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Portugal e um palco para a "Luta Armada"

Este artigo tem mais de 6 meses

Partindo da pesquisa documental, a nova criação da companhia Hotel Europa recorda uma história de violência em Portugal. Antes, durante e depois da Revolução. Estreia-se esta quinta-feira.

"Luta Armada" fica em cena até dia 14 no espaço da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo (CPBC), em Lisboa
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"Luta Armada" fica em cena até dia 14 no espaço da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo (CPBC), em Lisboa

FILIPE FERREIRA

"Luta Armada" fica em cena até dia 14 no espaço da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo (CPBC), em Lisboa

FILIPE FERREIRA

Isabel do Carmo conheceu Carlos Antunes em Paris e rapidamente perceberam que existia entre eles uma afinidade política. O ano era 1970. Ela concluía um estágio em medicina e ele estava na clandestinidade, já depois de ter saído de Portugal e de ter entrado em cisão com o Partido Comunista Português (PCP), devido a divergências com Álvaro Cunhal. É esse encontro que está na origem das Brigadas Revolucionárias (BR), organização que ao longo dessa década – mais tarde deu origem ao Partido Revolucionário do Proletariado (PRP) – realizou uma série de operações focadas no derrube do regime. Entre muitas outras organizações que surgiram antes e depois do 25 de abril, traça-se uma história de décadas de luta contra a opressão e de ativismo político. É a este universo que regressamos agora em Luta Armada, a nova criação da companhia Hotel Europa, com estreia marcada para esta quinta-feira, dia 4 de abril, no espaço da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo (CPBC), em Lisboa, onde ficará em cena até dia 14 do mesmo mês, no âmbito do ciclo Abril Abriu, do Teatro Nacional D. Maria II.

A criação de André Amálio e Tereza Havlíčková – em linha com outras criações da Hotel Europa – continua a investigação da companhia sobre o passado recente de Portugal, analisando os projetos políticos que recorreram a ações violentas como forma de luta. Neste caso, através de um espetáculo de teatro documental multidisciplinar que reflete sobre as ações de grupos ao longo de um período de transição revolucionária, entre os que viam na luta armada a única forma de acabar com o fascismo e o colonialismo português, como a LUAR, as BR e a ARA; os grupos de extrema-direita que ficaram conhecidos como redes bombistas e que atuaram no período do PREC, entre 1974 e 1975, tais como o ELP, MDLP e o Movimento Maria da Fonte; os movimentos independentistas dos Açores e da Madeira, que optaram por ações violentas, como é o caso da FLA e da FLAMA; e ainda os que, pós-1980, como é o caso das FP-25, lutaram por uma ideia de extrema-esquerda.

O espetáculo com interpretação de André Amálio, Mara Nunes, Mariana Sardinha, Maurícia Barreira-Neves, Mblango e Paulo Quedas, recupera memórias e vestígios marcantes para entender um período decisivo na história recente do país – sobretudo agora, volvidos 50 anos da revolução portuguesa. A polarização do sistema político na atualidade, a ascensão da extrema-direita um pouco por toda a Europa, mas também a disseminação de discursos de ódio, marcados pela violência, servem de argumentos para a companhia que, não só quer dar a conhecer este período, como não quer que caiam no esquecimento algumas das lutas e das personalidades que tomaram o seu protagonismo. “Dada a recente transformação do panorama político português, muitos destes temas têm eco mais do que nunca. Por outro lado, tínhamos esta vontade de trabalhar sobre os grupos que já antes do 25 de Abril estavam a fazer ações armadas. Tudo isto está esquecido ou é pouco falado e achamos que era importante voltarmos a esta temática”, diz ao Observador o encenador.

O espetáculo constrói uma genealogia de acontecimentos, mas também aborda as diferentes formas de violência armada que marcaram Portugal na sua transição à democracia

FILIPE FERREIRA

A verdade é que das primeiras organizações, formadas ainda na década de 1960, até às chamadas Forças Populares 25 de Abril (FP-25), a companhia se confrontou com um arco temporal extenso, mas que tem elos inusitados. “Isto anda tudo ligado, mesmo quando olhamos para as organizações de extrema-direita e o seus percursos. Não queremos misturar as ações políticas e foi importante separarmos os diferentes momentos, mas era importante falarmos dos vários lados”, completa. Através de entrevistas e de um trabalho de pesquisa, a companhia deambulou por uma história onde se aborda a ditadura portuguesa e a sua violência contra os opositores políticos, o passado colonial, mas também a ascensão pós-25 de Abril de movimentos reacionários e conservadores que marcam a história dessa violência ligada ao setor político.

