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A Operação Marquês tem um novo imbróglio jurídico — e desta vez não foi causado por José Sócrates. Uma das decisões centrais tomadas pelo Tribunal da Relação de Lisboa prendeu-se com a anulação da decisão instrutória do juiz Ivo Rosa. Estavam apenas em causa três crimes de branqueamento de documento e de falsificação de documento e a decisão nada implica com outra decisão da Relação de Lisboa de janeiro de pronunciar José Sócrates e outros arguidos da Operação Marquês para julgamento porque são crimes e factos diferentes.
A Relação de Lisboa decidiu então que o Tribunal Central de Instrução Criminal teria que proferir uma nova decisão instrutória. O problema é que a atual titular do Juízo 2 do Ticão, a juíza Sofia Marinho Peres, recusa-se a proferir tal decisão porque diz que o o seu colega Ivo Rosa é que o juiz natural do processo.
Relação anula decisão de Ivo Rosa de mandar Sócrates para julgamento
Problema? Não só Ivo Rosa foi promovido a juiz desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa como ainda continua de baixa.
Como estão os autos da Operação Marquês
A decisão instrutória assinada pelo juiz Ivo Rosa no dia 4 de abril de 2021, após dois anos e sete meses de fase de instrução criminal, dividiu a Operação Marquês em dois grandes blocos:
- O Bloco A — A pronúncia para julgamento propriamente dita decidida por Ivo Rosa – vamos chamar-lhe Bloco A ao longo deste texto. Neste Bloco A foram pronunciados para julgamento em quatro processos autónomos a dupla José Sócrates e Carlos Santos Silva, Ricardo Salgado, Armando Vara e João Perna;
- E o Bloco B — O despacho de não pronúncia, que corresponde a um arquivamento da esmagadora maioria dos 189 crimes que o Ministério Público imputou na acusação aos arguidos da Operação Marquês – vamos chamar-lhe Bloco B.
A decisão da juíza Sofia Marinho Pires tem a ver com o Bloco A. Porquê?
Porque a pronúncia para julgamento propriamente dita decidida por Ivo Rosa em abril de 2021 levou à pronúncia para julgamento em quatro processos autónomos da dupla José Sócrates e Carlos Santos Silva, Ricardo Salgado, Armando Vara e João Perna.
Desses quatro processo autónomos, apenas restam o processo relacionado com a dupla Sócrates/Santos Silva e o de Ricardo Salgado (que tem uma condenação de oito anos de prisão efetiva apenas um último recurso para o Tribunal Constitucional pendente), visto que os processos de Vara e de Perna já transitaram em julgado com condenações.
Falando do caso de Sócrates e Santos Silva, quer o Ministério Público, quer o próprio ex-primeiro-ministro e o seu melhor amigo, recorreram para a Relação de Lisboa da decisão do juiz Ivo Rosa por entenderem que o magistrado violou a lei ao alterar os pressupostos da acusação deduzida pelo Ministério Público — a chamada alteração substancial dos factos.
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Só um exemplo: o MP entende que Sócrates e Santos Silva são autores em regime de co-autoria do crime de corrupção passiva para ato ilícito e que os cerca de 30 milhões de euros de Santos Silva na Suíça pertencem a José Sócrates. Ivo Rosa transformou Santos Silva em corruptor ativo de Sócrates e diz que os fundos na Suíça são do empresário de construção civil, e não do primeiro-ministro.
A Relação de Lisboa veio a dar razão ao MP, a Sócrates e a Santos Silva e considerou que o juiz Ivo Rosa violou a lei, decidindo anular apenas e só a parte da pronúncia relativa a José Sócrates e a Santos Silva. No mesmo acórdão, as desembargadoras da 5.ª Secção de Lisboa decidiram ordenar ao Tribunal Central de Instrução Criminal que emitisse nova decisão instrutória.
Os fundamentos da decisão da juíza Sofia Martinho Peres
É precisamente essa ordem que a juíza Sofia Martinho Pires recusa tomar. Sendo a titular do Juízo 2 do Ticão, anteriormente titulado pelo juiz Ivo Rosa, a magistrada decidiu que “tem que ser o juiz que presidiu ao debate instrutório e assistiu à argumentação dos sujeitos processuais sobre as questões, de facto e de direito, pertinentes para a decisão instrutória a proferir tal decisão”, escreve a juíza no seu despacho datado de 14 de maio.
Assim, e após invocar “abundante jurisprudência” sobre essa matéria, da qual destaca um acórdão da Relação de Guimarães de 31 de outubro de 2023, a juíza esclarece que a “signatária não presidiu ao debate instrutório e não elaborou a decisão instrutória declarada nula”, logo o “exmo. sr. juiz que proferiu a decisão [Ivo Rosa] é o juiz natural para prolatar nova decisão”, lê-se no despacho.
Relação de Lisboa diz que Ivo Rosa não seguiu o “caminho do dinheiro” que leva a Sócrates
Tudo porque, justifica a juíza Sofia Marinho Pires, “não foi anulado o debate instrutório realizado”.
A magistrada judicial tem consciência de que Ivo Rosa já não pertence aos quadros do Tribunal Central de Instrução Criminal e, apesar de não o escrever no despacho, até foi promovido a juiz desembargador no Tribunal da Relação de Lisboa. Contudo, diz a juíza Sofia Marinho Pires, tal “não obsta, atento o princípio da plenitude da assistência do juiz”, que Ivo Rosa não possa proferir uma decisão.
Problema adicional que a juíza não refere, porque provavelmente não tem conhecimento: Ivo Rosa ainda continua de baixa médica.
Como vamos sair deste novo imbróglio na Operação Marquês? É uma resposta para o próximo capítulo da novela.
Uma coisa é certa: a pronúncia para julgamento de José Sócrates por 22 crimes decidida pela Relação de Lisboa em janeiro, dando razão ao recurso do Ministério Público sobre o chamado Bloco B (a não pronúncia decidida por Ivo Rosa), não está em causa nem é afetada por esta decisão da juíza Sofia Martinho Peres.
Após as desembargadoras da 5.ª secção (a mesma secção mas um coletivo diferente do caso do Bloco A) terem rejeitado as nulidades de todos os arguidos, é expectável que os recursos que os arguidos vão interpor para o Tribunal Constitucional tenham efeito devolutivo, o que fará com que os recursos subam em separado mas os autos principais baixem à primeira instância para que se iniciem os procedimentos com vista à marcação do julgamento de José Sócrates e dos restantes arguidos.