Este artigo foi originalmente publicado no 13.º número da
revista DDD – D de Delta, lançada no último trimestre de 2023.
Para Mariana Cabral, mais conhecida como Bumba na Fofinha, tudo começou na blogosfera. Seguiram-se vídeos no Youtube, dois podcasts, milhões de visualizações, um Globo de Ouro, televisão e um espetáculo de stand-up a solo, “Suar do Bigode”, que esgotou as salas por onde passou. Uma das vozes de maior sucesso no humor em Portugal estreia agora uma nova temporada de Reset, o podcast patrocinado pela Delta Q, em que figuras públicas falam dos seus falhanços e vulnerabilidades.
Encontrei os primeiros posts do Bumba na Fofinha, de novembro de 2011. Neles escreveste que o blogue “surge com um só propósito nobre: o de me desintoxicar do mau humor matinal”. Foi uma boa terapia?
Foi, super. Quando comecei o blogue trabalhava na Cisco, uma empresa de routers – que até hoje não sei o que são, confesso. O mau humor matinal vinha de não estar muito feliz naquele trabalho. O blogue surgiu como um escapismo, algo que fazia durante a hora de expediente. Funcionou porque me sentia muito feliz a escrever. Foi quando percebi que, se calhar, estava na carreira errada.
Porquê Bumba na Fofinha como nome?
Bumba na Fofinha foi uma expressão que ouvi de um amigo meu, assim muito en passant, para quando queremos dizer “Olé!”, quando temos razão. Longe estaria eu de saber que teria de justificar isto tantas vezes. Não é um nome que se explica facilmente. O trabalho de uma vida é tentar limpá-lo e mostrar que não precisa de ser bardajão.
Passava-te pela cabeça que pudesse explodir como aconteceu?
Jamais. Senão não tinha escolhido este nome, que parece de filme porno de terceira, não é? [Ri-se.] As coisas foram-me sempre acontecendo. De repente, ter 100 pessoas a ler o meu blogue já era completamente fora, era uma escala que me fazia pensar: “Ah, 100 pessoas não cabem na minha casa.” O alcance que fui atingindo foi uma espécie de escadinha de estupefação. Até aceitar que isto podia ser a minha vida, demorei muito tempo. Achei que era uma coisa passageira, que se calhar não ia resultar. Ainda hoje tenho um respeito enorme, por ser a coisa volátil que é, o privilégio que é.
Como foi começares a ter noção do teu alcance?
Tive dois momentos impactantes. Um foi quando, em relação à audiência do primeiro vídeo que fiz, o meu namorado me disse: “São três estádios do Benfica cheios que te viram.” Que pânico! Pensei: “Não é possível tanta gente. Porquê?” Como sempre tive de me esforçar muito nos meus trabalhos, fazer uma coisa que era tão natural para mim era mesmo indecifrável. Como é que era possível? Mais tarde, tive outro momento, no NOS Alive, depois de ter feito os primeiros vídeos com grande alcance, em que, de repente, não podia dar dois passos. Foi chocante, esse primeiro encontro saloio com a fama. [Ri-se.]
Lidas bem com isso? Todos temos dias…
É verdade, não vou armar-me – às vezes só queria estar. Mas as pessoas são muito civilizadas. O único problema é quando estão embriagadas: mas quando elas estão, eu também estou, normalmente, portanto a coisa flui. [Ri-se.] E como normalmente são superdelicadas, gosto muito de as conhecer. O digital tem isto: é pouco carne e osso. Só agora, no stand-up, é que me vi a trabalhar frente a frente com o meu público. É completamente diferente. O meu percurso foi inverso: comecei no digital. O meu barómetro de afeto, vamos chamar-lhe assim, era digital. Se os vídeos fossem partilhados, era sinal de que tinha acertado na escolha e na abordagem do tema. Como trabalhei em publicidade antes, quando profissionalizei a Bumba, procurei olhar assim para as coisas. Comecei a pensar numa fórmula que fizesse sentido, que fosse a minha linguagem, mas que fosse o mais relatable possível. O sucesso não é bem pela quantidade de likes; é perceber que a mensagem passou e que as pessoas sentiram e se identificaram, que aquilo bateu lá no nervinho.
