As primeiras semanas de André Villas-Boas no FC Porto não têm sido propriamente pacíficas. No entanto, e como vão explicando algumas fontes ao Observador, parece existir uma espécie de “lei de Murphy” instalada. Tudo o que se sabia estar mal, está ainda pior. Tudo o que se pensava ser uma base para trabalhar, afinal não tem alicerces para ser alavancada. Sobretudo em termos financeiros, o cenário complicado em que estava a ser trabalhada a nova realidade entre reuniões com possíveis parceiros tem contornos mais difíceis de dobrar a breve prazo, sendo preciso recuar a uma era que se pensava estar enterrada desde a criação das sociedades autónomas desportivas em que o líder tem de ajudar a fazer face à tesouraria. Estava mal, ficou pior.
Entre várias dificuldades, as questões foram estabilizando dentro do possível em termos internos. Alguns dos ordenados e prémios de jogo em atraso conseguiram ser liquidados, avançaram renovações mais prementes no universo das modalidades de peças fulcrais nos respetivos projetos (Lauren Page no voleibol feminino, Daymaro Salina – que parecia perdido – no andebol, Miguel Queiroz esta semana no basquetebol) e estão a ser também ultimados negócios para remodelações técnicas que serão feitas em algumas equipas por falta de resultados. Em paralelo, existiu uma tentativa de lançar uma nova era com a campanha “Invictos de Coração” que mostrou a identidade gráfica para 2024/25 e foi também denunciado o atual protocolo com a claque Super Dragões sem fechar portas a um novo vínculo. Mas havia outro “obstáculo” a caminho.
Na cabeça de André Villas-Boas, entre todos os elogios feitos ao percurso que teve ao longo de sete épocas no Dragão, nunca esteve a possibilidade de Sérgio Conceição ficar. Na cabeça de Sérgio Conceição, apesar do respeito institucional que foi tentando manter desde as eleições pelo novo líder, nunca esteve em equação a possibilidade de André Villas-Boas querer que ficasse. Para ambos, por várias razões, era linear o que estava para acontecer. Aquilo que nenhuma das partes imaginava era que a solução se tornasse um problema.
A cerimónia de entrega da Taça de Portugal no Museu, que selou mais um recorde do treinador como aquele que mais títulos nacionais conquistou no panorama português por apenas um clube (11), mostrou a “tensão” que já existia apesar da vitória que fechou a temporada frente ao Sporting. Até em pequenos pormenores, como o facto de ter sido Sérgio Conceição, de fato e gravata ao contrário dos seus adjuntos que estavam do outro lado na reunião do grupo no espaço, a encaminhar-se até André Villas-Boas para cumprimentá-lo pelas palavras que o presidente teve de agradecimento ao trabalho ao longo de sete anos. Vítor Bruno, número 2 do treinador ao longo de mais de uma década, estava literalmente fora do plano dessas imagens. Contudo, com o passar dos dias, não poderia estar mais “dentro”. Assim começava um “terramoto” no Dragão.
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— FC Porto (@FCPorto) June 5, 2024
Sérgio Conceição, nessa fase, não queria apenas ser “empurrado” para fora do FC Porto. Estava disposto a assinar a carta de revogação por mútuo acordo com os azuis e brancos para anular sem encargos a renovação até 2028, algo que teria de partir sempre da sua parte como tinha ficado assinado, mas pretendia também que lhe fossem reconhecidos todos os méritos das sete temporadas em que esteve à frente da equipa. Foi por isso que o seu assessor de imprensa, Francisco Empis, numa das raras ocasiões em que teve uma intervenção pública, mostrou a estranheza por todas as notícias que davam conta de um discurso de despedida de Villas-Boas para o técnico sem se terem ainda sentado para discutir o tema. O “pior” estava ainda para vir.
