De mãos dadas com o seu advogado, E. Jean Carroll esperava ansiosamente pelo veredito do júri. O nervosismo rapidamente deu lugar a um sorriso aliviado: a justiça de Nova Iorque deu-lhe razão num processo cível por difamação e agressão sexual que movera contra um homem que acusara de a ter violado na década de 1990. Esse homem? O ex-Presidente dos EUA, Donald Trump.

Júri considera que Trump agrediu sexualmente e difamou a jornalista E. Jean Carroll. Terá de pagar indemnização de 5 milhões

Desde que abandonou a Casa Branca que os processos em tribunal se têm multiplicado. As acusações são várias e variadas: esquemas de burla das suas empresas, falsificação de documentos para encobrir um suborno a uma ex-atriz pornográfica por um alegado caso extra-conjugal e possível envolvimento em tentativas para subverter o resultado das eleições. Trump mantém que está inocente de todas as acusações e que tudo não passa de uma cabala política para prejudicar a sua candidatura presidencial às eleições de 2024 (onde é apontado como um dos favoritos).

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Para a jornalista e escritora,  a decisão do júri tratou-se de um marco importantíssimo, de alguém que, nas próprias palavras à saída do tribunal, queria “recuperar” a sua vida. Para Trump, foi apenas outro capítulo num rol cada vez mais extenso de casos e processos que parecem não ter fim à vista. Mesmo agora, com o recurso anunciado pela equipa de defesa do magnata, o “ponto final” é afinal mais um “ponto e vírgula”, outra página numa história que já conheceu vários capítulos.

Os detalhes gráficos do crime no vestiário de uma loja de luxo

E. Jean Carroll não se lembra do dia exato dos crimes – apenas do vestiário da Bergdorf Goodman e do que lá dentro se passou. Na sua versão, depois de um encontro fortuito e de um flirt casual entre ambos, Trump tê-la-á convidado para ir com ele até um vestiário da famosa loja de roupa de luxo nova-iorquina. Uma vez lá dentro, o magnata ter-se-á tornado violento, empurrando-a contra a parede e violando-a com a porta trancada. “Ainda hoje aqui sentada consigo senti-lo”, disse em tribunal.

Jornalista E. Jean Carroll afirma que foi vítima de abuso sexual por parte de Donald Trump há 23 anos

A maneira gráfica como Carroll descreveu os eventos dessa noite fatídica, explica a BBC, terá sido fundamental para convencer o júri a decidir a seu favor e a atribuir-lhe uma indemnização de cinco milhões de dólares (cerca de 4,5 milhões de euros). Um valor que, na sua ótica, é uma reparação pelo dano que o republicano de 76 anos lhe causou ao longo das décadas em que negou tudo. “Estou aqui para tentar recuperar a minha vida”, declarou.

O contra-interrogatório que fez cair a acusação de violação

Ainda assim, a versão da antiga cronista da revista de lifestyle Elle não era infalível. Tal ficou patente aquando do contra-interrogatório, um tenso medir de forças com o advogado de defesa de Trump Joe Tacopina.

Ao longo de várias horas, divididas em dois dias, a história de Carroll foi posta em causa por Tacopina, que levantou dúvidas quanto à sua autenticidade. Um dos pontos em que mais insistiu foi no porquê de Carroll não ter gritado se estava a ser atacada. “Não sou do tipo de pessoa que grita”, foi a resposta da escritora, hoje com 79 anos. “Mas estou a dizer-lhe que ele me violou, quer eu tenha gritado ou não”, sublinhou.

Ainda assim, o crime de violação em si não convenceu o júri, pelo menos por unanimidade. Uma mera tecnicalidade, por um lado (Trump foi ilibado de violação, mas não de abuso sexual), mas à mesma significativa para a estratégia da defesa. A própria E. Jean Carroll admitiu que a sua história tinha alguns buracos “difíceis de explicar”, sobretudo no que diz respeito ao facto de não se lembrar do dia exato em que a alegada violação teve lugar.

Já sobre o facto de não se ter dirigido de imediato à polícia para apresentar queixa, Carroll tinha resposta pronta. “Sou membro da geração silenciosa”, justificou ao júri, remetendo para um período da história – que não foi há muito tempo – em que as mulheres eram instruídas a ficar caladas e não levantar ondas sob pena de serem escrutinadas (e quase culpabilizadas) pelos crimes de que eram alvo. Uma cultura que, justificou, pretendia ajudar a mudar com este processo.

O depoimento em vídeo e a confusão que denunciou Trump

Trump nunca marcou presença no tribunal de Manhattan. Na verdade, a defesa do ex-Presidente e atual candidato à nomeação republicana para as presidenciais quase podia ser descrita como “inexistente”, já que, para lá dos contra-interrogatórios padrão, não foram apresentadas quaisquer provas, nem foram chamadas quaisquer testemunhas pela sua equipa.

O mais próximo que esteve de uma defesa a viva-voz foi um depoimento, gravado em outubro na sua casa em Mar-a-Lago na Florida, numa fase embrionária do processo. A sua estratégia de argumentação assentava em duas teses: a de que nunca violara E. Jean Carroll porque nem sequer a conhecia, e a de que, mesmo que tal crime estivesse em cima da mesa, a jornalista não encaixava no seu “tipo” de qualquer modo. Uma argumentação que ameaçou cair logo no tal depoimento.

A certa altura, a advogada de Carroll confrontou-o com uma fotografia da época e pediu-lhe que identificasse a mulher a seu lado. “É a Marla”, respondeu Trump. Marla, que hoje é Maples, já foi Marla Trump, a segunda mulher do magnata na época em que a alegada violação teve lugar. E não era ela que estava na foto, mas sim E. Jean Carroll – a que não conhecia e que não fazia o seu género, mas que estava ali, numa fotografia com ele, suficientemente parecida com a sua mulher da altura para ser tomada por esta. “É uma foto desfocada”, tentou justificar Trump.

“Demasiado feia para continuar a viver”

Não só de uma alegada violação se fazia o processo. Na verdade, o processo cível interposto inicialmente era por difamação, com a acusação de agressão sexual a ser adicionada depois, ao abrigo de uma alteração nas leis do estado de Nova Iorque que passaram a permitir às vítimas de crimes sexuais denunciarem os seus agressores mesmo depois de o prazo de prescrição ter terminado.

O efeito das palavras de Trump, disse Carroll, foi quase tão nocivo como o do ato em si. Durante o segundo dia de depoimentos, a jornalista descreveu as represálias que sofreu ao tornar pública a acusação, com uma espécie de tsunami de críticas nas redes sociais por parte de apoiantes do ex-Presidente.

Recuperando a declaração categórica de Trump de que a colunista não fazia o seu “tipo”, Carroll referiu em tribunal que muitos extrapolaram as palavras do magnata, montando campanhas de ódio centradas em torno do facto de a denunciante do antigo chefe de Estado ser “demasiado feia para continuar a viver”. O próprio Trump incitou a sua base de apoiantes nas redes sociais, descrevendo-a como uma “operativa política” a mando dos democratas.

Foram teorias que Carroll sempre negou e às quais não quis dar importância aquando da decisão final. À saída do tribunal, as eventuais consequências do veredito para as aspirações políticas de Trump não lhe mereceram qualquer consideração; antes, limitou-se a agradecer à sua equipa de advogados e a dar graças pela vitória judicial. “Hoje, o mundo finalmente conhece a verdade”, declarou.

E. Jean Carroll à saída do tribunal de Nova Iorque esta terça-feira, depois de conhecido o veredito.