Fotografias da campanha eleitoral do general Humberto Delgado no interior norte, escondidas durante quase 50 anos por causa da PIDE, polícia política da ditadura, foram descobertas em 2006 e vão ser mostradas pela primeira vez no Museu de Lamego.

Os factos remontam a 1958, à campanha eleitoral do General sem Medo, mas os primeiros sinais da possível sobrevivência deste acervo só começaram a surgir em 2005, quando o historiador Miguel Nunes Ramalho, que relatou as etapas da descoberta à agência Lusa, foi dar à antiga Foto Moderna, em Lamego, estúdio fundado por Carlos Silva, fotógrafo que documentou a passagem do candidato da oposição democrática pela região.

Em 2005, Nunes Ramalho preparava a biografia do economista Alfredo de Sousa, que haveria de ter o título “Opressão Salazarista e a Força da Liberdade. Alfredo de Sousa, um resistente”. A investigação entrava pelos anos da ditadura e pela campanha de Humberto Delgado às presidenciais de 1958, que teve no futuro fundador da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa o seu representante na cidade mais a norte do distrito de Viseu.

Em Lamego, o historiador ouviu falar pela primeira vez da possível existência de fotografias de Delgado na cidade. Pouco a pouco foi confirmando a suspeita, percebendo que o acervo seria mais extenso, que não se limitaria à passagem do general por Lamego, e que o dono da Foto Moderna seria o autor das imagens.

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Mais tarde, quando as recebeu, tornou-se evidente por que motivo Carlos Silva as escondera: eram um testemunho das extensas manifestações de apoio ao candidato da oposição nos concelhos do interior norte e centro e, por causa delas, a Foto Moderna tinha sido atacada por agentes da ditadura.

Ao todo, são perto de 70 fotografias que, mais tarde, o sobrevivente da equipa dos estúdios, Boaventura Dias Fernandes, acabou por mandar ao historiador.

Foi um “final feliz”, disse Miguel Nunes Ramalho à Lusa. “No final de 2006, recebi no correio uma caixinha com fotografias e negativos, enviados por Boaventura Dias Fernandes, uns sete a oito meses depois de me ter prometido que tudo faria para as encontrar.”

A história “parece um bocadinho confusa”, prosseguiu Miguel Ramalho, que a contou à Lusa em pormenor, apesar de nem tudo ficar desvendado, pois o local onde as fotografias estavam escondidas permanecerá em segredo.

“O senhor Boaventura enviou-me as fotografias, mas nunca me revelou onde é que estavam, apesar de ter deixado escapar que estariam debaixo do soalho da loja”. Boaventura Dias Fernandes, último proprietário da Foto Moderna, que entretanto fechou, “já tinha alguma idade” e “acabou por morrer há uns anos”.

Nunes Ramalho ouviu falar pela primeira vez destas fotografias ao “enfermeiro Aníbal, muito célebre em Lamego”, que foi “um dos que acompanharam Humberto Delgado até Viseu.”

Era sabido que “em 23 e 24 de maio de 1958, o general [estivera] em Lamego, Castro Daire e Viseu”. Porém, segundo “o enfermeiro Aníbal”, a ação da campanha tinha começado em Chaves e passara por Vila Real e Régua.

“Foi o enfermeiro Aníbal que me disse que essas fotografias seriam da Foto Moderna, porque o autor da reportagem fotográfica era o senhor Carlos Silva”, fundador dos estúdios.

Carlos Silva não tinha herdeiros. “O único filho do fotógrafo era corredor de automóveis e morreu num acidente. Quem ficou à frente do estúdio foi Boaventura Dias Fernandes.”

Com a procura das imagens, vieram igualmente outras histórias, que Nunes Ramalho recorda.

“Dias depois da passagem do general pela região, Carlos Silva revelou três ou quatro fotografias e colocou-as na montra. Durante a noite, os indivíduos do regime conspurcaram-lha, com excrementos de animais.”

A Foto Moderna “ainda resistiu e, no dia seguinte, o dono voltou a expor as fotografias”, mas a loja foi de novo vandalizada. “Nunca lhe partiram a montra, nem sequer para tirarem as fotografias”, mas os ataques continuaram e Carlos Silva desistiu.

Segundo Nunes Ramalho, Boaventura Dias Fernandes não fazia “a mínima ideia” de onde as fotografias pudessem estar. “Sabia da sua existência, mas nem tinha pensado nelas, nem sequer as tinha procurado.”

Tendo em conta o interesse do historiador, porém, “o senhor Boaventura” acabou por revolver o estúdio à procura delas. “Cerca de sete a oito meses depois da conversa” em Lamego, Miguel Nunes Ramalho recebeu as fotografias na sua casa, em Lisboa.

“São uma obra-prima”, garante à Lusa. “Relativamente a Lamego, são mais de 30, mais de 30 de Viseu, de Castro Daire são só duas. São pequenas, de 8,5 centímetros por 14,5 centímetros, a preto e branco.”

Miguel Ramalho disse que o espólio que doou ao Museu de Lamego, e que será entregue oficialmente no próximo domingo, conta com “mais duas fotografias de Vila Real e outras duas de Chaves, cedidas pela Fundação Humberto Delgado”, através de Iva Delgado, filha do general.

A descoberta do acervo de Carlos Silva levou Miguel Nunes Ramalho a trabalhar num novo livro, em coautoria com Teresa Henrique, “As Eleições de 1958. Humberto Delgado na Campanha do Norte”, lançado em julho de 2008, em Viseu, no Hotel Avenida, onde o general passara uma noite, em maio de 1958.

Em colaboração com Iva Delgado, os autores decidiram usar no livro todas as fotografias, as 71, que tinham na sua posse sobre essa etapa da campanha.

Miguel Nunes Ramalho disse à Lusa que a doação ao Museu de Lamego acontece porque entende que “os documentos históricos não devem constar de arquivos privados” – não há segurança, “não se sabe o destino deles, os herdeiros podem fazer o que entenderem” do património recebido.

“Enquanto amante da história e da investigação, acho que estes documentos que marcam a história de um país, uma cidade ou uma região, e ainda mais a nossa, devem estar em instituições de acesso público“, defendeu o historiador natural de Magueija, Lamego, mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, doutorado em História, Defesa e Relações Internacionais, pela Academia Militar e o ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.

Para Nunes Ramalho, as fotografias “tinham de ficar em Lamego, e o museu é o local indicado para ser feita a sua conservação e divulgação e até para que, num futuro mais longínquo, possam continuar a estar disponíveis e contar a história de Portugal.”

A doação do arquivo vai realizar-se no domingo, 19 de maio, às 16h30, no salão nobre do Museu de Lamego, seguida da conferência “Eleições de 1958 — Humberto Delgado na Campanha do Norte — Roteiro fotográfico”.