O jornal As dedicava esta quarta-feira uma grande reportagem à subida ao Angliru, naquilo que descrevia como “o terror de Vuelta”. Chegou à prova espanhola em 1999 com a primeira vitória de Chava Jiménez, teve essa marca de levar todos os corredores aos limites das suas capacidades pela “identidade própria” que todos os 12,4 quilómetros com subida média de 9,8% têm entre Les Cabanes (22%), Los Picones (20%), Cobayos (21,5%), La Cueña les Cabres (23,5%) ou El Aviru (21,5%). Havia ainda assim uma curiosidade em relação à etapa que voltava em 2020: apenas por uma vez quem ganhou no pico asturiano foi depois o vencedor da Volta a Espanha (Alberto Contador em 2008). E essa era a maior curiosidade no dia D depois de um “ensaio” no outro monstro, o Col du Tourmalet, que riscou Remco Evenepoel e João Almeida, entre outros.

Todas as atenções estavam centradas numa só equipa, a Jumbo. Juan Ayuso teria um derradeiro momento para tentar assumir o protagonismo sabendo que tinha ainda Marc Soler e João Almeida numa UAE Team Emirates que partia também com três elementos no top 10, Enric Mas também tentava aproximar-se de uma posição de pódio com a ajuda de Einer Rubio numa Movistar que perdeu cedo Rúben Guerreiro, Mikel Landa continuava com a postura de como quem não quer a coisa andar na frente para perceber até onde podia ir a Bahrain e o próprio Aleksandr Vlasov, com um companheiro da Bora (Cian Uijtdebroeks) muito perto de si na classificação mesmo que não nos tempos, olhava para esta 17.ª etapa como uma oportunidade. Ainda assim, e apesar de todos estes fatores, era na Jumbo e só na Jumbo que recaíam todos os olhares do dia.

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A vitória mais triste da carreira quase lhe valeu a camisola vermelha: força da amizade dá vitória a Vingegaard

Logo à cabeça, a equipa que ganhou o Giro (Primoz Roglic) e o Tour (Jonas Vingegaard), que tenta agora em Espanha uma inédita conquista das três grandes voltas e que tem os três melhores corredores no pódio está a viver um momento particularmente delicado com a situação de Nathan van Hooydonck, um dos principais gregários que esteve na Volta a França e amigo próximo de Vingegaard que se sentiu mal enquanto conduzia com a mulher grávida ao lado, desmaiou numa zona de cruzamento e teve um acidente que o deixou numa primeira instância em estado crítico mas que entretanto a equipa assegurou não correr perigo de vida (sem que se tenha percebido ainda o que se passou, com a imprensa internacional a levantar a possibilidade de ter sofrido um enfarte). Depois, pelo resultado da chegada a Bejes desta terça-feira, com Vingegaard a ganhar de novo e a ficar mais próximo do líder Sepp Kuss. Por fim, pela própria tática e ordem na equipa.

“Não quero que ninguém me dê nada nesta Vuelta, isso não é desporto porque tem de ganhar o mais forte”, tinha referido Sepp Kuss após a última etapa. Ainda com as marcas de uma queda feia que teve na penúltima tirada do Tour, o norte-americano que rebocou Roglic e Vingegaard nas outras grandes voltas assumiu a liderança em Espanha, “safou-se” no contrarrelógio mas tinha apenas 29 segundos de avanço em relação a Vingegaard. O dinamarquês, esse, já fala na possibilidade de lutar pelas três grandes voltas no mesmo ano a médio prazo mas por agora dizia apenas que estava satisfeito pela vitória em Bejes que não celebrou por ter a situação de van Hooydonck no pensamento. E ainda havia o esloveno Roglic, até agora discreto nas etapas a subir mas que montara a temporada para fazer e ganhar o Giro (como conseguiu) e a Vuelta. Nem a própria Jumbo tecia grandes comentários sobre a tática para o dia que podia fechar de vez as grandes decisões.

Era neste contexto que surgia a etapa mais esperada a par do Tourmalet, tendo já uma vitória portuguesa no domingo com Rui Costa em Lekunberri e a ameaça de outro triunfo por parte de João Almeida. “Estou a ficar melhor, embora ainda não esteja a 100%, vamos ver como correm os próximos dias. Uma etapa para ganhar? Talvez no Angliru. É uma etapa dura… Vamos ver, a Jumbo está bastante forte e será também uma questão de pernas. Temos de fazer uma corrida dura para tentar que um deles tenha um dia mau, perca tempo e a partir daí subirmos automaticamente ao terceiro lugar com o Juan [Ayuso]. É bastante possível”, tinha dito no segundo dia de descanso o português da UAE Team Emirates, equipa que em Bejes lançou Fisher-Black para segundo e Almeida para novo ataque no final (algo que não deixou Ayuso particularmente satisfeito).

