Para os amantes do ciclismo poderia não ser propriamente a etapa mais emocionante de todas, para aqueles mais românticos que consideram que todos os vencedores e vencidos merecem ter o seu dia de homenagem por todo o trabalho ao longo de três semanas era a etapa perfeita. A ligação entre Saint-Quentin-en-Yvelines e os Campos Elísios, em Paris, teria por certo uma acesa luta pela vitória no último dos 115 quilómetros de traçado (e sem a hipótese de Mark Cavendish discutir um lugar maior na história depois da desistência no seguimento de uma queda) mas até à meta haveria tempo para a habitual fotografia do vencedor com a equipa, das equipas com os seus líderes, dos líderes das mais variadas camisolas e com um copito ou outro de champanhe. Afinal, estava tudo decidido. E até o balanço do que aconteceu já tinha sido feito na véspera.

Um retrato de todo o Tour: Pogacar decidiu com que imagem saía e Vingegaard só tem de chegar a Paris

“A segunda vitória no Tour também é verdadeiramente fantástica. Claro que ainda há a etapa de amanhã [domingo] até Paris, temos de ser cautelosos e não fazer nada estúpido, mas é maravilhoso. Quase não consigo acreditar. Foi uma luta louca que tivemos ao longo destas três semanas e penso que foi uma corrida muito, muito boa de se ver, e também para nós. Gostei da batalha que tive com o Tadej [Pogacar] neste Tour. Nunca teria conseguido vencer sem uma equipa fantástica como tive e que me apoiou muito estas três semanas. Tínhamos um plano e executámo-lo todos os dias. Não tenho qualquer memória má deste Tour, tudo correu como planeado. Plano? Não posso explicar porque se o Tadej o conhecer, já saberia como é a nossa forma de agir e não pode ser…”, destacara Jonas Vingegaard, vencedor desta edição com uma inesperada vantagem de 7.29 minutos após acabar a segunda semana com apenas dez segundos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Pensou desistir porque nunca ganhava, teve uma grave lesão, trabalhou numa fábrica de peixe, é o rei do Tour: a ascensão de Jonas Vingegaard

“Mudar o calendário? Não. Estou sempre em forma na primavera, porque teria de renunciar a essas corridas? Gosto de estar em todas as frentes. Adoro desafios e ganhar essas provas [clássicas] é isso mesmo, como também é ganhar o Tour. Vou voltar a tentar no próximo ano. Vou voltar mais forte, mais preparado para o próximo duelo com o Jonas e com a Jumbo. O Jonas [Vingegaard] é um grande tipo que respeito muito, têm uma das melhores equipas e consideram-me uma ameaça mas não foram eles que me derrubaram. Fui eu quem caiu, eu sozinho, dentro de mim. Ninguém me derrotou. Aprendi que posso sofrer quando me sinto uma m****, quando estou em baixo, que posso continuar a pedalar. Esse é o ponto positivo que retiro deste Tour”, assumira Tadej Pogacar, que em dois dias perdeu mais de sete minutos para Vingegaard.

“Para mim, pessoalmente, é o melhor resultado que tive numa grande Volta, por isso estou muito feliz com isso. Há um pouco de deceção, porque viemos para aqui com um objetivo, que era a amarela, mas houve um corredor melhor. Não tive nenhum azar, nenhuma doença, o que acontece pela primeira vez em muito tempo, por isso estou feliz”, salientara também Adam Yates, com esse ponto positivo do terceiro lugar na classificação geral que não chegou para ajudar o chefe de fila Pogacar a conseguir a camisola amarela.

“Tive uma etapa incrível. Estava muito motivado, há vários dias que tinha isso na cabeça. Estava pressionado para estar na discussão e fiz o que podia. Faltou-me um pouco de pernas para acompanhar o grupo dos melhores. Havia uma multidão incrível na estrada e esta vai permanecer, talvez, como a mais bela etapa da minha carreira. Foi uma loucura. No Petit Ballon, senti arrepios, foi indescritível, só vivendo. Se calhar, foi a última vez que senti isto e só quero agradecer porque tenho dificuldade em perceber que aquilo tudo era para mim. Este é o ciclismo que amo, o ciclismo do antigamente, com bom ambiente e muito respeito. Não tenho arrependimentos”, frisara também Thibaut Pinot, corredor da Groupama que fazia este domingo a despedida da Volta a França depois do sétimo lugar em Le Markstein e 11.º da classificação geral.