Como é que escolhes os temas? Em que é que te inspiras?
As ideias surgem, normalmente, quando não estou a procurá-las. Há uma parte muito grande do meu trabalho que é viver. Há um chip que se tem sempre, mas é em jantares com amigas, é em eventos familiares, é em idas à praia, que uma pessoa faz a observação não-participante da vida humana. As minhas amigas são uma grande fonte de inspiração porque são muito diferentes entre elas e trazem-me sempre histórias e pontos de vista que me fazem pensar.
Hoje há um tema principal? Talvez a maternidade?
Sim. Isso também acompanhou a Bumba na Fofinha. Há dez anos, os meus grupos de amigas falavam de outras coisas completamente diferentes – se calhar mais de dramas femininos, de sexualidade, de engates, de tiros ao lado, de awkwardness, coisas que nos fazem sofrer, como a depilação a laser na virilha cavada. Eram coisas que vinham de um sítio tão universal, tão fervoroso, que eu pensava: “Somos só nós aqui. Isto tem de ser falado.” Acho que foi pôr em comum as nossas dores muito femininas. Isso em Portugal ainda não tinha sido feito assim.
Eras tu que fazias tudo no início, certo?
No início e agora, Rita, continuo a ser eu.
És uma one woman show?
Para os espetáculos de stand-up tenho uma produtora, uma equipa técnica. Na verdade, a one woman show foi como eu surgi. Aprendi a fazer tudo, mas não é um requisito meu, foi por sobrevivência.
Ou seja, se amanhã passares esse trabalho a alguém, sabes o que queres e como o fazer.
Nos trabalhos criativos, quando é um produto da nossa cabeça… É difícil delegar.
Mas a dada altura, para teres espaço para fazeres outras coisas…
Estás a tocar num nervo… Sinto que estás no sofá da minha psicoterapeuta. “Às vezes tens de delegar, Mariana. Não é bom fazer tudo sozinha.”
O stand-up é para manter ou foi uma experiência?
Adorei, foi uma experiência inacreditável para mim. Mas foi também a primeira vez que o fiz e foi hipersofrido. Tinha muito medo de fazer stand-up e achava que era tipo bailarina. “Se não estou a fazer stand-up desde os vintes, como é que vou entrar agora aos 35? Já existe expectativa…” E sempre tive medo do palco. Na altura, fui a Nova Iorque e fiz alguns workshops para, fora do ambiente português, ser só eu, mais uma e pior do que toda a gente, entre aspas. Estava numa tábua rasa de igualdade, ótima para aprender.
Isto é uma revolução. De sermos mais vocais, de deixarmos de estar na sombra a passar pós-partos, solidões, desigualdades – já chega, já não estamos para isso. Isso é tão bom.
Porque achas que tiveste tanto sucesso no stand-up?
Fiquei mesmo orgulhosa, foram nove Coliseus em Lisboa e três no Porto, foi uma estupidez, eu já nem queria saber. Eles diziam: “Olha, vamos abrir mais uma, que isto esgotou em três minutos.” Eu estava a passar mal! Uma pessoa esgota e depois tem de os fazer, não é? Pânico total. Foram meses de trabalho árduo, mas também de perceber: “Está tudo bem.” Eu fiz a primeira parte da tour grávida e acho que isso também me ajudou. Só pensava que estava a intoxicar a minha filha com cortisol – por isso é que ela é o que é agora. Como estava grávida, estava com uma espécie de capa de proteção, tudo fluiu mais facilmente. Sou muito crítica com os meus projetos e mesmo quando as coisas têm um sucesso enorme, acho sempre que podiam ser melhores. Vejo uma entrevista do Reset e penso: “Estou sempre a interromper, que chata.” E não é isso que as pessoas veem. Tenho um olho muito negativo para o meu trabalho – coisa que eu acho que era bom mudar, porque nem sempre é construtivo.
Tu dizes isso. “Sou a minha própria chefe e reclamo muito comigo.”
É verdade… Apregoo o falhanço, mas parece que é só para os outros, porque não sou muito gentil com os meus fracassos. Não me permito muito.
