Parecem longe as imagens de milhares de refugiados e migrantes ao longo do mar Mediterrâneo, as mesmas que saltaram para as notícias em 2015. Países como Turquia, Grécia ou Itália foram porta de entrada e, muitas vezes, de morte para quem quis fugir da sua terra à procura de uma vida melhor, longe de conflitos, morte ou fome. O cinema, que sempre manteve a sua vontade de ser um espelho do mundo, tem procurado registar esta crise. Flee — A Fuga, The Green Border, As Nadadoras ou For Sama são só alguns exemplos cinematográficos de histórias baseadas ou inspiradas por estas realidades, umas com mais intenções ideológicas ou empáticas do que outras.
Paralelamente, discute-se muito, dentro da indústria, sobre quem deve estar à frente da câmara de filmar quando a história está fora da Europa ou dos Estados Unidos da América. Falamos, claro, da representatividade. Da inclusão. E de identidade. Há poucos dias, na Berlinale, a política entrou diretamente na programação do festival, com No Other Land, o único filme palestiniano em competição, premiado como Melhor Documentário, realizado pelos palestinianos Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham e Rachel Szor. Não é que uma ideia de “qualidade” tenha sido substituída pela moral, pela ideia do “filme necessário”, mas é seguro afirmar que estes dois elementos, por vezes retratados de forma superficial, por vezes genuína, passaram a constar no guião de muitos projetos que se vão estreando.
Saindo da Europa, e aterrando nos Estados Unidos da América, a poucos dias de mais uma cerimónia dos Óscares, o filme Eu Capitão, do italiano Matteo Garrone, que se estreia esta quinta-feira em Portugal, parece querer voltar a relembrar, através de uma aventura épica de um jovem senegalês, que o cinema deve continuar a afirmar-se presente na crise dos refugiados. E com uma pandemia de Covid-19, uma guerra na Ucrânia provocada pela Rússia de Vladimir Putin e um conflito entre Palestina e Israel, é normal, apesar de trágico, que o comum dos mortais se esqueça de quem foge para a Europa. Daí aceitar-se que Eu Capitão, com as suas falhas e méritos, tenha chegado onde chegou.
[trailer oficial do filme “Eu Capitão”, realizado por Matteo Garrone:]
Neste filme, que concorre ao Óscar de Melhor Filme Internacional, Seydou (Seydou Sarr) combina com o primo Moussa (Moustapha Fall), senegaleses de gema, que está na altura de fugir para o velho continente à procura de outra vida. O que veremos a seguir ao longo de duas horas é, nas palavras do realizador com quem o Observador conversou, “uma aventura”. Mas sem eufemismos: há tortura, fome, sede, desespero e descrença. Depois de Pinóquio (2019), “um grande sucesso box office em Itália”, e de Gomorra (2008), Garrone sentiu um apelo: “Ouvir a história destes migrantes, de ser um intermediário deles e colocar-me ao seu serviço, mantendo-me fiel à sua história”. “Sou italiano, venho de um país de emigrantes. O filme fala de todos, da possibilidade de descobrir o mundo, de procurar uma vida melhor, de acreditar que teremos uma outra vida, que pode ser uma ilusão, sim, mas isso nunca sabemos”, refere. A vida de Seydou, capitão improvisado desta caminhada e de um velho barco em direção à Sicília, é o coração central de uma história que, nas notícias, é contada através de números, factos e imagens aterradoras.
Nessa aventura, centrada pela câmara em Seydou, dentro de uma espécie de fábula trágica, com elementos mágicos e de uma grande ingenuidade do protagonista, Matteo Garrone nunca quis que se sentisse a mão de um realizador europeu — algumas críticas dizem o contrário, o que é compreensível. Na grande travessia de Eu Capitão, do Senegal à Líbia, e por dentro das areias devastadoras do deserto do Sahara, tinha de se sentir, portanto, “a voz” de um jovem transformado em refugiado. Foi por isso, segundo a defesa que o cineasta italiano faz do seu trabalho, que resolveu passar três meses com migrantes e deixá-los participar na rodagem. Conhecer o “objeto” que queria retratar. Passar um tempo em asilos e centros de detenção. “Fiz o filme com eles. Não sou pedante, sinto-me humilhado a defender o porquê de ter feito esta história, o filme fala sozinho, não tenho de justificar nada. Queria um filme universal, mostrar o que significa fazer esta viagem, vemos sempre a última etapa, da chegada e não o que acontece antes. É uma aventura épica”, afirma.
Quando Matteo Garrone escolhe a palavra “humilhação”, não é por acaso. O Observador questionou o realizador sobre ser um europeu a fazer um drama de refugiados e de algumas vozes críticas falarem de um aproveitamento mediático desta tragédia para benefício próprio. “Que pensem o que quiserem. Os imigrantes que fizeram o filme sentiram-se representados, ficaram contentes. Isso chega, não quero saber do resto”, diz.
Quanto à nomeação para os Óscares, Matteo Garrone desdramatiza a possibilidade de não vencer, preferindo olhar para o percurso que Eu Capitão tem feito, com distinções em festivais como Veneza. E para jovens como Seydou, que representam uma ingenuidade que o realizador só encontrava no cinema neorealista italiano dos anos 50. “Lembra-me esses italianos cheios de vida, ingénuos, não contaminados pelo consumismo. Os jovens podem olhar para Seydou e para este filme e empatizar-se, relacionar-se com a história contemporânea de outra forma”. Se a política não resolve, o cinema ajuda. “Confio mais no público do que nos políticos”, garante.