segurança.