Um aviso que cada um entenderá como quiser. Num momento em que Luís Montengro é acusado, interna e externamente, de estar a tentar fazer esquecer o seu passado como líder parlamentar de Pedro Passos Coelho, e em que os dois parecem irreconciliáveis, o antigo primeiro-ministro aproveitou uma viagem pelas suas raízes transmontanas para, sem nunca se referir ao PSD, defender que a perda de “memória” conduz à perda da identidade e que a perda da identidade, em política, é “terrível” e “fatal”. “Sem o passado não somos nada”, alertou.

O mote era o lançamento do livro Lendas e Contos Populares Transmontanos – Tesouros da Memória (Vol. I: Bragança e Vinhais), de Alexandre Parafita, apresentada por Ernesto Rodrigues, escritor e professor universitário, na exígua Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro, junto à praça de touros do Campo Pequeno, com pouco mais de duas dezenas de pessoas. Mas seria Pedro Passos Coelho a tomar conta da sessão, naturalmente.

O antigo primeiro-ministro começou por lembrar a sua ligação a Vila Real, para onde se mudou aos 10 anos, em setembro de 1974, vindo de Angola, onde o pai, António Passos Coelho, ficou mais uns tempos. “Era um retornado e era preciso recomeçar a vida toda. A minha mãe veio sozinha com os filhos que tinha”, recordou. “Sem um tostão”, restava pouco mais do que ir para a “casa da aldeia” que o avô materno tinha, sem eletricidade, água canalizada ou saneamento, mas com uma “casa de banho de fingir” que só seria funcional quando a modernidade chegou, finalmente, à aldeia.

Partindo daí, Pedro Passos Coelho assumiu que, hoje, 42 anos depois de ter deixado Vila Real, continua à procura da paisagem, dos sítios, das tradições e das pessoas que conheceu sempre que vai a Trás-os-Montes. “Mas esses Trás-os-Montes já não existem. Quando vou lá já não o encontro”, lamentou, apontando o efeito perverso da perda dessa identidade.

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“Em parte, fico muito contente por saber que o país que produziu essa cultura já não existe. A modernidade chegou cá mais tarde. O que estava em falta foi embora e ainda bem. Mas tudo o que fica demasiado arquivado desaparece. E, se essa memória desaparece, somos então cada vez mais iguais”, assinalou o antigo primeiro-ministro.

Ora, Passos não estava, assumidamente, a falar apenas dos seus Trás-os-Montes. Dizia o ex-líder do PSD que quando a história do que fomos “está arquivada”, pode ser “narrada como bem se entender” e qualquer um “pode contá-la como quiser”. “Quando se perde a memória somos todos iguais. Isso na política é uma coisa terrível. É fatal. Se somos todos iguais, tanto faz estar lá um como o outro”, argumentou. “É sempre o futuro que nos define mais do que o passado; mas sem o passado não somos nada.”

Pedro Passos Coelho não foi mais longe, mas, numa altura em que Luís Montenegro é acusado de estar a tentar cortar com o seu passado enquanto líder parlamentar do PSD e com a sua associação ao antigo primeiro-ministro, as palavras de Passos têm, naturalmente, um peso político — recorde-se que a última convenção da Aliança Democrática acabou também por ficar marcada pela ausência de convite ao ex-líder social-democrata, pelos recados de Leonor Beleza e pela tentativa que Pedro Santana Lopes fez em reconciliar Montenegro e Passos.

Sem nunca concretizar as suas referências, o antigo primeiro-ministro alertou também para o facto de as instituições se estarem a “erodir” a uma “velocidade muito grande” e isso pode ter um consequência inevitável: o “colapso” das sociedades. Depois, continuou, “alguma coisa lhe sucede”; mas o caminho até lá e o resultado final pode colocar em causa os modelos que conhecemos e desejámos.

Numa aparente referência à saúde da democracia portuguesa e à ascensão dos extremismos e populismos, Pedro Passos Coelho pediu que não se assistisse com “passividade” ao caminho para o tal “colapso”. “Seria estranho que as pessoas assistissem passivamente a isso como se não fossem agentes da história, como se não tivessem vontade, e se entregassem ao que tem de ser”, afirmou.

“O que tem de ser tem muita força. Mas, se não for do meu agrado, a gente tem de fazer qualquer coisa. E nem sempre essa reação é atempada. Quando não é atempada, assume outras formas que depois nos apressamos a condenar. Quando é muito tarde, no fundo, estamos a condenar-nos por não termos agido quando devíamos”, disse. Cá fora, aos jornalistas, Pedro Passos Coelho repetiu aquilo que já tinha a 19 de dezembro: “Este não é o meu tempo. É ele quem está a dirigir o PSD. E é ele que tem de ser a voz autorizada. Não desejo intervir”, rematou. Sem mais.