É um tema que os partidos querem pôr na agenda, mas o Governo vai chutando para 10 de outubro, data da apresentação do Orçamento do Estado (OE) para 2024. Porém, esta semana, o Executivo foi mesmo obrigado a falar do IRS. Uma resposta do Ministério das Finanças à SIC gerou controvérsia por admitir que quem ganha o salário mínimo poderá pagar IRS em 2024. Algo que até já estava previsto desde o OE 2023. Face à posição das Finanças, o primeiro-ministro interveio para dizer o contrário. “É uma discussão que não faz sentido”, sublinhou António Costa. A verdade é que, a manter-se o regime atual, quem recebe o salário mínimo arrisca-se mesmo a pagar IRS em 2024. Tal só não acontecerá se o Governo tomar medidas.

O que disse o Ministério das Finanças?

“Como previsto, o limiar de isenção de IRS passará a ser, a partir de 2024, o Indexante dos Apoios Sociais, e não o salário mínimo nacional. O facto de os trabalhadores com salário mínimo nacional passarem a ter de entregar declaração de IRS em 2024 não significa que venham a pagar imposto. Isto porque com as deduções à coleta podem chegar a tributação zero. Não excluindo situações que se estimam pontuais, a larguíssima maioria não suportará qualquer imposto“. Foi esta a resposta que chegou a algumas redações, como a da SIC que tinha avançado com a notícia sobre o fim da isenção de IRS, a partir de 20204, para quem receber o salário mínimo nacional — uma hipótese calculada desde o último Orçamento do Estado, como o Observador tinha escrito na altura.

Quem ganha salário mínimo precisa de deduzir despesas para não pagar IRS a partir de 2024

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Ou seja, as Finanças confirmavam que essa era uma possibilidade, tendo em conta a nova formula de cálculo do mínimo de existência que podia vir a penalizar alguns contribuintes. Situações “pontuais”, alegava a resposta oficial. O assunto não ficou por aqui (como pode ler a seguir), mas as Finanças não voltaram a falar dele.

O que disse António Costa?

O assunto chegou ao debate na moção de censura ao Governo com o primeiro-ministro, na passada terça-feira, onde Chega e Bloco de Esquerda perguntaram diretamente se a isenção sempre acabava, como a nota das Finanças indiciava. Mas Costa desmentiu essa intenção: “Nós temos neste momento o mínimo de existência fixado no valor correspondente precisamente a 14 vezes o valor do salário mínimo nacional. Não é entendimento do Governo que se deva alterar essa situação. Nós temos fixado o calendário de atualização do salário mínimo até ao final da legislatura e, com grande probabilidade, iremos atualizar o mínimo de existência em conformidade com a atualização do salário mínimo”.

A resposta do primeiro-ministro deixa clara a manutenção da isenção de IRS para trabalhadores com o salário mínimo. Mas também indica que o primeiro-ministro não considera que esta seja uma boa altura para alterar a formula de cálculo: “Não é entendimento do Governo que se deva alterar essa situação. ” Uma evidente contradição com a intenção das Finanças de começar já em 2024 a calcular o mínimo de existência, com o Indexante dos Apoios Sociais como valor de referência, em vez do salário mínimo. E na questão política não era menor o desacerto com Costa a vir mesmo lembrar que a linha socialista é apresentar já no próximo Orçamento “uma proposta que cumpre aquele objetivo que está enunciado já publicamente de reduzir em mais de dois mil milhões de euros aquilo que os portugueses pagam em IRS. Assim sendo, não faz sentido que quem não pague [IRS] passe a pagar, sobretudo quem tem rendimentos mais baixos”.

O que aconteceu?

