Depois de duas coroações, alguns eventos oficiais e com os membros da família real em férias, parece haver um novo tema da realeza a preocupar alguns britânicos. A inquietação não é nova, tem vindo a intensificar-se e ganhou a forma de pergunta que já é abordada abertamente nos jornais por terras de Sua Majestade. Porque é que o príncipe William não usa kilts? Uns acharão que se trata de um sintoma da silly season. Outros verão no tema uma questão de identidade nacional e herança. Nós lemos as críticas e investigámos a história e no fim, spoilers alert, a questão permanecerá sem resposta.
O príncipe de Gales herdou o título, mas não o estilo
Quando Carlos III se tornou Rei, o príncipe William herdou o título de príncipe de Gales e, além de, neste momento, ser o herdeiro do trono e, portanto, também da Escócia, o príncipe herdou ainda os títulos escoceses de duque de Rothesay, earl de Carrick, barão de Renfrew, lord das ilhas e príncipe & grande guardião da Escócia. E as ligações ao país não ficam por aí, afinal foi lá que o príncipe fez a faculdade e conheceu a sua princesa encantada, Kate Middleton. Contudo, o filho mais velho do soberano não herdou o estilo do pai, nem tão pouco o seu gosto por kilts.
O Rei sempre usou estas típicas peças escocesas. Não faltam imagens de Carlos com o traje das Terras Altas em diferentes fases da sua vida e eventos. Ainda recentemente, no final do mês de julho, o Rei chegou à Escócia para passar as suas férias, primeiro no Castelo de Mey e depois em Balmoral. Poucos dias depois foi visto em público na inauguração de uma destilaria e, claro, usou um kilt. O alfaiate escocês do Rei é John Sugden, proprietário da Campbell’s of Beauly e com um “royal warrant”, ou seja, é uma empresa fornecedora da casa real e com autorização para utilizar o escudo de armas real no seu negócio. Carlos III é bastante rigoroso com os seus conjuntos escoceses. Conta o Times que há dois anos encomendou um conjunto à Campbell’s of Beauly e exigiu que todos os materiais usados fossem originais da Escócia, até os botões, obrigando o alfaiate a pôr de lado os botões que encomenda provenientes da Áustria e a procurar um novo fornecedor que fosse local.
Acontece que já há algum tempo os atentos seguidores da realeza levantam a questão: “Porque é que o príncipe William não usa kilts?”. A questão circulou por alguns jornais britânicos no final de julho, mas em novembro do ano passado o The Times já tinha notado o tema.
“Não sei qual é a relutância, mas ficaríamos radiantes por fazer um kilt e casaco para o príncipe de Gales”, disse Sugden ao jornal na altura. Revelou ainda que um conjunto composto por kilt, casaco, sporran (a bolsa em pelo ou pele à cintura) e meias custaria cerca de três mil libras (aproximadamente 3.400 euros). “Isso continuaria a tradição e, especialmente sendo lord das ilhas, seria um veículo perfeito para popularizar o vestuário tradicional das Terras Altas – particularmente para uma geração mais jovem.” O alfaiate acrescentou ainda que o facto de o príncipe usar kilt “manteria a tradição e daria à indústria um impulso muito necessário”.
O príncipe William só foi visto a usar kilt em público quando era criança. Em adulto ainda não foi fotografado com a famosa peça escocesa, nem em atos oficiais, nem particulares dos quais haja registo. O editor da revista Majesty considera curioso que o príncipe não use o kilt já na idade adulta, contudo afirma que é possível que o faça em privado. “É curioso que William não tenha usado o kilt em adulto, contudo ele pode tê-lo feito em privado”, analisa Joe Little, editor da revista Majesty, citado no Guardian. Acrescenta ainda que não é comum ver imagens do príncipe em contexto rural na na Escócia. “No entanto, usar um kilt num contexto urbano pelo menos uma vez iria silenciar os seus críticos. Outros, claro, iriam ver isso como uma operação de relações públicas.”