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Como 13 anos de ligação ficaram “apagados” (a mal) em 72 horas
Só no dia seguinte a essa cerimónia da Taça de Portugal houve uma conversa entre Sérgio Conceição e Vítor Bruno onde o adjunto mostrou a sua vontade em enveredar por uma carreira como técnico principal. A ideia não era propriamente nova para o treinador de 41 anos, que por mais de uma dezena e meia de vezes nestes sete anos no Dragão assumiu o estatuto de número 1 por castigo de Sérgio Conceição (teve apenas um empate e o resto só vitórias). Mais: quando em 2021 e no ano passado a administração liderada por Pinto da Costa tomou conhecimento de possíveis incursões pelo treinador, houve sondagens para perceber se existiria a possibilidade de ficar e assumir a liderança da equipa técnica como tinha acontecido por exemplo com Vítor Pereira em 2011 no lugar de… André Villas-Boas. Não foi feita uma proposta mas colocou-se a hipótese.
Vítor Bruno referiu também nessa conversa com Sérgio Conceição que tinha recebido por parte de Antero Henrique uma proposta de um clube estrangeiro para assumir esse primeiro projeto como número 1. Era para a Liga do Qatar, onde o antigo CEO dos azuis e brancos é um dos principais responsáveis, num caminho que seria em parte idêntico ao que foi feito por Rui Faria, antigo preparador de José Mourinho que esteve entre 2018 e 2020 no Al Duhail. Mais: Sérgio ficou com a ideia que aquela pessoa de confiança que um dia disse ser o seu “braço direito e esquerdo” iria aceitar esse convite. Depois, percebeu que havia mais.
A determinada altura da conversa que teve com André Villas-Boas, a primeira e única nestes dias, o líder dos azuis e brancos não teve problema em assumir os nomes equacionados para a sucessão. Entre eles, além dos estrangeiros, estava Vítor Bruno. Sérgio Conceição não gostou e saiu. Estavam a começar os pontos mais quentes das 72 horas que abalaram o Dragão e que não foram esquecidas apesar da rescisão consumada na noite desta segunda-feira, depois de várias horas de encontro entre os advogados de ambas as partes apesar de o técnico ter feito uma pausa nas férias no Algarve para se deslocar à Invicta e fechar de vez o assunto.
Quando fez a renovação por quatro épocas com Pinto da Costa ainda como presidente, dois dias antes das eleições, Sérgio Conceição assumiu que no dia em que saísse não quereria qualquer tipo de indemnização por parte dos dragões. Mais: havendo uma viragem de ciclo, como aconteceu mesmo com o triunfo esmagador de Villas-Boas com mais de 80% no sufrágio, os pratos da balança automaticamente caíam com maior peso para a saída depois de todo o desgaste provocado por sete anos em que muitas vezes se sentiu sem a proteção que desejava por parte da estrutura e sem capacidade para inverter a lógica de construir bases de equipas que no final da temporada eram “desmembradas” pela necessidade de venda de ativos para dar um equilíbrio (nunca suficiente) às contas da SAD. Apesar dessa garantia, ficou agastado com todo o processo.
Por portas e travessas, Sérgio Conceição percebeu que existiria uma tentativa de André Villas-Boas, com o apoio de Antero Henrique, “desviar” o adjunto Vítor Bruno ainda nos primeiros dias de maio, por altura da receção do FC Porto ao Boavista resolvida com um golo em período de descontos. Foi daí que nasceu esse sentimento de “traição” que foi levantado em vários momentos, pelo próprio, pelos adjuntos ou pela própria família. Ou seja, quando ouviu o número 2 dizer que queria seguir a carreira de número 1 e lhe respondeu que agradecia por tudo e estaria disposto a ajudar no que fosse preciso no arranque de “aventura”, Vítor Bruno já estaria “comprometido” com a atual estrutura. Mais: nunca chegou a ser equacionado por Villas-Boas como hipótese para o novo ciclo dos azuis e brancos apesar do trajeto desde 2017.
“Fechou-se com sucesso um período de sete anos e de 11 títulos, de grandes feitos desportivos na vida do nosso clube. Os acontecimentos recentes, nomeadamente a quebra de confiança num elemento da minha equipa técnica, a ingerência na integridade e coesão da mesma sem o meu conhecimento, deixam-me desgastado e desiludido. Sempre me regi pela frontalidade e pela lealdade”, destacou em comunicado.