Entre socialistas, o caso é visto como uma vitória da política face às tecnicidades que dominam as Finanças e uma clara desautorização política do líder do Governo ao Ministério liderado por Fernando Medina. O salário mínimo nacional é uma bandeira para António Costa desde o seu primeiro Governo, tendo sempre fixado calendários de atualização desse valor ao longo da legislatura. Uma estratégia que fez a retribuição mínima aumentar 255 euros em sete anos e que o PS preza, sobretudo em ano eleitoral (como o que aí vem, com as Europeias em junho). Tocar nessa franja da população é, por tudo isto, coisa a evitar, mesmo que para isso seja necessário o primeiro-ministro desautorizar de forma clara o ministro das Finanças — o Ministério de Medina remeteu-se ao silêncio desde este episódio.

Esta quarta-feira à noite, na Sic-Notícias, o deputado socialista Pedro Delgado Alves era confrontado com o desacerto no Governo e sintetizava o sentimento socialista: “Se as Finanças perentoriamente diziam isso, o primeiro-ministro desautorizou o ministro das Finanças e muito bem. Neste momento não se justifica este caminho.”

O que é certo é que a nova fórmula de cálculo entra mesmo em vigor no próximo ano (ver em baixo) e as finanças vão ter, agora, de procurar uma solução técnica que acautele este compromisso assumido pelo próprio chefe do Executivo.

Quais são as regras em vigor?

O OE 2023 introduziu alterações ao chamado mínimo de existência, que é o montante até ao qual um rendimento fica livre de IRS. Até agora, o mínimo de existência tinha como referência o salário mínimo, o que isentava de imposto quem auferisse esta remuneração. Mas a reforma do mínimo de existência veio introduzir uma alteração, e este indicador passou a ter como referência o Indexante dos Apoios Sociais (IAS), que está nos 480,43 euros.

Reforma do mínimo de existência será feita de forma faseada em dois anos

Só que o OE 2023 criou uma espécie de período de transição, tornando a reforma gradual, porque fixou o mínimo de existência em 2023 nos 10.640 euros, que equivale a 14 vezes o salário mínimo atual, de 760 euros. O objetivo era evitar distorções que podiam prejudicar quem ganha ligeiramente acima do ordenado mínimo.

Isto porque a aplicação da regra do mínimo de existência é feita no final da liquidação do imposto, o que resultava que, “para um conjunto significativo de agregados com o rendimento bruto ligeiramente superior ao limite do mínimo de existência, o rendimento líquido de IRS é igual a este limite“, lia-se no relatório que acompanhava o OE 2023.

Assim, segundo o OE 2023, no próximo ano o mínimo de existência passará a corresponder ao maior valor entre 10.640 euros, o salário mínimo atual, e uma fórmula que definida para corresponder a 1,5 IAS vezes 14 meses, o que totaliza 10.089 euros. Foi por isso que em 2023 o Governo colocou o mínimo de existência nos 10.640 euros para 2023. Ressalvando que nos anos seguintes essa ligação com o salário mínimo acaba e o mínimo de existência passará “a ser atualizado em função da evolução do IAS”.

Quem recebe o salário mínimo pode pagar IRS?

Face às normas em vigor, sim. Isto porque as despesas gerais, mesmo que utilizadas na totalidade na dedução ao IRS, não são suficientes para escapar ao pagamento. Segundo as contas que o fiscalista Luís Leon fez para a Lusa, um contribuinte solteiro e sem dependentes que recebe o salário mínimo, que em 2024 será de 810 euros, teria de apresentar despesas de saúde, educação ou habitação para não ter de pagar 279 euros de imposto.

Despesas gerais familiares não chegam para travar IRS a quem ganha salário mínimo

O que é preciso acontecer para haver isenção?

Para que um contribuinte que ganhe o salário mínimo permaneça livre do pagamento de IRS, o mínimo de existência teria de continuar ligado ao salário mínimo do próximo ano, de 810 euros, o que colocaria a referência em 11.340 euros. O primeiro-ministro deu a entender esta semana que, nesta fase, não faria sentido prosseguir com o “desligamento” previsto. Também poderá dar-se o caso de o Governo criar outra fórmula para o IAS. Ou seja, em vez de o mínimo de existência corresponder a 14 IAS vezes 1,5, este último indicador poderia aumentar.