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Silhueta do ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, durante a sua audição na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias para prestar esclarecimentos sobre as circunstâncias em que ocorreu a morte de um cidadão ucraniano nas instalações do Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, no passado dia 12 de março. Em Lisboa, 08 de abril de 2020. ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA
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ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

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Atropelamento na A6. Eduardo Cabrita só foi ouvido ao fim de quatro meses, na reta final da investigação. Tudo o que se sabe sobre o caso

Ex-ministro da Administração Interna só foi chamado a depor quando uma segunda procuradora pegou no processo. Já tinham sido ouvidas todas as testemunhas. Observador resume outros 11 pontos do caso.

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Durante os primeiros quatro meses em que decorreu a investigação ao atropelamento na A6, com o carro onde seguia o ministro da Administração Interna, a GNR ouviu todas as testemunhas que se encontravam na zona do quilómetro 77 antes, durante e depois do acidente — mas nunca ouviu Eduardo Cabrita. Só em outubro, quando chegou uma nova magistrada ao processo, é que o Ministério Público assinala o facto de que faltava ainda ouvir o governante, que seguia na comitiva, no banco de trás do carro que atropelou mortalmente Nuno Silva, em junho.

“Verifica-se que se encontram inquiridos todos aqueles que se encontravam no local onde ocorreu o acidente de viação, exceto Sua Excelência o Ministro da Administração Interna”, lê-se no despacho de 12 de outubro de 2021, assinado pela procuradora Catarina Silva, que substituiu no processo o magistrado Alexandre Gomes Capela.

Para Catarina Silva, era “pertinente” ouvir Eduardo Cabrita, uma vez que o ministro da Administração Interna (MAI) também seguia dentro do carro que vitimou um trabalhador na A6. A magistrada deu conhecimento dessa intenção ao superior, o coordenador do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Évora, que concordou. A resposta, por escrito, seria enviada do gabinete de Cabrita à Procuradora Geral da República, Lucília Gago, a 2 de novembro, com alguns pontos coincidentes com os depoimentos já prestados (como pode ler nas perguntas que se seguem). Enquanto o motorista, oficial de ligação da GNR ao MAI, assessores e seguranças foram ouvidos logo em junho, Cabrita nunca foi interpelado. O ministro só falaria ao processo quase cinco meses depois do acidente, e cerca de um mês antes de o despacho de acusação contra o seu motorista ser proferido.

Sinalização dos trabalhos, velocidade excessiva e versões alinhadas. O que disse Cabrita (e testemunhas) no processo e o que o MP decidiu

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Este não foi o único reparo que a magistrada Catarina Silva fez na investigação. Já em setembro, a procuradora deixara um recado à GNR, na sequência do pedido de uma perícia para apurar finalmente a velocidade média a que seguiria o BMW em que viajava o governante.

No despacho, consultado pelo Observador no DIAP de Évora, a magistrada concordou que a perícia fosse realizada com caráter de urgência, atendendo não só ao segredo de justiça do processo como, também, ao “lapso” de tempo decorrido desde o acidente até então. Mas a procuradora deixa claro que, antes mesmo dessa sua decisão, os militares da GNR já tinham contactado dois engenheiros da Universidade do Minho, para saber se seria possível realizarem uma avaliação ao carro. O que não terá deixado satisfeita a magistrada.

“Deve este Órgão de Polícia Criminal (OPC) diligenciar pela transmissão de todos os elementos necessários à realização da perícia ora determinada, devendo sempre dar conhecimento à Procuradora da República titular do inquérito”, avisou. Por isso, lê-se, determina que a perícia corra em total segredo e não seja comunicada a sua realização a nenhuma das partes, até o processo ser público.

Eduardo Cabrita comunica à imprensa a sua demissão oficial no Ministério da Administração Interna. 3 de Dezembro de 2021 TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Eduardo Cabrita demitiu-se ao final da tarde, depois de conhecida a acusação contra o seu motorista

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

O Observador resumiu em 11 perguntas todas as pontas soltas do processo que, ao longo de seis meses, correu em segredo de justiça e que só a partir de setembro começou a caminhar para uma acusação que acabaria por conduzir à demissão de Eduardo Cabrita.

