Andou nas estradas durante quase 20 anos antes de terminar a carreira na Lotto-Soudal no ano passado e foi tendo contactos de sucesso pelas várias provas por onde pontificava. Aliás, o currículo não engana: além de se ter sagrado campeão mundial em 2012 e campeão belga por duas ocasiões, conseguiu ganhar algumas das clássicas com mais história como o Paris-Roubaix, a Liège-Bastogne-Liège, La Flèche Wallone, o Tour de Flandres, o Giro à Lombardia ou a Amstel Gold Race e foi dando cartas por etapas nas grandes voltas com um total de 11 triunfos. Entre elas, a Vuelta foi sempre uma corrida especial ou não tivesse festejado sete tiradas em 2010, 2012, 2013 e 2019. Agora, deixou o profissionalismo mas nem por isso deixou as suas bicicletas e tornou-se comentador do Eurosport, fazendo não só aquele trabalho da mota a seguir os grupos na estrada mas também o estudo daquilo que se pode esperar das etapas. Quem sabe, nunca esquece.

É por isso que Philippe Gilbert aguarda com especial interesse aquilo que será a Volta a Espanha, que tem este sábado a primeira etapa em Barcelona com um contrarrelógio por equipas que parece talhado para mais uma vitória coletiva da Jumbo-Visma – faltando apenas saber, confirmando-se esse favoritismo teórico, que corredor da equipa será o primeiro a envergar a camisola. Muito provavelmente, dois não serão: Primoz Roglic, que ganhou todas as provas que fez em 2023, e Jonas Vingegaard, bicampeão do Tour. Para esse, a corrida trará mais oportunidades com uma nuance que o belga, por mais do que uma vez em conversa com jornalistas europeus, não deixa de destacar: nunca houve tantos candidatos como nesta edição.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Olha-se para a Jumbo-Visma e lá estão Roglic e Vingegaard (apoiados pelo fiel e inesgotável escudeiro Sepp Kuss). Olha-se para a Soudal Quick-Step e aparece o vencedor de 2022, Remco Evenepoel, mais motivado após o triunfo no contrarrelógio dos Mundiais. Olha-se para a Ineos e surge Geraint Thomas, que só perdeu o Giro no contrarrelógio do penúltimo dia. Olha-se para a UAE Emirates e há João Almeida e Juan Ayuso. Olha-se para a Movistar e vê-se Enric Mas. A lista até poderia continuar assumindo que o potencial para surgir uma surpresa capaz de fazer top 5 como se viu no Giro com Damiano Caruso e Thibaut Pinot ou no Tour com os irmãos Yates e Carlos Rodríguez é grande. É um plantel de luxo para a Vuelta, que contará com um total de sete portugueses na edição: João Almeida, Ivo Oliveira e Rui Oliveira (UAE Emirates), Nelson Oliveira e Ruben Guerreiro (Movistar), Rui Costa (Intermarché-Wanty) e André Carvalho (Cofidis).

Philippe Gilbert, atual comentador do Eurosport, ganhou sete etapas na Vuelta entre as 11 em grandes voltas

“É bom que a Emirates vá com dois possíveis líderes, a Jumbo vai fazer o mesmo com o Roglic e o Vingegaard tendo também o Kuss. Se fizermos uma fotografia de uma subida, a cinco quilómetros do final será possível ver três ou quatro corredores da Jumbo, um Soudal com o Remco Evenepoel e os dois da UAE Emirates. É diferente quando tens cartas diferentes. Para o Remco não vai ser tão fácil porque estará mais sozinho. O João Almeida ainda é um corredor jovem, que está a melhorar. Ganhou muita confiança com a vitória que teve na etapa do Giro [Monte Bondone] e por ter terminado pela primeira vez no pódio”, começa por comentar Gilbert sobre o português que no ano passado terminou a Vuelta na quinta posição da geral.

João Almeida consegue terceira melhor classificação nacional na Vuelta no décimo top 5 de um português numa grande volta

“O Almeida é um corredor muito calmo, está sempre a analisar as situações, que não corre muitos riscos e podemos ter a certeza de que vai estar nas decisões. Se é bom ou mau não correr tantos riscos? Depende da tua capacidade, de como te sentes. Na primeira vez em que sentiu que tinha forças para atacar, conseguiu. Antes parecia estar sempre no limite, que queria só seguir na frente. Vai ser bom para ele, esteve sempre nos lugares da frente das grandes corridas. Às vezes tenho a sensação que acham que ele é mais velho e que estão à espera de mais da parte dele mas ainda é novo, tem grandes oportunidades pela frente e tem estado sempre a melhorar, todos os anos aparece mais forte”, acrescenta o antigo corredor belga.

