O confronto entre Paulo Raimundo e Pedro Nuno Santos trouxe aos espectadores meia hora de debate vivo e aguerrido, em que os líderes do PCP e do PS discutiram as memórias que conservam sobre um passado comum, debateram as propostas que trazem para o futuro e vincaram diferenças claras entre os dois projetos. Ainda assim, do debate sobrou a ideia que a esquerda como um todo tem tentado transmitir: os partidos deste lado do espectro querem mostrar que são capazes de conversar entre si e que estarão disponíveis para o fazer, em moldes até ver indefinidos, se conseguirem conquistar uma maioria à esquerda.

O debate começou, de resto, pela memória das eleições de 2022 e pelo apelo ao voto útil que o PS fez nessa altura, e que ajudou a reduzir as votações dos partidos à sua esquerda a mínimos olímpicos. Para Paulo Raimundo, o eleitorado de esquerda votou condicionado por uma “chantagem” e no dia a seguir “acordou com uma maioria absoluta” — e é essa “experiência” do PS absoluto que será “avaliada” desta vez nas urnas. PCP e Bloco de Esquerda têm dirigido as suas críticas sobretudo à maioria de António Costa, focando-se menos nos defeitos de Pedro Nuno Santos — mesmo que desconfiem das “mudanças” que o socialista promete trazer.

Pedro Nuno Santos, que no debate com o Livre tinha deixado um apelo ao voto útil no PS e voltou aqui a vestir o fato do candidato moderado, foi confrontado com o risco de esvaziar os possíveis parceiros do futuro e sorriu: o líder do PS deseja “o melhor para o PCP, BE e Livre”, mas deseja sobretudo que o eleitorado vote PS. Mais do que isso: quer assegurar que, desde que o PS tenha uma boa votação, o bloco da esquerda pode entender-se sem grandes dificuldades — “Temos melhores condições para oferecer estabilidade ao país mesmo podendo trabalhar com partidos com quem já trabalhámos entre 2015 e 2019, havendo avanços muito importantes”. O adversário “principal”, como definiu, é mesmo a direita.

Apesar disso, os projetos de PS e PCP são muito diferentes — e os dois líderes fizeram questão de frisar isso mesmo em vários pontos cruciais, e que serão difíceis de negociar caso haja maioria e algum tipo de acordo à esquerda. Alguns desses pontos contribuíram mesmo para que a geringonça ruísse: é o caso das leis laborais, em que o PCP quer mexer, acusando o PS se recusar a romper com as normas do tempo da troika.

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Ora Pedro Nuno vinha preparado para receber a acusação e devolver outra ao PCP: mostrando a lista de medidas aprovadas no contexto da Agenda do Trabalho Digno aprovada pelos socialistas, foi desfiando exemplos — dos aumentos da licença de parentalidade dos pais aos limites para contratos temporários, passando pelo aumento nas remunerações de estágios profissionais — e rematou lamentando que estas medidas tivessem levado “uma nega do PCP”: “Apesar de o PCP ser um partido coerente, é incoerente neste sentido quando diz que vota a favor do que é positivo”, atacou.

Foram vários os momentos em que o líder socialista fez, de resto, questão de se posicionar como o candidato com propostas mais moderadas ou mais responsáveis, por contraponto às propostas dos comunistas. Fê-lo ao frisar que os aumentos salariais não se decretam — “aí estamos distantes, porque a vossa posição não é equilibrada“. E ouviu uma espécie de desafio de volta: o PS “vai ter de acabar por acompanhar” o PCP em questões laborais, como a caducidade da contratação coletiva, porque os comunistas esperam ter força para condicionar um eventual governo socialista.

De novo, o argumento da responsabilidade, vindo de Pedro Nuno Santos: fiel ao mantra das contas certas, recordou que a “capacidade económica do país” tem de ser tida em conta quando se fazem propostas — o PCP quer um aumento de 15% nos salários, o PS diz querer “reforçar” os objetivos do acordo para os rendimentos, que apontava para 5,1% — e que o país tem de continuar a reduzir dívida, ainda que sem uma “intensidade desnecessária”. “Estou à vontade, já o disse”, disparou Pedro Nuno Santos, que conta com a benção de Fernando Medina, coordenador do seu programa macroeconómico, para essa alteração no ritmo de redução da dívida. “Não podemos é fazer uma chuva de promessas que não são realizáveis”.

O tema pôs as duas visões em confronto, mas acabou por levar os antigos parceiros ao passado comum da geringonça, quando a oposição à direita os unia: “O país tinha dúvidas de que em conjunto conseguíamos não pôr em risco as contas públicas, e o que mostrámos foi que era possível fazer diferente do que a direita tinha feito. Vamos agarrar-nos a isso mas com equilíbrio e sentido de responsabilidade”, desafiou Pedro Nuno. E Raimundo disse estar “disponível” para um debate sério sobre salários. (Logo a seguir, o socialista ouviu o comunista falar sobre o papel “determinante” do seu partido durante a geringonça e corrigiu-o prontamente: “Determinante acho excessivo”).