Quando é que o motorista de Eduardo Cabrita foi constituído arguido?

Marco Pontes não foi constituído arguido logo no dia 18 de junho, quando o BMW que conduzia na A6, numa viagem entre Portalegre e Lisboa, atropelou mortalmente um trabalhador, na zona de Évora. O motorista do Ministério da Administração Interna (MAI), que transportava o ministro Eduardo Cabrita, só foi constituído arguido a 25 de junho, sete dias depois do acidente e depois de prestar declarações sobre o que aconteceu naquele dia, pelas 13h08. Por esta altura, já o processo estava em segredo de justiça, sob o argumento de que, tendo sido alvo de muitas notícias, a sua publicidade poderia prejudicar a recolha de prova.

O que disseram o condutor e as restantes testemunhas sobre o que aconteceu?

Sobre a travagem

No despacho de acusação, a procuradora do Ministério Público diz apenas que Marco Pontes circulava a uma velocidade de “cerca de 163 km/h” no momento em que o carro embateu em Nuno Santos, não especificando se houve uma travagem antes do atropelamento. No entanto, a perícia da Universidade do Minho que apurou a velocidade a que seguia o carro, apresenta uma conclusão a esse respeito: “É nossa convicção que o condutor terá iniciado o processo de travagem do automóvel aquando da colisão com o peão.” Os únicos testemunhos que falam numa travagem são os do motorista do carro, agora acusado de homicídio por negligência, e do próprio ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, que seguia no banco de trás. E vão num sentido diferente daquele que consta da perícia da Universidade do Minho.

Marco Pontes diz que, mal avistou o peão a circular de costas para os carros na faixa de rodagem, travou e, ao mesmo tempo, utilizou a buzina do veículo. Eduardo Cabrita corroborou essa versão, nas declarações que enviou por escrito ao processo, já em setembro, afirmando que o motorista fez “sinais” e “reduziu a velocidade”. Os dois outros ocupantes do carro não falam em travagem. Apenas referem o recurso à buzina como sinal de alerta.

Sobre a sinalização

Neste ponto, os depoimentos de quem seguia no BMW envolvido no acidente, e mesmo nos outros dois carros que integravam a comitiva, parecem alinhados — e até replicados. Motorista, ministro, oficial de ligação da GNR ao MAI, assessores e seguranças dizem a mesma frase, segundo a transcrição da GNR: “Nunca foram vistos sinais estáticos de sinalização na faixa de rodagem ou bermas.”

O assessor Joni Gonçalves, que seguia no terceiro carro, diz mesmo que só viu o corpo de Nuno Santos a ser projetado no ar. No entanto, também ele afirma não ter visto anteriormente qualquer sinalização. Esta foi, aliás, a questão levantada de imediato pelo MAI, no comunicado que enviou à comunicação social sobre este caso. E foi também o primeiro argumento de Eduardo Cabrita à comunicação social, mal soube, por uma notícia do Observador, que o seu motorista iria ser acusado.

Cabrita diz que é preciso apurar “atravessamento de via não sinalizada”. MP refere “atividade devidamente sinalizada”

No entanto, nos manuais de procedimentos entregues pela BRISA ao Ministério Público, é claro que nestes trabalhos móveis não se coloca sinalização estática. Coloca-se, sim, sinalização na parte traseira da viatura. No relatório final da GNR, os militares concluem que não ficou provado se o painel luminoso dessa sinalização estava aceso. Mas a procuradora que deduziu a acusação considerou que a sinalização estava correta, contrariando assim a versão do MAI. No despacho de acusação, lê-se que “a atividade em causa estava devidamente sinalizado por veículo de proteção que no taipal de trás dispunha do sinal de trabalhos na estrada”. O documento refere ainda o facto de que, como “complemento”, os trabalhos dispunham de um “sinal de obrigação de contornar obstáculos à esquerda e duas luzes rotativas, a qual se encontrava a cerca de 100 metros do local dos trabalhos”.