Estará o príncipe a quebrar uma tradição que várias gerações anteriores mantiveram? Não é conhecida nenhuma razão para o príncipe não usar o kilt, contudo sabemos que é um cumpridor das tradições de indumentária. Nas duas cerimónias de coroação do pai usou capas e usa também as vestes da Ordem da Jarreteira, à qual pertence, e que incluem uma longa capa em veludo azul escuro, capuz em veludo vermelho e chapéu com plumas de avestruz brancas e plumas de garça negras e uma fita à volta do gémeo esquerdo. Para o seu casamento, o príncipe William escolheu usar o uniforme da guarda irlandesa.
Afinal, que peça de roupa é esta de que se fala?
O kilt, como o conhecemos hoje, tem origem no primeiro quarto do século XVIII. Muito antes, entre os habitantes das Terras Altas que falavam gaélico, esta peça era conhecida como “pequena peça envolvente” (“feileadh beag” e “little wrap” em inglês). Depois evoluiu para “grande peça envolvente” (“feileadh mor” e “big wrap” em inglês), ou manta com cinto, sendo o primeiro traje escocês que surgiu no fim do século XVI, conta Andrew Bolton, atual curador do Costume Institute do Museu Metropolitan de Nova Iorque. Rezam diferentes lendas sobre como se vestiria um kilt, sendo que a mais prática seria pegar no tecido, formar as pregas na mão e depois envolver o corpo e agarrar com um cinto.
Hoje o kilt resume-se à sua parte de baixo e as pregas serão cosidas na parte de trás. A sua invenção, conta Bolton, seria do ferreiro inglês Thomas Rawlinson que empregava vários habitantes das Terras Altas nas suas fornalhas e decidiu simplificar o vestuário deles, para o tornar mais prático e menos pesado. Chamou-lhe “pequeno kilt” (“little kilt”).
Em 1745, a Revolta Jacobita, um golpe que tentou recolocar a dinastia Stewart no trono britânico, saiu frustrado e uma das consequências que nos interessa para este texto,é que o kilt, como traje da Escócia, passou a ser visto como um símbolo de rebelião.
O kilt, ou a “manta com cinto” passou a também a fazer parte da farda das forças armadas. Conta o curador que alguns historiadores defendem mesmo que foi este papel nos regimentos militares que garantiu a sobrevivência do kilt. De facto, tanto nas cerimónias fúnebres de Isabel II, em setembro de 2022, como nas duas corações de Carlos III, em maio e julho de 2023, vimos vários oficiais escoceses, que se destacam pelas suas fardas com kilts nos desfiles com vários regimentos. A peça voltaria a estar na moda, ironicamente, graças ao Rei Jorge VI que visitou a Escócia em 1822 e decidiu vestir-se a rigor com o traje tradicional local lançando a tendência na nobreza da época, como um influencer real. Mais novidades na história do kilt estavam reservadas para o século XXI, uma vez que só então viria a ser usado por mulheres e só depois da II Guerra Mundial ficaria com a forma que conhecemos hoje e próximo dos uniformes de algumas escolas.
O kilt tornou-se uma peça de referência com um estatuto muito especial que mistura tradição com uma boa dose de atrevimento. Nos últimos anos vimos muitas caras conhecidas usarem a peça com orgulho. O ator Sean Connery usou um traje escocês completo para ser condecorado pela Rainha Isabel II na Escócia, em 2000. O piloto de Fórmula 1 Lewis Hamilton foi capa da revista GQ a usar um kilt. E, dúvidas houvesse de que a peça tem um lugar na moda, foram já várias as personalidades a usar um kilt na famosa Met Gala.
O tartan e os embaixadores reais
O traje escocês é composto pelo kilt em tartan, o casaco, a sporran (a bolsa em pelo ou pele à cintura) e a adaga sgian dbh (uma adaga escocesa que se costumava usar escondida) e juntos são uma importante parte da herança da Escócia. Este conjunto costuma até ser usado pelos homens nos casamentos locais. Para as senhoras ficam as típicas saias de pregas e o tartan, o padrão que tem sempre por base uma grelha, depois segue-se uma combinação de cores e os jogos de combinações são infinitos.
