“Vaca”, sons a imitar “mugidos”, insultos relacionados com a orientação sexual e até um “boa noite” ao meio-dia dirigido a uma deputada negra. São apenas alguns exemplos de alegados insultos misóginos e racistas que a deputada Isabel Moreira (PS) imputa aos seus colegas do grupo parlamentar do Chega e que revelou num “Justiça Cega” especial dedicado aos limites da liberdade de expressão a propósito das declarações proferidas por André Ventura sobre a comunidade turca na última sexta-feira. Tais insultos já tinham sido revelados numa reportagem da revista Sábado publicada em abril de 2023.

Quando estamos a passar nos corredores da Assembleia da República ou nos corredores do hemiciclo para falar, eu já ouvi coisas como vaca, mugidos ou nomes que normalmente se chamam a deputadas que são assumidamente lésbicas”, revela Isabel Moreira.

A deputada do PS diz mesmo que já ouviu, por exemplo, os deputados do Chega “dirigirem-se a uma deputada negra ao meio dia para a cumprimentarem assim: ‘Boa noite, senhora deputada’, que é uma coisa normal de se dizer ao meio dia a uma pessoa negra”, ironiza Moreira.

A liberdade de expressão e os insultos do Chega

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“Há um quotidiano infernal, ingerível, de se ficar com os ouvidos verdadeiramente afetados, e uma ofensa e uma injúria permanente”, diz a deputada socialista.

Isabel Moreira acrescenta que os alvos dos deputados do Chega “são sempre mulheres, ou quase sempre mulheres. Ou fazem nos corredores quando estamos sozinhas e ninguém está a ouvir ou dizem coisas absolutamente insuportáveis. Fazem as piores ofensas, intimidações, etc., com o microfone fechado, para não serem ouvidos e para serem só ouvidos pela pessoa que estão a injuriar”, conta Isabel Moreira.

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“André Ventura e o Chega são os maiores inimigos da liberdade de expressão”

Num debate plural e vivo, as juristas Isabel Moreira e Leonor Caldeira concordaram que as declarações de André Ventura não constituem indício suficiente da prática do crime de incitamento ao ódio mas discordam dos limites que devem ser impostos à liberdade de expressão.

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Leonor Caldeira, conhecida por ter sido advogada da família Coxi no processo contra André Ventura, que culminou com a condenação do líder do Chega por “ofensas ilícitas ao direito à honra e à imagem”, defende uma “liberdade de expressão ampla”, mas não absoluta. E entende que a esquerda parlamentar andou mal ao “ceder ao instinto de fazer queixinhas ao árbitro, ao Presidente de Assembleia da República, para pôr ordem na casa. Se nós restringirmos a liberdade de expressão, em última instância isso vai virar-se contra os democratas”, diz.

“Se permitirmos a advertência, e no limite a retirada da palavra, porque é ofensivo ou injurioso, posso garantir que no dia em que o Chega chegar ao poder — espero que isso nunca aconteça — vai usar e abusar desta norma com os precedentes que a esquerda lhe deu para a mão. E isto é uma coisa que eu não posso aceitar”, conclui Leonor Caldeira.

Apesar de as duas juristas concordarem que não é necessário alterar o regimento da Assembleia da República, para impor suspensão e até a aplicação de multas como existe no Parlamento Europeu e noutros parlamentos nacionais, Isabel Moreira critica José Pedro Aguiar Branco por não ter advertido Ventura.

E dá mesmo um exemplo abstrato, recordando a imunidade a que todos os deputados têm direito. “Imagine-se que um deputado difama alguém que nem sequer está presente no hemiciclo porque diz que tal pessoa é pedófila, ladra, o que seja. O alvo da injúria pode colocar uma queixa criminal contra esse deputado mas a imunidade não será levantada” porque a lei, nesses casos, não permite o levantamento para proteger a liberdade da ação política, diz.

Contudo, continua Isabel Moreira, “há situações em que as palavras passam de facto a ação, em que as palavras não são só palavras. Nesse tipo de situações, penso que deve haver no mínimo uma advertência, o regimento diz isso. É estranhíssimo que se defenda que a casa da democracia, eleita pelo povo e que faz as leis, não cumpra a lei”, enfatiza.

Leonor Caldeira vê o problema a partir de outra perspetiva e diz que o “Chega é o maior inventor de ofensas e o maior inimigo da liberdade de expressão em Portugal. O Chega interrompe quando os outros estão a falar, fazem barulho quando os outros estão a falar. O Chega intimida e põe processos a jornalistas que escrevem e dizem coisas sobre André Ventura e outros dirigentes do partido, que felizmente têm sempre perdido. Portanto, Ventura e o Chega são os maiores inimigos da liberdade de expressão”, conclui a advogada.

Texto alterado às 16h53 do dia 23 de maio de 2024