A falta de sinalização estática tinha também sido notada por uma equipa da GNR que se deslocou ao local, no próprio dia do acidente, quando foi informada do acidente que envolvia o ministro que tutelava a Guarda.

Sobre a posição de Nuno Santos

Dos depoimentos recolhidos pela GNR também não fica claro onde estava a vítima quando foi atropelada. Os peritos da Universidade do Minho referem que foi junto à linha guia esquerda, perto do separador central. Mas os depoimentos da comitiva do governo não são assim tão claros e, no despacho de acusação, são erradamente reproduzidos, passando a ideia de que Nuno Santos se dirigia, de costas, em direção aos carros da comitiva.

Mas não é essa a descrição que as testemunhas fazem. O motorista Marco Pontes diz ter visto “um indivíduo a sair do separador central”. E, à semelhança das outras testemunhas, diz que não viu Nuno Santos a “sair do interior do separador”. Viu-,o sim, a caminhar dentro da faixa de rodagem de costas para o carro. E acrescenta que, quando se apercebeu da aproximação do carro Nuno Santos “parou e hesitou”. O motorista ainda desviou o carro para a direita e o trabalhador fugiu para a esquerda, mas isso não evitou o embate. Segundo a perícia, Nuno teria cerca de 4 segundos para atravessar as três faixas de rodagem existentes naquele local.

Já Paulo Machado, o oficial de ligação que seguia no banco ao lado do motorista, descreve “que, repentinamente, o peão começou a atravessar a estrada”. Mas, ao contrário do que alegou Marco Pontes, recorda que foram usados sinais sonoros “Horn” para alertar Nuno Santos. Eduardo Cabrita disse que viu um peão na faixa de rodagem aparentemente a “deslocar-se do separador central para a berma”.

Todas as testemunhas coincidiram noutro ponto do seu testemunho: o ministro da Administração Interna não impôs qualquer velocidade ao seu motorista e só tinha que estar no MAI às 14h30 para compromissos internos. Joni, o assessor, viria a dizer que um desses compromissos era a assinatura de um contrato do SIRESP com a Altice.

Já o colega da vítima, Joaquim Parreira, que se encontrava ao volante da carrinha de sinalização de trabalhos, na berma direita, disse que quando ouviu buzinas e um estrondo, olhou pela janela, para trás, e viu o corpo de Nuno ser projetado. Devia estar a uma distância de três metros dele.

Eduardo Cabrita demite-se depois de acusação no caso de atropelamento mortal

Afinal, quantas pessoas iam no carro?

O erro consta do despacho de acusação e, provavelmente, só será corrigido na fase instrutória, se ela for requerida. Mas a verdade é que no despacho lê-se que, no carro do MAI envolvido no acidente, seguiam o motorista agora acusado, ao seu lado estaria o oficial de ligação da GNR ao MAI e haveria ainda outras três pessoas no banco de trás: de um lado, um assessor; ao centro, o ministro Eduardo Cabrita; e, do outro lado, o seu segurança. Mas, olhando para os depoimentos que constam no processo, no carro só seguiam quatro pessoas. O segurança de Cabrita estava noutro carro que seguia à direita deste BMW. Atrás, seguia ainda um terceiro carro, como define o protocolo de segurança.

Outro pormenor que surge da acusação refere-se à descrição que a procuradora faz das condições meteorológicas daquele dia. Juristas contactados pelo Observador dizem que esta informação é normalmente pedida ao Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). Mas, neste caso, a informação de que “o tempo encontrava-se seco, a visibilidade no local era boa e não existia encadeamento” é baseada em depoimentos e no auto de notícia que a GNR fez do acidente, como se pode ler no próprio relatório final da GNR.

Ministério Público tem uma hora de referência para cálculos da velocidade: a que o carro de Cabrita passou depois de sair de Portalegre

O que é que o Ministério Público começou por fazer na investigação?