Outro ponto de discussão foi a Saúde: as propostas são diferentes e Raimundo insiste em que, “dê-se a volta que se der”, o problema é a falta de profissionais e que é preciso atraí-los e mantê-los no SNS com carreiras e salários melhores. Já Pedro Nuno Santos admitiu que “esse debate” deve ser feito à esquerda, mas apresentou propostas diferentes, focando-se na necessidade de dar mais autonomia às administrações hospitalares ou na necessidade de articulação com os lares, tudo para dizer que a melhoria deve ser “organizacional” e não apenas ao nível dos salários.

Não é novidade que as posições sobre política externa separam os dois partidos — e quando foram questionados sobre a NATO e o investimento em Defesa isso voltou a notar-se, com Pedro Nuno a prometer “não desistir da Aliança Atlântica” nem do alinhamento com a UE quanto à invasão da Ucrânia pela Rússia; já Raimundo fez críticas ao investimento em “armamento”, defendendo que se invistam essas verbas em tentativas de negociação que envolvam “todas as partes” para chegar à “paz”.

Ainda assim, Pedro Nuno Santos pareceu ter ouvido mal uma das respostas de Raimundo, o que provocou um mal-entendido que foi, ainda assim, esclarecedor sobre a forma como quis fechar o debate. Enquanto ouvia o secretário-geral do PCP dizer que os comunistas querem que a morte de Alexei Navalny seja investigada e que essa tema é “mais um” em que estão “do lado oposto do governo capitalista russo”, Pedro Nuno precipitou-se e pareceu achar que Raimundo estaria a falar do governo socialista — e apressou-se desde logo a garantir que um desentendimento nesse plano não seria problema.

“[Essas diferenças] nunca impediram” que os partidos se entendessem, fez questão de rematar. Raimundo já tinha, minutos antes, usado a fórmula que o PCP adotou para responder sobre futuras conversas: “A questão da forma não é fundamental, o conteúdo é que é”. E sobre o conteúdo ficou claro que há muitas divergências, mas também alguma disponibilidade para tentar que estas diminuam.

O diálogo revelador

Paulo Raimundo: Quando fala na nossa proposta dos salários utiliza o mesmo método que utilizou o Rui Rocha.

Pedro Nuno Santos: Isso eu não queria, não era a minha intenção.

Paulo Raimundo: Mas foi, “como se paga? Quanto custa?”

Pedro Nuno Santos: Mas isso é importante.

Paulo Raimundo: É verdade. Quando não temos vontade para as medidas, a primeira questão é quanto custa. Ninguém nos perguntou se havia 20 milhões para o buraco da banca. Ninguém nos perguntou se havia recursos para pegar em 3 mil milhões e entregar às empresas de energia. Agora com esta medida do PCP, que tem esse valor de 3 mil milhões para a Administração Pública, custa entre 14 e 15 milhões de euros. Significa transferir do capital para o trabalho 15 mil milhões de euros.

Pedro Nuno Santos: Mas quer decretar o aumento para as empresas do sector privado? De facto aí estamos distantes porque a vossa posição não é equilibrada, é só isso.

Paulo Raimundo: Está a ver porque insistimos no fim da caducidade da contratação coletiva em que o PS teima, teima, teima em não avançar?

Pedro Nuno Santos: Mas houve avanço na agenda do trabalho digno na caducidade.

Paulo Raimundo: Mas vai ter de acompanhar mais cedo ou mais tarde, pela luta dos trabalhadores e pela força que vamos ter do ponto de vista eleitoral.

Pedro Nuno Santos: Porque é que os 3 mil milhões são importantes? Costuma dizer que não deve haver chuva de propostas e não há capacidade financeira ilimitada. Num instantinho, em três propostas — o aumento geral dos salários aumento, o aumento de 7,5% para as pensões e mais 1% do PIB para gastar em habitação — são 7,6 mil milhões de euros. Qual é o problema? É mto importante dar resposta aos problemas, mas temos de dar com a capacidade económica e financeira que o país tem. É muito importante para o PS continuar a reduzir a dívida pública. Não vamos fazer com a intensidade desnecessária mas com a intensidade…

Paulo Raimundo: E esta foi intensa ou não foi?

Pedro Nuno Santos: Eu já disse que teria reduzido a um ritmo menor, mas ela deve continuar a descer e temos regras que queremos continuar a cumprir. Não podemos é fazer uma chuva de promessas que não são pagáveis porque criamos expectativas que não conseguimos cumprir.