“O que falta para ganhar? Tempo, dar tempo ao tempo”: João Almeida regressa a Portugal em festa (e a pensar na Vuelta e no próximo Tour)

“Na teoria, Roglic tem mais hipóteses de ganhar, venceu três vezes a Vuelta e este ano ganhou as corridas todas que fez. Mostrou que está muito bem agora em Burgos e fez uma boa preparação para lutar pela vitória na Vuelta. Em relação ao Vingegaard, após o Tour falei com muitos corredores que me foram dizendo que estavam exaustos, física e mentalmente. Não é a mesma coisa, o Roglic preparou a Vuelta desde o final do Giro… A vantagem é do Roglic mas com o Vingegaard nunca se sabe, claro… Sepp Kuss? É um corredor chave, está sempre lá nas montanhas, quando fica mais difícil, quando precisamos dele. Pode fazer história porque a Jumbo pode tornar-se a primeira equipa a ganhar as três grandes voltas e ele seria o único corredor que estaria presente no Giro, no Tour e na Vuelta. Era um grande resultado”, refere sobre os favoritos em termos individuais, sem esquecer esse dado histórico que está também em jogo.

O extraterrestre Roglic mostrou o orgulho que é ter um humano português como João: Almeida consegue primeiro pódio de sempre no Giro

“Aquilo que mais me impressiona no Roglic, que este ano ganhou todas as provas por etapas que fez, foi a evolução que teve em termos táticos e a maneira como corre hoje. No passado cometeu alguns erros mas nos últimos dois anos ele mudou a forma de correr. Está a esperar mais até ao último quilómetro ou 500 metros, a ganhar ao sprint. Consegue criar mais dano assim nos adversários porque vai seguindo, controla e no final ganha ao sprint ou num ataque tardio. Conseguiu perceber as suas reais capacidades porque às vezes atacava nos pontos e nos momentos errados e perdia mesmo sendo 20% superior aos outros. Agora está mais calmo, em finais assim é quase imbatível porque está no seu melhor”, reforça a esse propósito.

A maior vitória não foi o Tour, foi ganhar a Pogacar: Meeus vence nos Campos Elísios, Vingegaard conquista segunda Volta a França

“É difícil perceber como estará o Remco. Ele é sempre bom. Vamos ter montanhas duras, a passagem por Andorra também e serão etapas complicadas. Aquilo que vemos é que ele está sempre a melhorar, agora no Giro esteve sempre bem até ter Covid-19. É um grande campeão, é complicado perceber os seus limites, um pouco como tinha dito sobre o João Almeida. O [Geraint] Thomas é alguém de quem não se fala muito mas trabalhou muito para isto, foi a primeira vez que prescindiu do Tour para preparar a Vuelta. O espírito e a confiança é bom porque quando se passa muito tempo em equipa torna-se mais fácil na corrida. Ele quase ganhou o Giro, temos de contar com ele”, prossegue sobre outros potenciais candidatos à vitória.

Uma notícia que pode mudar tudo: Remco Evenepoel desiste do Giro por Covid-19 e João Almeida sobe a quarto a 22 segundos da rosa

“Por norma a Vuelta tem dois ou três candidatos e depois surpresas que aparecem mas esta edição não será assim. Em relação ao Enric Mas, há a dúvida de como vai recuperar da queda que teve, que foi feia, mas com a vantagem de estar num pico de forma quando isso aconteceu, o que também acelera a recuperação. Parece preparado para o desafio. O Juan Ayuso vai pelo mesmo, com o objetivo de poder lutar pelo pódio. Penso que é esse o seu objetivo, como aconteceu no último ano. É por isso que digo que entrar no top 5 nesta edição da Volta a Espanha com tantos nomes vai ser mesmo um grande desafio”, salienta, não mostrando tanta “fé” naquilo que poderá fazer Egan Bernal: “Teve várias quedas depois do regresso e isso vai sendo um problema. O foco deve estar em recuperar, voltar à Colômbia e preparar bem o ano de 2024”.

Por fim, Philippe Gilbert abordou ainda na possibilidade de haver uma vitória portuguesa em etapa entre nomes como Rúben Guerreiro, que venceu em 2020 no Giro e faz a estreia na Vuelta pela Movistar (Rui Costa também ganhou três tiradas no Tour entre 2011 e 2013). “A Movistar tem o Enric Mas mas não sabemos como estará depois da queda. Ele estará entre os cinco ou dez primeiros e isso pode dar liberdade aos seus companheiros de equipa, o que permitirá que o Rúben Guerreiro vá em algumas fugas. Se a Jumbo conseguir a camisola amarela desde início também dará mais margem depois para essas etapas em que o vencedor possa sair da fuga. Dentro desse contexto, o [Rúben] Guerreiro tem hipóteses”, conclui.