Para apimentar as coisas fora da estrada, a mulher de Primoz Roglic, Lora, foi mostrando nas redes sociais o seu descontentamento com a tática da Jumbo para a Vuelta a deixar “de fora” o esloveno tendo Kuss com a camisola vermelha e Vingegaard a atacar duas vezes para subir ao segundo lugar depois de ter sido um dos principais prejudicados no contrarrelógio de Valladolid. Na estrada, aí, apareceu de novo o protagonista que encarnou uma segunda vida após ter perdido quase 30 minutos na tirada do Tourmalet: com menos de cinco quilómetros percorridos num dia que prometia ser bastante duro, Remco Evenepoel lançou logo o primeiro ataque para tentar sair na fuga com Thomas de Gendt  e Casper Pedersen (e mais tarde Julius Johansen e Kim Heiduk) mas o pelotão fez questão de anular qualquer movimento do vencedor de 2022.

Sepp Kuss tinha soprado as velas do bolo do 29.º aniversário uns minutos antes quando a Jumbo foi ao palco da apresentação mas não demorou a perceber que ia ser uma tirada atacada desde início e com problemas extra a abrir, com uma queda grande no pelotão numa fase em que Mattia Cattaneo, Larry Warbasse, Chris Hamilton, Romain Combaud e Lorenzo Germani tentavam sair na fuga tendo ainda Edward Theuns e Stefan Bissegger por perto sem que chegassem a entrar a 100% e sendo depois absorvidos pelo pelotão, que tinha os fugitivos a menos de 30 segundos. Um pouco depois, mais uma tentativa do sempre animado Remco de descolar agora com Filippo Ganna e Jonas Koch a seu lado, também ela outra vez anulada sendo que agora o belga já teria o apoio de um companheiro da Soudal Quick-Step na frente, neste caso Mattia Cattaneo.

O próprio Remco assumia ao Eurosport que esperava conseguir ganhar uma das próximas duas etapas, sendo que a prioridade passava também por somar pontos numa fase em que estava na liderança da camisola da montanha (na geral, após mais uma tirada de “descompressão”, estava em 15.º mas a quase meia hora da frente). À terceira, foi mesmo de vez: o belga, que este ano se sagrou campeão mundial do contrarrelógio após ter desistido com Covid-19 do Giro, conseguiu sair com mais alguns corredores do pelotão e ficou na frente com Cattaneo, Germani, Warbasse, Combaud, Hamilton e mais Geoffrey Bouchard, Jarrad Drizners, Jorge Arcas, Paul Ourselin e Kévin Ledanois. Eram 11 passaram a cinco, eram cinco ficaram apenas três e Remco Evenepoel estava onde queria, só com Cattaneo e Germani com 40 segundos de avanço em relação ao grupo perseguidor e 1.30 do pelotão que começava a mexer-se a pensar na parte final, sem que se percebesse como agiria uma Jumbo que aparentava ser só sorrisos mas sabia que só um poderia rir no fim.

Quando se esperava que a distância não passasse daí, a Soudal Quick-Step foi aumentando o ritmo na frente para chegar a uma vantagem acima de dois minutos, sendo que a Lotto tentava também entrar nas contas ao colocar três unidades no grupo intermédio (Andreas Kron, Eduardo Sepúlveda e Jarrad Drizners, que veio pouco depois a descer) onde seguia também Edward Theuns. Tudo começava a mexer, com Evenepoel e Cattaneo a isolarem-se de Germani na frente e Marc Soler a querer assumir o comando das operações no pelotão sem que a Jumbo ligassem os alarmes. A pouco menos de 50 quilómetros do final, o espanhol que estava em sexto da geral já estava a 1.16 do grupo da frente e com 1.20 de vantagem, altura em que a Jumbo agarrou no pelotão em zona de subida para começar a tentar colocar tudo em ordem e a seu jeito.

Enquanto a distância em relação a Soler ia sendo mitigada, Remco voltava a fazer das suas na frente: um cumprimento ao companheiro Cattaneo (que num ápice caiu a pique até ao pelotão), mais uma aceleração e fuga a solo na frente tendo uma vantagem ligeiramente superior a dois minutos quando já estava a rodar a 25 quilómetros do final e quando era a Bahrain que se chegava à frente para assumir o ritmo do pelotão e chegar a Soler que via a tentativa de ter uma jornada de glória anulada. No início da descida antes das decisões em pouco mais de 12 quilómetros que poderiam escrever a história final da Vuelta (com especial enfoque para o inferno dos últimos sete), o belga levava um avanço de 2.20 parecendo fazer uma boa gestão de esforço.