Isabel II era uma verdadeira embaixadora do tartan, especialmente quando estava na Escócia, das saias às mantas. Aliás, a última vez que a Rainha foi vista, quando na véspera da sua morte convidou a primeira ministra Liz Truss a formar governo, estava a usar uma saia em tartan. Conta o Guardian que o próprio Castelo de Balmoral era um “templo do tartan”. A residência privada da antiga soberana na Escócia foi comparada em 1852 pelo príncipe Alberto como presente para a mulher, a Rainha Victoria, que não se poupou na decoração com heráldica escocesa e tartans.
Na verdade existe mesmo um tartan Balmoral que os membros da realeza usam e que se acredita ter sido desenhado por Alberto para Victoria em 1853 e conta com uma paleta de cinza, preto e vermelho, para refletir o granito de Aberdeenshire, a localidade onde está o castelo. O design tem sido usado por todos os monarcas britânicos desde então e em 2016 foram descobertos documentos que mostram que o tartan Balmoral está proibido ao público em geral e só o soberano e a família real o podem usar, como se pode ver no registo escocês de tartans. A casa real preveniu-se de ver o padrão ser reproduzido em massa e, em janeiro de 1937, pouco depois de Jorge VI começar o seu reinado quando uma casa de vestuário escocesa perguntou ao palácio se poderia comercializar o tartan, a resposta foi negativa. A regra ainda hoje se mantém e só uma pessoa fora da família real pode usar este tartan: o tocador de gaita de foles do soberano. Os documentos deveriam ter-se mantido fechados ao público até 2025.
Outro tartan que está relacionado com a família real é o tartan real Stewart, que data do início do século XIX e deve o seu nome à dinastia Stewart. Na sequência da revolta jacobita de 1745, esteve banido, mas voltou a ter aprovação da família real quando Jorge IV, tio da Rainha Victoria, visitou Edimburgo em 1822 e a sobrinha viria a adotá-lo mais tarde como o tartan da família real, conta a Town and Country.
O tartan esteve presente nos grandes momentos da história da Escócia e tornou-se parte da sua identidade, por isso mesmo o Museu Victoria & Albert Dundee, na Escócia, tem patente uma exposição que se chama, simplesmente, “Tartan”, abriu no passado mês de abril e pode ser visitada até janeiro de 2024. Reúne mais 300 objetos de diferentes áreas, da moda, grafismo, cerâmica ou filme, através dos quais é possível ver a adaptação do tartan a diferentes peças e contextos. Está também exposta aquela que se acredita ser a amostra de tartan mais antiga da Escócia. O pedaço de tecido foi descoberto há cerca de 40 anos em Glen Affric, uma localidade nas Terras Altas, e estudos científicos permitiram datar a peça entre 1500 e 1600 d.C., tornando-se assim “o mais antigo espécime sobrevivente de verdadeiro tartan na Escócia”, descreve o museu.
Este espaço foi inaugurado em 2018 e recebeu a visita real dos então duques de Cambridge, William e Kate, em janeiro de 2019. Se o príncipe optou por um fato azul escuro, a mulher fez mais uma vez justiça à sua fama de elegância e diplomacia na arte de bem vestir e usou um casaco em tartan verde e azul. Saias de pregas ainda não vimos a princesa usar, mas o seu guarda-roupa conta com uma vasta coleção de casacos em diferentes tonalidades de tartan, aos quais se juntam outras peças, como vestidos, uma saia comprida e cachecóis. Enquanto príncipe de Gales não usa kilts, seguindo a tradição do pai e do avô, a princesa de Gales vai-nos deslumbrando com uma série de peças de roupa em tartan entre as suas escolhas de moda. O casal já mostrou que gosta de trabalhar em equipa e será Kate, por agora, quem assume o papel de embaixadora real desta famosa herança têxtil escocesa.