Jonas Vingeggard ficaria assim com a amarela à frente de Tadej Pogacar (7.29) e Adam Yates (10.56). Giulio Ciccone foi o primeiro italiano a ganhar a montanha nas últimas três décadas (105 pontos) à frente de Felix Gall (92) e Vingegaard (89). Jasper Philipsen, o grande vencedor a nível de etapas desta edição, ficou com a camisola dos pontos (377) batendo Mads Pedersen (258) e Bryan Coquard (188). Pogacar terminou com a consolação da camisola branca da juventude, com Carlos Rodríguez e Felix Gall nos lugares seguintes. A Jumbo ganhou também no plano coletivo, vencendo UAE Team Emirates e Ineos (que passou a Bahrain na penúltima tirada). Faltava apenas assinalar a festa e saber quem era melhor nos Campos Elísios, num dia que já estava sobretudo a ser marcado pelo anúncio de Vingegaard na equipa para a próxima Vuelta e que teve também outra informação surpresa: Victor Campenaerts ganhou o prémio da combatividade de 2023.

Sepp Kuss era talvez a principal marca das três semanas de Volta à França. Com pensos na cara e ainda todo raspado da queda da véspera, não quis faltar ao momento da coroação de Vingegaard depois de contribuir e muito para o sucesso do dinamarquês – algo que já fizera com Primoz Roglic no Giro (a nível de marcas o espanhol Carlos Rodríguez não ficou nada atrás). Comparando com a Volta a Itália, o Tour de 2023 teve tréguas da parte do tempo, embora a primeira vez que tenha existido chuva de manhã tenha coincidido com a primeira grande queda coletiva, mas obrigou todos os corredores a andarem no limite. Nesse particular, Felix Gall, Adam Yates, Carlos Rodríguez e Pello Bilbao foram os outros “vencedores”, ao passo que entre todas as desilusões e desistências tenha ficado também a ideia de que Jai Hindley poderia ter feito pódio.

Nem mesmo na subida de quarta categoria houve um esboço de tentativa de fuga, com os corredores mais rápidos ao sprint a começarem a preparar esse momento como Jasper Philipsen ou Mads Pedersen. Aliás, olhando para o que se seguia era algo percetível – quem começa a passar pela zona do Louvre e depois do Arco do Triunfo prefere admirar a vista do que andar aos ataques. Só mesmo aí começou a haver algumas movimentações na frente e com mais uma surpresa: Nathan van Hooydonck, da Jumbo, quis isolar-se mas Tadej Pogacar não só foi buscá-lo como assumiu a fuga, ganhando em pouco tempo dez segundos. Mesmo com mais de dez vitórias na época, mesmo com a amarela perdida, o esloveno dava espectáculo.

Não sendo algo que no final tivesse grandes resultados práticos, Pogacar quis mostrar que todas as etapas de qualquer prova contam e revelou aquele que é o maior ADN da nova geração de ouro do ciclismo mundial: a modalidade tem como objetivo máximo ganhar mas existe um lado de espectáculo que nunca deve ser descurado. O esloveno sabia que quando se isolasse teria vários outros corredores a pensar no mesmo e que as equipas dos principais sprinters teriam de reagir com um aumento de ritmo. Ainda assim, foi para a frente fazer o que mais gosta, sendo intercetado por mais corredores a 35 quilómetros do final. O epílogo da Volta a França em plenos Campos Elísios iria ser bem mais movimentado do que se pensava.

O português Nelson Oliveira também teria o seu momento no último dia, aproveitando a fase em que Pogacar foi intercetado para disparar na frente para uma fuga com Simon Clarke e Frederik Frison que chegou no máximo a ter 10/15 segundos antes de acabar por ser anulada a 12 quilómetros do final, altura em que o pelotão colou entre algumas cautelas maiores pela queda de alguma chuva que deixou a estrada ligeiramente molhada antes de regressarem uns tímidos raios de sol. Os principais favoritos estavam na frente para os últimos três quilómetros também com Tadej Pogacar por perto antes de uma chegada digna de photo finish quando parecia que Jasper Philipsen tinha a vitória controlada mas Jordi Meeus foi mais rápido.

Contas feitas, o belga terminou com 2.56.13, batendo ao sprint Philipsen, Dylan Groenewegen, Pedersen, Cees Bol, Biniam Girmay, Bryan Coquard, Sören Waerenskjold, Corbin Strong e Luca Mozzato. Na geral, tudo na mesma: Jonas Vingegaard venceu com 7.29 de vantagem sobre Tadej Pogacar, Adam Yates acabou na terceira posição (10.56), o irmão Simon Yates ficou em quarto (12.23) e Carlos Rodríguez foi quinto (13.17). Pello Bilbao (13.27), Jai Hindley (14.44), Felix Gall (16.09), David Gaudu (23.08) e Guillaume Martin (26.30) fecharam o top 10, onde não entraram Thibaut Pinot, Sepp Kuss e Thomas Pidcock, entre outros.