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[Já saiu o sexto e último episódio de “Operação Papagaio” , o novo podcast plus do Observador com o plano mais louco para derrubar Salazar e que esteve escondido nos arquivos da PIDE 64 anos. Pode ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo episódio aqui, o terceiro episódio aqui, o quarto episódio aqui e o quinto episódio aqui]

“Há sempre alguém que resiste/ Há sempre alguém que diz não”

De volta a Luta Armada, o novo espetáculo da companhia Hotel Europa começa numa roda de conversa, com testemunhos dos intérpretes sobre as suas histórias pessoais e a importância que o 25 de Abril de 1974 teve nas suas vidas, desde logo pelas mudanças que trouxe ao país em termos sociais e económicos. As palavras dos filhos da revolução servem igualmente de lugar comum para uma reflexão sobre o que ainda está por fazer. Que valores faltam ainda cumprir, fica a questão. “50 anos depois do 25 de Abril, continua a existir pobreza, continua a existir misógina, continua a existir homofobia, continua a haver racismo, mas não consigo deixar de pensar que apesar disso tudo, estamos muito melhor do que estávamos antes do 25 de Abril”, diz um dos atores.

A partir daí, mergulhamos no passado, já depois de seguirmos os intérpretes num corredor onde somos interrogados, como se tivéssemos prestes a ser detidos pela PIDE. Chegamos, entretanto, ao ano de 1961, sentados, assistimos a uma espécie de concerto-performance que nos leva nessa viagem à história daqueles que fizeram das suas vidas um veículo de luta contra a ditadura salazarista. “Na noite de 21 para 22 de janeiro de 1961 dá-se uma ação armada de enorme espetacularidade”, começa por contar André Amálio, referindo ao assalto ao paquete Santa Maria em 1961, a chamada Operação Dulcineia, liderada por Henrique Galvão. Foi a semente plantada para o que iria surgir depois.

Em 1967, alguns dos militantes que apoiavam Henrique Galvão e Humberto Delgado vão juntar-se em Paris para formar uma nova organização que vai ser conhecida inicialmente como A.R.D. — Ação Revolucionário Democrática. Depois de um assalto ao Banco de Portugal, da Figueira da Foz logo adotam o nome Liga de Unidade de Ação Revolucionária – LUAR. O resto da história faz-se cronologicamente. Ainda antes do 25 de Abril, aborda-se a criação da Ação Revolucionária Armada (ARA), o braço armado do PCP, da BR, fala-se dos movimentos e partidos entretanto formados nas antigas colónias, como a Frelimo, o MPLA e o PAIGC. Mas a história não fica por aí.

Chegados à década de 1980, aborda-se os atentados das FP-25 e reflete-se sobre a forma como o país lidou com estes movimentos extremistas, da esquerda à direita

FILIPE FERREIRA

Já em pleno Verão Quente, de 1975, fala-se da Flama — Frente de Libertação do Arquipélago da Madeira e pela FLA — Frente de Libertação dos Açores. “Ambos os grupos eram de extrema-direita e bastante violentos, colocavam bombas, agrediam pessoas, o objetivo final era chegar a um independência face ao continente devido ao que diziam ser a ameaça comunista”, explica um dos intérpretes. Por outro lado, assiste-se ao surgimento do ELP, Exército de Libertação Nacional, ou o MDLP, Movimento de Libertação de Portugal, e também o movimento Maria Da Fonte. É uma história de violência a que assola este período. Dos atentados perpetrados por Ramiro Moreira à morte do Padre Max, em 1976, o espetáculo constrói uma genealogia de acontecimentos, mas também aborda as diferentes formas de violência armada que marcaram Portugal na sua transição à democracia. Na continuação e chegados à década de 1980, aborda-se os atentados das FP-25 e reflete-se sobre a forma como o país lidou com estes movimentos extremistas, da esquerda à direita. Paira no ar a dúvida: “Talvez seja a questão que todos devemos fazer a todo o momento, como é que podemos cumprir Abril? O que é que falta para cumprir a revolução?”.

“Apesar de tudo, temos uma posição e não somos completamente neutros. Alguns movimentos extremistas foram silenciados na nossa história recente, daí ser importante mostrá-los, até porque muitas destas pessoas ainda estão no nosso espaço público, quando muitas das pessoas que lutaram contra o fascismo são postas de lado”, sustenta André Amálio. Há sempre formas de se olhar para a história e para o passado, através do qual vamos sempre, inevitavelmente, ver diferentes lados da barricada. Pelo caminho, o importante – explica a companhia – é que se deitem abaixo mitos. “A ideia de que a ditadura portuguesa foi suave, como se o 25 de Abril e o PREC tivesse sido um período de loucura, comparativamente à guerra colonial ou à ditadura em si. Tentamos desmistificar e trazer estas visões múltiplas, mas nas quais se demonstram como teve de haver muitas pessoas a resistir para podermos chegar até aqui, em democracia”.

Finalmente, escreve-se uma frase na parede, verso da célebre canção de Adriano Correia de Oliveira: “Há sempre alguém que resiste/ Há sempre alguém que diz não”, como espelho de uma história que não é pacífica.

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