Enquanto a GNR ouvia os ocupantes dos carros da comitiva de Eduardo Cabrita, assim como os colegas de trabalho da vítima Nuno Santos, que procedia a trabalhos de limpeza de vegetação na berma direita, o Ministério Público pedia à Via Verde informações sobre a hora de entrada do BMW do MAI na A6, no sentido Caia-Marateca. Para esse efeito, foram utilizadas imagens de videovigilância captadas nesse momento. O MP pedia também à Brisa que informasse sobre as câmaras de videovigilância de que dispunha naquele local. A Via Verde acabaria a devolver ao processo a hora de passagem no pórtico da portagem: 12h56’02, captada a partir da Via Verde, esclarecendo não ter acesso a qualquer imagem de videovigilância da A6.

O que diz a BMW sobre a velocidade?

Ainda a 6 de julho, o Ministério Público fazia dois pedidos à BMW Portugal:

  1. Que indicasse um perito que pudesse fazer, com “a maior brevidade possível”, uma perícia ao carro, tendo em conta a informação guardada na centralina, bem como em sistemas multimédia instalados no veículo ou outras zonas que guardem informação (como a chave).
  2. Que a BMW informasse, tendo em conta o modelo do BMW, se havia transmissão de dados telemáticos para a BMW que pudessem ficar guardados e a que fosse possível aceder pelo fabricante.

A resposta chegou três dias depois, sem grande informação. “Considerada a diversidade de matérias, dispositivos e áreas de especialidade envolvidas na pesquisa de dados potencialmente relevantes, bem como a multiplicidade de fabricante de alguns dos componentes envolvidos”, não era possível escolher um perito. No entanto, já tinham contactado com o fabricante para salvaguardar todos os dados eventualmente armazenados remotamente. Quanto a uma perícia material da viatura, seria possível realizá-la através da leitura da chave e de um diagnóstico eletrónico do carro, no local ele se encontrasse, mas que o BMW precisaria de ter a bateria carregada ou, em alternativa, haveria que dispor de um sistema de alimentação do sistema elétrico.

O Ministério Público sempre foi claro no que procurava: queria saber se o carro tinha alguma anomalia que pudesse torná-lo mais instável ou inseguro; a velocidade a que seguia o carro por altura do embate; se havia uma travagem prévia; e, por fim, a velocidade média a que seguia antes do embate.

A 17 de julho, elementos da BMW deslocaram-se às estufas de pintura nas oficinas da Escola Prática da GNR de Queluz para os exames ao carro e para fazer a leitura da informação armazenada no próprio carro e na respetiva chave.

A 22 de julho, chegava a segunda resposta da BMW, vinda do fabricante: “O veículo não transmite remotamente dados de qualquer natureza para qualquer entidade do BMW Group porquanto não se encontra equipado com as unidades de comando necessárias.” Feita uma análise às chaves do carro, os dados extraídos davam conta dos danos na lateral esquerda, mas não devolveram quaisquer registos de velocidade. Muito menos sobre a estabilidade dinâmica do carro. Portanto, não era possível apurar as causas do acidente.

Quantos cenários traçou a GNR?

A 2 de setembro, a própria GNR, que investigava o acidente, ainda tentou fazer os cálculos para chegar a uma velocidade, juntando numa fórmula matemática o tempo, o espaço e a velocidade a que seguiria o BMW. E, a partir desses dados, traçou três cenários:

  1. De acordo com a hora de passagem no nó de Estremoz, às 12h56, e a hora de chamada para o INEM 13:07:41 — são 28 quilómetros feitos em 11 minutos e 39. O que dá uma velocidade média de 145.077 km/h.
  2. De acordo com a hora de passagem do veículo no nó de Estremoz, supondo que quem efetuou a chamada terá demorado 1 minuto a fazê-lo. O que daria velocidade média de 159,090 km/h.
  3. A hora de passagem no nó de Estremoz e a hora a que o veículo que sinalizava as obras arrancou para ir alertar os restantes colegas de equipa de Nuno: o que resultaria numa velocidade média de 140,703 km/h.

O Ministério Público não acolheu nenhum destes cenário no despacho de acusação.

