John dos Passos, o neto, tem o sonho de fazer um filme alusivo à ditadura de Salazar e ao fim deste período que completa, no próximo ano, 50 anos: “Filho de Portugal” (“Son of Portugal”). Lançou uma campanha para o fazer e, a duas semanas de terminar o prazo, ainda lhe falta mais de metade do valor necessário.
Ao Observador, John dos Passos Coggin (nome completo) conta como se inspirou no momento em que o avô (John dos Passos, 1896-1970, o romancista e pintor norte-americano descendente de emigrantes madeirenses) salvou a família Robles da perseguição fascista em Espanha. No “Filho de Portugal”, é uma família norte-americana, os Connemaras, que salva João, um jovem português de 16 anos, da ditadura de Salazar.
Quando o regime de Salazar tortura o pai do João, pró-democracia, e depois vem atrás do próprio João, os Connemaras têm de decidir o que estão dispostos a fazer em nome da família e da democracia”, lê-se na apresentação do drama, passado em 1964.
O filme resulta de uma parceria entre o único neto de John dos Passos e Marcio Rosario, ator, diretor e produtor brasileiro. Juntos lançaram uma campanha de angariação de fundos na plataforma Kickstarter, onde esperam angariar 10 mil dólares (cerca de 9.400 euros). No momento da publicação deste artigo, a 13 dias do fim da campanha, John dos Passos Coggin tinha angariado cerca de 4.500 dólares.
O Observador entrevistou por email o neto de John dos Passos que é também curador do espólio do avô.
Este filme é totalmente fictício ou tem alguma inspiração em factos reais, para além do contexto político dos dois países?
A base do guião do meu filme é uma família americana que acolhe e apoia um refugiado político português na década de 1960. Um rapaz chamado João. Cheguei a este tema através do meu avô. Foi essa a principal inspiração.
O meu avô preocupava-se muito com a política e com as vítimas de retaliação política. Por exemplo, a pedido de Albert Einstein, ele e outros intelectuais fundaram a International Relief Association, em 1933. Esta associação foi a antecessora do atual International Rescue Committee. Mais tarde, durante a Guerra Civil Espanhola, Dos Passos ajudou a família Robles, uma família espanhola destroçada pela guerra.
O que aconteceu com a família Robles?
Em 1916, durante a sua primeira visita a Espanha — um país que lhe tocou tanto o coração como Portugal —, o meu avô conheceu e rapidamente se tornou amigo do intelectual espanhol José Robles, com quem conversou sobre política, literatura, arte e arquitetura nas tertúlias da época. Quando chegou a Guerra Civil de Espanha, Robles trabalhou como tradutor para a causa republicana. Penso que era um verdadeiro crente na democracia e um verdadeiro inimigo do fascismo. A investigação dos historiadores indica que Robles foi apanhado pelas forças estalinistas que se tinham infiltrado na causa republicana. Desapareceu e deixou a mulher e os filhos em desespero. Provavelmente foi assassinado — purgado pelos estalinistas.
Apesar dos perigos, o meu avô procurou Robles por toda a Espanha e, não o tendo encontrado, fez tudo o que pode para cuidar da família do seu amigo, ajudá-los a sair do país e a procurar refúgio no México. O caso Robles pegou-se-lhe à alma e ele passou de uma voz nacional de esquerda para uma voz ponderada da direita nos Estados Unidos. O meu guião de “Filho de Portugal” transpõe simplesmente o espírito dessa história espanhola para Portugal e para a ditadura de Salazar.
Qual foi a principal motivação para criar este filme?
Há o ângulo dos refugiados, que veio do meu avô, mas a vida e o legado de António de Oliveira Salazar são também — e naturalmente — uma parte fundamental do guião do filme. O ponto de conflito no filme é Salazar ou uma extensão dele, com a sua sombra a pairar sobre todo o filme. O meu instrutor sobre a história de Salazar foi o académico português Miguel Oliveira, um excelente escritor e historiador, e um bom amigo. Quanto mais aprendia, mais queria saber sobre este homem complexo, Salazar.
O meu segundo pensamento foi saber que os atores iriam querer interpretar este papel. A fanfarronice barulhenta de um ditador como Benito Mussolini é bastante simples. Não seria duplamente interessante para um ator interpretar um professor silencioso transformado em ditador que acredita estar a fazer um bem moral?
Quem imagina que possa ser o público para este filme?
O público é muito importante para o meu projeto cinematográfico. A visão do meu projeto é fazer um filme internacional, EUA-Portugal-Brasil, escrito em língua inglesa. Desenvolver um filme como este em inglês abre um mercado amplo e uma profunda responsabilidade como cineasta. A história da longa ditadura salazarista em Portugal não está contada nos Estados Unidos. Agora, o meu parceiro de negócios e eu temos a oportunidade de transmitir este importante e perigoso capítulo do fascismo europeu a uma vasta audiência, incluindo nos Estados Unidos. “Filho de Portugal” é um conto de alerta sobre o fascismo, o que é muito relevante.
A história da sua família assemelha-se de alguma forma à história do João, a personagem?
O João, um adolescente português que cresceu na ditadura de Salazar nos anos 1960, é uma combinação entre mim e o meu avô. O meu avô e eu tivemos uma infância semelhante: ambos andámos em escolas privadas durante algum tempo e éramos rapazes reservados. Ambos começámos a escrever criativamente na adolescência. Outras partes da vida do João são muito distantes da minha experiência. Portugal dos anos 1960 tinha uma cultura única, muito diferente do Portugal atual. Mas sinto muita empatia pelo João e a empatia é sempre a base de uma boa característica para um argumentista.
Pode falar-me mais sobre o seu trabalho como curador da obra do seu avô?
Desde 2013, quando a minha mãe Lucy e eu lançámos o site www.johndospassos.com, temos gerido o espólio literário de John dos Passos. O meu trabalho consiste principalmente em escrever e publicar novos estudos sobre o meu avô, partilhar notícias nas redes sociais, corresponder-me com os agentes que representam a obra do meu avô e participar na conferência bianual da sociedade académica John Dos Passos.
É uma alegria e um privilégio permanente representar o espólio de Dos Passos. Como o meu avô morreu em 1970, antes de eu ter nascido, nunca o conheci pessoalmente. Mas sinto que o conheci devido às memórias vividas da minha mãe e às memórias maravilhosamente elaboradas que o meu avô escreveu nas suas cartas, diários e memórias. A sua personalidade brilhante e resistente transparece especialmente nestes artefactos.
Como não sou um académico — sou um escritor criativo que trabalha independentemente de uma universidade —, a minha escrita sobre John dos Passos é sobretudo de natureza biográfica. Gosto de destacar capítulos pouco relatados da sua rica e variada vida, como os 18 anos que viveu em Provincetown e as suas ligações à cultura marítima portuguesa. Foi esse o tema do meu recente ensaio na revista The American Scholar.