Partilhou o diagnóstico com o público para travar “especulações” e até já se fala de um “efeito Carlos III”, com uma corrida à despistagens precoces. Esta segunda-feira, o palácio de Buckingham voltou a abrir o jogo sobre o estado de saúde do Rei Carlos III. A decisão, relativamente inédita na sua franqueza, insiste na ideia de que a informação possa “ajudar a compreensão pública para com todos aqueles ao redor do mundo que são afetados pelo cancro”. E marca uma viragem completa quando o tema é o boletim clínico dos soberanos e a forma de o comunicar.

“Não serão partilhados mais detalhes nesta fase, exceto para confirmar que Sua Majestade não tem cancro da próstata”, adiantou um porta-voz do Palácio, citado pelo The Telegraph. Ainda que nem todos os detalhes cheguem aos súbditos (como o tipo de cancro em causa) a omissão completa, que até aqui tem sido quase sempre regra, parece pelo menos ter sido quebrada. Fala-se mesmo de uma “abordagem moderna de uma monarquia moderna”, com Carlos III, rezam amigos próximos, a estar mais preocupado neste momento com o peso que recairá sobre a “heroína” Camilla do que sobre si próprio.

À margem de maleitas como a gota, a célebre “doença dos Reis”, a obesidade, a varicela ou até a maquilhagem com excesso de chumbo que ditou a melancolia da rainha Mary, como recordou em tempos uma exposição promovida pela Universidade de Oxford, mesmo perante os avanços médicos e generalização da doença na vida moderna, o cancro permaneceu um tabu ao longo de décadas — apesar de pairar há décadas sobre os Windsor.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Basta recuar ao caso de Jorge VI, pai de Isabel II, avô do atual monarca. Em setembro de 1951, lembra o The Telegraph, o então soberano, fumador de longa data, viu o seu pulmão esquerdo removido. O cenário em questão foi eufemisticamente classificado como “anormalidades estruturais”. Em bom rigor, tratava-se de um carcinoma, um diagnóstico que terá sido omitido do público e inclusive do próprio Rei, lembra o Politico. Facto é que a aparente recuperação acabaria por resultar na morte de Jorge VI, apenas cinco meses depois, em fevereiro de 1952. Como sofria de doença vascular, a causa do óbito facilmente ficou associada a uma trombose, no entanto não se livrou da especulação posterior de que se trataria de complicações em resultado da disseminação da doença.

GettyImages-3224629

Jorge VI e a mulher, Isabel, mais conhecida como rainha Mãe © Getty Images

Outros membros da família real lidariam com a doença de forma privada. Segundo a biografia póstuma da rainha Mãe, lançada por William Shawcross em 2009, Isabel terá sido submetida por duas vezes a tratamento para o cancro. Em qualquer dos momentos, a comunicação oficial vinda de Clarence House optou por um esclarecimento tão generalista quanto suave. Em 1966, a mãe de Isabel II viu removido um tumor no cólon, que foi transmitido como uma “obstrução” resolvida a tempo e horas. Já em 1984, a intervenção foi sobre um tumor no peito. Segundo a versão oficial, a rainha Mãe, que viveu até aos 101 anos, teria passado pelo hospital “para fazer uns testes”.

Isabel II acompanhada pelo marido, o príncipe Filipe © Getty Images

Mais recentemente, a fama indestrutível da saúde de ferro de Isabel II, que alcançou outra provecta idade, 96 anos, pode ter sido ligeiramente beliscada por um boletim clínico menos cómodo. De acordo com a biografia de Gyles Brandreth, um “Retrato Íntimo” da antiga monarca publicado dois meses depois da sua morte, esta sofreria de um mieloma, uma doença maligna de um tipo de células que existem na medula óssea. Dados como este nunca haviam sido revelados até essa altura, e geraram desconforto entre um público que se conformara com a amena conclusão de que a monarca morrera devido à “idade avançada”. No entanto, o repórter Brandreth, que fora amigo do príncipe Filipe, chegou a argumentar mesmo que o médico da rainha estaria a par desta condição há bastante tempo, e que mais dia menos dia o diagnóstico viria a ser confirmado e do conhecimento público.

“Never complain, never explain” — mas preparem-se para os boatos

Ao longo de séculos, uma saúde robusta foi predicado para um reinado são. Sinal de força e virtude, a deterioração de Henrique VIII (1491 – 1547) foi levianamente conotada como uma “maldição”, a “doença real” da rainha Victoria (1819-1901) só seria dissecada a sério anos mais tarde, bem como o diagnóstico de lúpus que tanto condicionou a vida da rainha Ana (1665-1714). Quanto a Jorge III (1738–1820), a sua famosa doença mental motivou boletins diários evasivos, deliberadamente redigidos para evitar o alarme social e proteger a dignidade do Rei.

Um boletim sobre o estado clínico de Jorge III, de 18 de janeiro de 1811, citado pela Universidade de Newscastle

Na senda do lema trilhado ao longo de décadas por Isabel II, um mantra que passava por servir o público sem queixumes ou explicações desnecessárias, Kate Middleton, recentemente internada para uma cirurgia abdominal, optou (pelo menos até a data) por não avançar pormenores sobre a sua condição, não fizesse o mistério, lembra a The Conversation, parte da fórmula seguida pela realeza desde idos tempos.

Mas se a há coisa que a história prova é que o secretismo nunca foi capaz de parar os boatos, e a carência de detalhes alimenta todas as teorias, de tal forma que o palácio de Kensington teve que negar os rumores de que a princesa de Gales esteve em coma durante a passagem pelo hospital.

GettyImages-1473996277

Sarah Ferguson tem abordado o seu historial clínico recente © Getty Images

Rara entre os ocupantes do trono, a revelação de doenças consideradas graves não é no entanto uma novidade entre os membros mais distantes do clã real. Em 2002, a princesa Michael de Kent admitiu ter sido tratada a um cancro de pele. Em 2014, seria a vez de o marido revelar que debelara com sucesso um cancro na próstata. Para a história recente passa também a revelação de Sarah Ferguson, com a duquesa de York a falar sobre a mastectomia a que se submeteu. Há duas semanas, voltou a partilhar com o público que sofre agora de um cancro na pele.