O que concluiu a perícia da Universidade do Minho?

A perícia assinada por dois engenheiros da Universidade do Minho, Lúcio Machado e Jorge Martins, e entregue a 16 de novembro de 2021 (cerca de duas semanas antes da acusação), deixa claro que os autores não têm “certezas”. Mas diz que há factos que permitem concluir que o condutor agora acusado não travou “antes de bater no peão”, naquele quilómetro 77,6, sentido Norte, a cerca de dois quilómetros da saída para o centro de Évora na A6, pelas 13h05 do dia 18 de junho. “É muito mais rápido fazer uma ação sobre o volante (as mãos estão diretamente sobre ele, pelo que somente é necessária movê-las) do que travar (o pé que está sobre o acelerador terá que ser retirado dessa posição e premir o travão)”, lê-se no relatório final.

Os peritos admitem mesmo que “o condutor somente terá percebido que ia atropelar o peão já em cima dele, provavelmente porque o peão iniciou a travessia inopinadamente”. “Assim, é nossa convicção que o condutor terá iniciado o processo de travagem do automóvel aquando da colisão com o peão.” Uma informação que não foi replicada no despacho de acusação, que apenas refere que, no momento do embate, o carro seguia a 163km/h.

Os dois engenheiros referem que há quatro métodos para calcular a velocidade a que seguia o carro, mas dois deles foram logo afastados porque o corpo de Nuno bateu na parte lateral do carro do MAI. Referiam-se à distância do local para onde foi projetado o peão e o espaço onde a parte superior do corpo bate no para-brisas. Restou-lhes então analisar a condição física do peão, o estado em que ficou o corpo e a travagem subsequente do veículo até se imobilizar.

Para tal, recorreram a um cálculo usando as distâncias percorridas e a inclinação do terreno, que permitem perceber a “energia do veículo dissipada antes e ou após a colisão por atrito entre os pneus (ou carroçaria) e o pavimento (muros, rails…).”, lê-se. Assim como as deformações no carro, que “permitem calcular a energia absorvida pela estrutura do veículo ao ser deformado”. Depois, os engenheiros fizeram testes no autódromo do Estoril e no próprio local do acidente. Mas nem tudo correu como o esperado.

GNR pediu perícia a engenheiros do Minho, depois de BMW não conseguir apurar velocidade. Cálculos de militares apontavam para 145 km/h

No autódromo, testaram a travagem e a velocidade e fizeram testes a 130km/h e 160km/h (com margens de erro devido à pressão dos pneus), mas problemas técnicos “não permitiram testar o carro a uma velocidade maior”: “Inexplicavelmente o sistema ABS dos travões falhou e um dos pneus ficou bastante danificado.” Os peritos foram depois ao local fazer a medição e replicaram os testes. Aqui chegaram mesmo a pedir a um militar da GNR para circular no local a 200km/h (a velocidade a que, segundo explicam, se falava na comunicação social) com um dos peritos colocados no separador central para tentar confirmar se era possível ver o carro aproximar-se.

Na perícia da Universidade lê-se então que, no lugar onde estava Nuno Santos, no separador central, era possível ter avistado um carro que se deslocasse a 200km/h. Era também possível, de acordo com os parâmetros já definidos nestas investigações, que Nuno conseguisse atravessar aquela via em 4 segundos. O que não foi medido no relatório foi o tempo que alguém numa situação destas demora a tomar uma decisão e a agir.

“O peão poderia ter atravessado se o carro fosse a 220km/h”, dizem os peritos que estiveram no local do acidente a fazer testes e que defendem que, se estivesse de facto na estrada, Nuno Santos teria tido tempo de ver o carro e de atravessar a via.

“Uma pessoa colocada dentro do rail de proteção interior da curva, no local onde presumivelmente o peão estaria antes de ter tentado atravessar, teria cerca de 180 metros de visibilidade para os carros que circulassem na faixa esquerda”. O que, sustentam, daria tempo para o peão passar. “O peão poderia ter atravessado se o carro fosse a 220km/h”, acrescentam.