A ascensão ao Angliru começou com a diferença já recortada para Remco na ordem de 1.30, após a descida muito técnica que terminava com uma pendente de 8,4%. a subir para abrir hostilidades. No pelotão, havia ainda Bahrain da frente, quatro Jumbo de seguida e a UAE Team Emirates, com João Almeida a ter de fazer um esforço extra para ir mais para a frente por não ter entrado também após a descida. Na liderança, já com muitas pessoas na estrada (e muitas bandeiras portuguesas) entre algum nevoeiro que se começava a avistar, o belga abria a camisola quase a desafiar a alta voltagem do pelotão para chegar ao topo e com Marc Soler a dar alguns sinais de fraqueza após o esforço despendido no ataque sem resultado. Começava a apertar.

Além de Soler, também Aleksandr Vlasov andava na cauda ou a poupar forçar ou a sentir dificuldades sem que os principais obstáculos tivessem ainda chegado enquanto a Bahrain continuava a marcar o ritmo com um trabalho que procurava colocar no final Mikel Landa dentro do top 5 da geral. Antonio Tiberi ainda tinha gasolina no tanque para puxar e Wilco Kelderman começava a ceder, deixando a Jumbo “apenas” entregue aos seus Três Mosqueteiros tal como Fisher-Black em relação à UAE Team Emirates (neste caso só com Juan Ayuso e João Almeida). A pouco mais de seis quilómetros, a vantagem de Remco tinha descido a 40 segundos e a luta pela vitória na etapa parecia bem mais aberta do que à partida se chegou a pensar, agora com Caruso a assumir a cabeça do pelotão. Vlasov também cedia, o próximo parecia ser… João Almeida.

Mesmo com a cadência máxima, os corredores quase que andavam para trás perante uma pendente que não dava tréguas, ainda mais depois de mais de duas semanas de prova. Romain Bardet e Wout Poels tentavam chegar à frente para lutarem pela etapa quando a 5,5 quilómetros Remco foi apanhado. O bloco da Bahrain continuava muito coeso, Cian Uijtdebroeks e Juan Ayuso também sentiam a subida, Mas colava no trio da Jumbo sem que a Movistar tivesse qualquer tática para lançar o espanhol na frente e a Bahrain acelerava para tentar aproveitar a quebra da UAE Team Emirates, o que deixou Enric Mas para trás. A competição nos últimos quatro quilómetros tornava-se um 3×3 entre Jumbo e Bahrain, com vantagem para aquele “mini comboio amarelo” onde continuavam a seguir Sepp Kuss, Jonas Vingegaard e Primoz Roglic.

Do lado da Bahrain, o cenário era claro: trabalho para o regresso aos triunfos de Mikel Landa, que não tinha uma vitória numa etapa da grande volta há seis anos. Da parte da Jumbo, tudo em aberto. Porque Sepp Kuss parecia confortável, porque Vingegaard à vontade (dentro do possível perante uma subida destas), porque Roglic queria atacar. E foi mesmo o esloveno a vir para a frente numa fase de pendente a 18%, com João Almeida um pouco atrás a colar em Enric Mas deixando Juan Ayuso e Landa a ceder ao comboio amarelo. Era entre o trio da Jumbo que iria sair a vitória, sendo que Sepp Kuss foi o primeiro a ceder com Roglic e Vingegaard a lutarem entre si pelo triunfo apesar da comunicação pela rádio do norte-americano.

Foi aqui que a história conheceu um novo capítulo: Landa colou em Kuss e o camisola vermelha ganhou uma força extra para ir buscar os dois da frente, reduzindo a desvantagem para 15/17/20 segundos que ainda o mantinha no primeiro lugar apesar das bonificações. Assim foi: Roglic ganhou, Vingegaard foi segundo, Kuss acabou em terceiro e manteve a camisola vermelha com Mikel Landa em quarto da etapa (ambos a 19 segundos) e João Almeida a chegar em sexto (58”) atrás de Wout Poels (44”). Cian Uijtdebroeks (1.20), Santiago Buitrago (1.20), Juan Ayuso (1.42) e Enric Mas (1.43) fecharam o top 10 da chegada a Angliru.

Em termos de geral, Sepp Kuss segurou a camisola vermelha da liderança tendo agora apenas oito segundos de vantagem sobre Vingegaard e 1.08 de Roglic. Seguem-se Juan Ayuso (4.00), Mikel Landa (4.16), Enric Mas (4.30), Cian Uijtdebroeks (6.43), Aleksandr Vlasov (7.38), João Almeida (9.26) e Santiago Buitrago (11.26), com o português a subir a nono após a queda a pique de Marc Soler de sexto para 13.º (21.56).