Foi por isso que fizeste o Reset, que explora esse lado do falhanço?
O Reset surge de eu ser perfecionista e muito pouco gentil com as minhas falhas. Por isso, gostava de ouvir as pessoas que eu admiro contarem como reagem às suas. Gosto de ver outras maneiras de encaixar esses fracassos e o que se considera, ou não, um fracasso.
Isso ajudou-te?
Muito. Estou a adorar. E acho que nunca tive um feedback tão de ir ao coração.
O perfecionismo não te bloqueia, pois não?
Demoro mais a atirar-me para as coisas. Não sou aquela pessoa estouvada, “bora lá”. Quanto tempo passou entre querer fazer stand-up e fazê-lo? Fui a Nova Iorque, entendes? Tenho de investigar bastante, ler sobre o assunto e sentir-me um bocadinho mais em controlo. Sentir que não estou completamente aos papéis. Atiro-me de cabeça, mas tenho um arnês. Há pessoas muito mais corajosas do que eu nesse aspeto. Para mim é sempre “não”, até sentir que domino. E depois vou, e sei que há muita coragem em fazer uma porrada de coliseus, mas até lá houve um caminho de construção.
Quem é que te faz rir?
Os meus irmãos. Sou a mais nova de quatro. Sempre nos rimos muito em família, eles são muito goofies. Não era, de todo, a mais engraçada da minha família. É uma família muito barulhenta, de imitações e de vozes, então cresci nesse ambiente. Acho que não sou naturalmente uma pessoa muito extrovertida, mas como tinha de sobreviver, como tinha de chamar a atenção, acabei por me tornar mais espampanante.
Com que idade?
Não sei bem. No meu grupo de amigas, por exemplo, estava também a Joana Marques. Éramos as melhores amigas, ela era mais descritiva e eu mais performativa. Talvez por contraste, nunca me achei a mais engraçada. As minhas amigas têm muita piada, rio-me muito com elas. Portanto, os meus irmãos e as minhas amigas são claramente fontes de diversão. O meu namorado também tem muita piada, tem um humor especial. Faz-me rir muito. Tinha de ser, estamos juntos há 14 anos: se ele não me fizesse rir, meu Deus.
Sentes que a maternidade te mudou?
Não me mudou estruturalmente. Expandiu-me, talvez. As minhas emoções expandiram. Sabes aquela coisa de só usarmos 10% do cérebro? Acho que com a maternidade é igual: até ali usamos só 10% das emoções e a maternidade faz-nos ampliar – para o bem e para o mal – essas emoções. O amor é incrível, o desgaste e a exasperação são inacreditáveis, é tudo vezes mil. Isso é muito interessante, conhecermo-nos nesses ambientes, porque descobrimos que há mais. É engraçado, não me mudou na perspetiva de me sentir mais mulher, mais madura: não, eu continuo a ser o mesmo Peter Pan. Mas agora tenho uma criança a meu cargo, o que é surreal.
Escreveste isto depois de nascer a tua pequenina: “De alguém com o vício de longa data de não se deixar ajudar em nada, acreditem no que vos digo: quando arriscamos precisar dos outros e eles estão lá para nós, há algo que muda na vida, e sempre para melhor.”
Nesse post estava a falar da equipa de enfermagem [no hospital onde foi mãe]. Isto de aprender a fazer tudo sozinha… Eu sou a mais nova de quatro irmãos, brinquei muito sozinha, aprendi a ser autossuficiente nas minhas brincadeiras, na minha imaginação, formei-me assim, em autogestão a comer piaçabas. Com uma determinada idade senti: “já não dá”. Quer dizer, dar dá, mas fica-se chalupa. Se não arranjarmos ajuda, se não tivermos um bocadinho de apoio e de sororidade, é mesmo grave, há mesmo consequências. Pedir ajuda é um exercício de humildade muito eye-opening. Agora tenho a Clara e conto com o meu namorado – é o pai dela, é 50% da vida dela. Claro que não estou a falar de uma divisão de tarefas à fita métrica, até porque há aptidões: ele tem jeito para umas coisas, eu para outras. É possível. Há muita desconstrução para fazer, mas é possível nós contarmos com as pessoas e elas estarem lá. Nós, mulheres, não precisamos de fazer tudo sozinhas. Se queremos ajuda e igualdade, agora também temos de abrir espaço para a rede assumir o seu lugar. Isto é uma revolução. Pouco a pouco, é uma revolução de que eu gosto de fazer microscopicamente parte, falando nas dores do quotidiano. De sermos mais vocais, de deixarmos de estar na sombra a passar pós-partos, solidões, desigualdades – já chega, já não estamos para isso. Isso é tão bom. Já não há saco para estarmos sempre numa posição de desvantagem. Fazer parte dessa mudança, da maneira que sei, é uma responsabilidade minha. Não é a minha função, mas podendo, é bom ser uma consequência daquilo que faço.