Os peritos perceberam também que havia “alguma limitação de visibilidade para quem circulasse na faixa esquerda”. Mas esta informação também não foi valorizada pelo Ministério Público, que fala em boa visibilidade naquele local. Sobre a velocidade a que seguia o carro do MAI, os peritos também chegaram a uma conclusão. “Entre o local do atropelamento e a imobilização do veículo distam 105 metros. Com o erro de 10 metros, daria uma velocidade entre os 155 e os 171, com uma velocidade de 163 km/h”, referem, por fim, os peritos, para chegar à conclusão que o Ministério Público procurava desde julho.

A GNR está convicta que a vítima foi ao separador central fazer necessidades e que não estava a trabalhar

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Porque é que a GNR recolheu papel higiénico do separador central?

Desde o dia do acidente, a 18 de junho de 2021, todos se questionam sobre por que razão Nuno Santos atravessou a A6 para ir ao separador central, de onde vinha quando foi colhido pelo carro do MAI. O seu colega de trabalho, Joaquim Parreira, que conduzia a viatura na berma direita da A6 e que assinalava os trabalhos que ali decorriam, disse à GNR que Nuno o substituiu naquele dia porque ele próprio se ressentia de problemas de ácido úrico. Joaquim Parreira estava ao volante da carrinha de sinalização debaixo de uma passagem superior que ali existia, como descreveu às autoridades a 1 de julho, quando viu Nuno Santos tirar o soprador das costas, colocá-lo nas valas de escoamento da berma direita. Depois atravessou a autoestrada, “pela parte traseira da viatura de sinalização, conforme as regras de segurança”. Embora não saiba o que ele foi fazer, normalmente essa deslocação servia para verificar os escoadores de água.

Um testemunho do responsável de obra da BRISA viria acrescentar à GNR uma alegada informação que lhe foi dada pelo próprio Joaquim. À GNR, Ricardo Damião disse ter reunido com a equipa no local do acidente e que Joaquim lhe teria dito que Nuno fora à carrinha buscar papel higiénico. A GNR voltou então a ouvir Joaquim Parreira e chegou mesmo a fazer uma acareação entre estas duas testemunhas, mas Joaquim disse não ter memória de ter feito essa declaração.

Ainda assim, os militares acabaram por regressar ao local do acidente. Verificaram que, junto ao quilómetro fatal, não havia escoadores, mas deram pela existência de papel higiénico, vestígios biológicos e uma luva que poderiam corroborar a versão de Ricardo Damião. Esse material foi entregue ao Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária a 23 de agosto, como o Observador viria depois a noticiar. Mas a resposta revelou-se inconclusiva.

Acidente de Cabrita. GNR analisa roupa, papel higiénico e fragmentos biológicos para sustentar tese de que vítima não estava a trabalhar

No processo não foram reunidas provas suficientes que permitam dar uma resposta cabal aos motivos que levaram o trabalhador ao separador central. Mas, para a GNR, “fica a convicção”. “Mesmo não tendo sido possível fazer comparações de perfis de ADN com vestígios biológicos deixados no local e a vítima, fica a convicção de que o senhor Nuno terá atravessado a faixa de rodagem para satisfazer as necessidades fisiológicas”, escrevem os dois militares no relatório final da investigação.

Os investigadores escrevem mesmo no relatório que, nas conclusões da investigação, o acidente se deve a um excesso de velocidade do motorista, mas que “também terá contribuído de forma significativa a forma descuidada e imprudente como o peão fez o atravessamento da faixa de rodagem”. A procuradora do Ministério Público, no entanto, não seguiu o mesmo entendimento da divisão de culpas entre motorista e trabalhador e acusou apenas o motorista do MAI de homicídio por negligência e imputou-lhe ainda duas contraordenações graves. Em nenhum lado da acusação se encontram motivos para a deslocação de Nuno Santos ao separador central, muito menos sobre a sua responsabilidade pelo atropelamento que lhe tirou a vida.

