A Comissão Nacional de eleições (CNE) lembrou esta quarta-feira que os órgãos autárquicos não têm competência para regulamentar o exercício da liberdade de propaganda, após queixas sobre a retirada pela Câmara de Oeiras de um cartaz sobre vítimas de abusos sexuais.
Numa nota, a CNE afirmou ter recebido queixas sobre o incidente da retirada, pelo município do distrito de Lisboa, de um cartaz para homenagear vítimas de abusos sexuais por membros da Igreja Católica, colocado por um grupo de cidadãos na altura da Jornada Mundial da Juventude (JMJ).
A CNE destacou que, fora do período eleitoral, não tem competência para intervir no processo, mas realçou que, sempre que é consultada em casos semelhantes, divulga “o seu entendimento sobre a liberdade de propaganda, como contributo para o cabal esclarecimento dos cidadãos e dos órgãos e agentes da administração”.
“A atividade de propaganda, com ou sem cariz eleitoral, seja qual for o meio utilizado, é livre e pode ser desenvolvida a todo o tempo, fora ou dentro dos períodos eleitorais, em locais públicos, especialmente os do domínio público do Estado e de outros entes públicos”, considerou.
Além disso, destacou, “os órgãos autárquicos ou outros não têm competência para regulamentar o exercício da liberdade de propaganda”, tal como foi entendimento do Tribunal Constitucional no acórdão n.º 636/95.
Nessa decisão, o tribunal remete para a Lei n.º 97/88, sobre “afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda”, considerando que esta lei regula “definitivamente o exercício cívico da liberdade de propaganda”.
Para a CNE, fora dos períodos eleitorais, esta lei deve ser “criteriosamente interpretada”, já que regula “simultaneamente o exercício da atividade de propaganda (direito fundamental) e a ocupação do espaço público com publicidade”.
A Comissão realçou ainda que a atividade de propaganda pertence ao conjunto de normas “qualificadas” no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, que são “suscetíveis de invocação direta pelos interessados e que vinculam todas as entidades públicas e privadas”.
No dia 2 de agosto, um dos três cartazes em que se denunciavam os abusos sexuais a crianças na Igreja portuguesa, colocado em Algés, foi retirado por ordem da Câmara Municipal de Oeiras, que o considerou “publicidade ilegal”.
Os cartazes em causa, com a frase “Mais de 4.800 crianças abusadas pela Igreja Católica em Portugal”, em inglês, ilustrada por 4.800 pontos que representam cada uma das vítimas, tinham sido colocados nos concelhos de Lisboa, Loures e Oeiras.
A ideia do movimento “This is our memorial” (“Este é o nosso memorial”) nasceu no Twitter e os promotores fizeram uma recolha de fundos que permitiu a colocação dos cartazes. A iniciativa surgiu nas redes sociais antes da JMJ, que se realizou em locais dos três municípios de 01 a 06 de agosto.
“Luto pela liberdade de expressão das +4.800 vítimas, por um memorial que erguemos para que ninguém se esqueça delas. Não esquecemos”, disse uma das promotoras, Telma Tavares.
A Associação Ateísta Portuguesa considerou que a remoção do cartaz foi um ato de censura e de subserviência do executivo à Igreja Católica, alegando que o problema “nunca foi a estrutura ou a sua legalidade, mas a mensagem contida no cartaz”, o que o município negou.
Perante críticas à sua atuação, a Câmara de Oeiras mostrou-se disponível para recolocar o cartaz: os promotores apresentaram à autarquia um pedido formal, que foi autorizado, e o cartaz acabou por ser recolocado numa estrutura da autarquia perto daquela onde estava inicialmente.
Câmara de Oeiras já recolocou cartaz sobre abusos sexuais de menores na Igreja
Em novembro de 2021, mais de duas centenas de católicos defenderam que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) deveria “tomar a iniciativa de organizar uma investigação independente sobre os crimes de abuso sexual na Igreja”.
Poucos dias depois, o pedopsiquiatra Pedro Strecht era nomeado pela CEP como coordenador da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja.
Os testemunhos referem-se a casos ocorridos entre 1950 e 2022, o espaço temporal abrangido pelo trabalho da comissão.
No relatório, a comissão alertou que os dados recolhidos nos arquivos eclesiásticos sobre a incidência dos abusos sexuais “devem ser entendidos como a ‘ponta do iceberg'” deste fenómeno. Na sequência destes resultados, algumas dioceses afastaram cautelarmente sacerdotes do ministério.