Sabes aquela coisa de só usarmos 10% do cérebro? Acho que com a maternidade é igual: até ali usamos só 10% das emoções e a maternidade faz-nos ampliar – para o bem e para o mal – essas emoções. O amor é incrível, o desgaste e a exasperação são inacreditáveis, é tudo vezes mil.
Tens medo de perder a graça?
Não é bem perder a graça, é… Será que se acaba este fusível? Será que vou ter sempre coisas para dizer? Porque há vezes em que não tenho. Neste momento tenho esse privilégio: posso escolher não estar no ar, não tenho de estar sempre a dizer coisas. Mas isso é agora. Tenho muito medo. Por isso é que estou obcecada em fazer as coisas bem, porque gostava muito que este trabalho durasse para sempre.
Como é que geres isso relativamente às marcas com que trabalhas?
Sempre fui muito seletiva. É a minha maneira de trabalhar. Gosto de fazer publicidade pensada de raiz. Nada contra pôr um Compal de tomate nas maminhas, percebes? Está tudo OK, eu é que não sou essa pessoa. Procuro marcas que venham ter ao meu habitat e não o contrário. No fundo são projetos meus para os quais trago as marcas. É um privilégio fazer isso.
Há essa expectativa?
Há e eu entrego, sabes? Isso às vezes cansa-me um bocado. Como sei que as pessoas esperam, ainda dou por mim em contextos sociais a achar que tenho que, e às vezes não tenho. Tenho só de aceitar que se calhar vou desiludir algumas pessoas.
É com a personagem que eles têm mais contacto.
Não é uma personagem, é uma extensão minha, mas em esteroides – coisa que eu não sou, a maior parte do tempo. Com a maternidade noto que tenho muito menos energia, então tenho mesmo de escolher os eventos sociais a que vou. Estou mais fechada no meu grupo de amigas e onde eu me sinto em casa, em vez de ir a sítios com pessoas novas – e isto é pena também –, onde sinto que esperam que eu vá “performar”. E às vezes as pessoas nem esperam, sou eu que acho que sim.
Qual é o teu maior fracasso?
Tenho muitos, deixa-me pensar. Não posso chamar a isto fracasso, mas acho que é um bom exemplo. Aos 17 anos andei muito tempo perdida, sem saber o que queria fazer. Achava que não tinha um talento óbvio para nada. Concorri ao Conservatório de Teatro, cheguei à última fase, pediram para ensaiar um monólogo e eu tive uma megabranca. É daqueles momentos em que a vida bifurca: podia ir para teatro aos 17 anos e ia direta para a área em que eu acabei por desaguar, mas o que eu fiz foi [gestos em diferentes direções] isto.
Se calhar foram essas experiências todas que tiveste pelo caminho…
Ora bem. Eu fui dar 500 voltas labirínticas ao bilhar grande até chegar aonde estou. Mas nunca chegaria a esta função, a esta maneira de trabalhar com marcas, com tudo, se não tivesse passado pela publicidade. Isto é uma boa lição para malta que está em idades em que acha que já tem de ter tudo resolvido. Eu só mudei para uma área mais a ver comigo aos 30 anos. Não é suposto termos as respostas todas aos 17. Acho que é uma boa mensagem para deixar.
Fotografia: Enric Vives-Rubio