O carro do MAI atingiu a vítima com o lado esquerdo, quando ela estava junto ao separador central

LUSA

Que carro era este em que seguia o ministro?

Esta foi outra das informações que o MP pediu logo à Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública (ESPAP), até porque queria dar conta de que o carro iria ficar apreendido à ordem do processo na Escola Prática da GNR, em Queluz. A ESPAP viria a responder pouco depois, explicando ao DIAP de Évora que o carro envolvido no acidente, e que se encontrava no MAI desde janeiro de 2019, tinha sido aprendido no âmbito de um processo crime correu no Porto e que o declarou perdido a favor do Estado. Uma decisão confirmada pelo Tribunal da Relação. No entanto, um mês depois de o MAI ter o BMW ao seu serviço, foi informado de que, afinal, o carro não tinha sido declarado a favor do Estado, mas tinha sido apenas arrestado para garantia de um pagamento ao Estado. Assim, o carro nunca foi legalizado, circulando com um documento provisório de circulação e a sua propriedade mantendo-se no seu dono.

Marco Pontes era indiciado de condução perigosa. Porque é que o Ministério Público arquivou?

A procuradora do Ministério Público explica no despacho de arquivamento porque decidiu não acusar o motorista Marco Pontes por um crime de “condução perigosa”. Mas os argumentos que usa para arquivar, segundo o advogado Saragoça da Matta, contactado pelo Observador, são os mesmos que usa para acusar o arguido do crime de homicídio por negligência. O advogado diz mesmo que a fundamentação jurídica usada pela magistrada é suficiente para uma acusação pelos dois crimes: homicídio por negligência e condução perigosa.

Segundo a magistrada, “Marco Pontes agiu com total inobservância das precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidados impostos pelas regras de condução estradal essenciais para uma circulação rodoviária segura, o que podia e devia ter feito e que era capaz de adotar”. E fê-lo de “forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”. Para o Ministério Público, o acidente só teve uma causa: a “circunstância de Marco Pontes conduzir com manifesta falta de cuidado e de atenção aos deveres de respeito pelas obrigações legalmente impostas de circular na via mais à direita e  dentro dos limites de velocidade”.

Ora, nos argumentos que invoca para não acusar o motorista do crime de condução perigosa, a procuradora recorre a uma posição do penalista Germano Marques da Silva para referir que “o condutor devia prever que naquelas circunstâncias a violação daquelas regras de trânsito era especialmente adequada a causar um perigo concreto para determinados bens jurídicos e, por isso, era mais forte o dever de evitar aquele comportamento”. Para Saragoça da Matta, este argumento não iliba o motorista, “pelo contrário”.

Porque é que o INEM demorou tanto tempo a chegar ao local do acidente?

Segundo as informações prestadas pelo INEM ao processo, a Viatura de Emergência Médica chegou ao local mais de uma hora depois do primeiro pedido de socorro. Eram 13h08 quando o operador do Comando de Operações de Socorro do Sul recebeu a informação de um atropelamento da A6, sentido Sul Norte, ao km 77.7. Foi acionada uma VMER de Évora e os bombeiros locais minutos depois. No entanto, às 13h37, há uma nova chamada para o 112 a questionar porque estão os meios de socorro tão demorados. E neste momento há uma clarificação da localização: o acidente tinha ocorrido, sim, no sentido Este-Oeste. Foi esta a informação comunicada depois ao Centro Distrital de Operações de Évora, que informa a VMER, que refere estar a 70 quilómetros do local. Dada a distância, a central contacta então os bombeiros de Estremoz.

No entanto, uma equipa de bombeiros que passou no local quando transportava um doente acabou a prestar o primeiro socorro, pouco depois das 13h30. Segundo estas testemunhas, Nuno Santos já não apresentava sinais vitais, apesar das manobras de reanimação prestadas à chegada da VMER. O óbito foi declarado às 14h18m.

(Artigo atualizado nas declarações de Joaquim Parreira, que diz que Nuno Santos atravessou a estrada por detrás da carrinha de sinalização, como ditam as normas de segurança)

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