“Em breve virei a público contar a verdade dos factos, incluindo os seguintes pontos: a renovação de 25 de abril, na qual fiz questão de incluir a clausula que hoje permite sair do FC Porto, sem qualquer encargo para o clube. Foi esse o compromisso que assumi com o Presidente Jorge Nuno Pinto da Costa, mas sobretudo com os sócios do FC Porto; a renovação com a restante equipa técnica, que já foi comentada pelos mesmos e que seguiu os timings comuns destes processos; a demora neste processo, que esbarrou numa renitência em pôr em prática, com quem durante anos manteve o clube na hegemonia do futebol português, um discurso de integridade e transparência legitimado pelos sócios”, apontou depois de rescindir contrato.
“Foi sempre a lealdade para com este clube que me prendeu aqui. Foi também por essa mesma lealdade para com as pessoas que me acompanham aqui há mais de 30 anos e pelos sócios do FC Porto, que hoje tomo este passo. Não será uma quebra de valores e traição de outros que me farão pôr em causa os meus próprios valores e a minha palavra. Tal como prometi, saio do FC Porto com a mesma dignidade com que entrei. Não foi por dinheiro que vim para cá, e não é com dinheiro que quero sair”, concluiu após um acordo onde terá apenas a receber valores de prémio em atraso. Mais: segundo apurou o Observador, os advogados de Sérgio Conceição, em representação do técnico, chegaram a falar na possibilidade de rescisão mediante a não aposta no seu anterior número 2 mas nunca foi colocada qualquer hipótese de cláusula anti-Vítor Bruno.
Tantos momentos marcantes ????
O legado do Mister Sérgio Conceição ????
Timeline completa ???? https://t.co/QG8TrxxCm6#FCPorto pic.twitter.com/wmbnJc8WWC— FC Porto (@FCPorto) June 4, 2024
Da parte do futuro número 1 da equipa técnica do FC Porto, houve um comunicado e nada mais. Desde que estalou toda a polémica, ainda circularam notícias de fontes próximas do treinador que davam conta de um sentimento de “traição” em relação a Sérgio Conceição por não ter havido uma renovação também a 25 de abril com os adjuntos (algo que não faria sentido, tendo em conta que tinha há muito essa vontade de seguir a carreira como técnico principal) mas a única declaração pública chegou através de um texto partilhado nas redes sociais onde, entre vários parágrafos, reservava a possibilidade de escolher o destino que quisesse em termos profissionais sem qualquer tipo de condicionamento ou pressão externa que fosse feita.
Vítor Bruno fez um comunicado, “limpou a cabeça”, escolheu adjuntos e já assinou
“Fui sondado sobre a possibilidade de treinar, a título principal, uma equipa num campeonato fora de Portugal, ao que a minha resposta foi perentória, no sentido de haver abertura para discutir essa possibilidade existindo o compromisso de conversar com o treinador principal Sérgio Conceição a esse respeito. Tal assunto foi conversado de forma elevada, calma e civilizada entre mim e o treinador principal Sérgio Conceição, no início desta semana. Compreendendo este perfeitamente as razões por mim avançadas para o assumir de uma equipa a título principal, aceitou a minha decisão – e desejou-me os maiores sucessos. Em função disso, encontro-me a avaliar várias possibilidades quanto ao futuro profissional – relativamente ao qual reservo a minha liberdade de escolha, cabendo a mim em exclusivo a decisão sobre o mesmo”, disse.
“Toda a demais narrativa que terceiros mal intencionados estarão a tentar construir e inculcar é eivada de absoluta má fé e totalmente falsa. Não passando de uma campanha orquestrada com o único e declarado propósito de me difamar, de me caluniar, procurando por todos os meios assassinar o meu carácter, a minha reputação e o meu bom nome, o qual vem sendo construído há quase duas décadas no mundo do futebol. Mercê das ofensas e calúnias totalmente imerecidas de que tenho sido alvo e vítima, sinto-me injustiçado, vendo a minha família perturbada e em sofrimento diário e permanente, quando sei que nada fiz de errado ou que possa justificar a campanha maquinada contra mim – urgindo, como tal, manifestar o meu frontal repúdio pelas ‘notícias’ que vieram agora a público e às quais nesta sede se responde”, adiantou.
“Por último – e aproveitando a oportunidade –, sublinho que nenhuma das ‘notícias’ surgidas nos últimos dias, alegadamente citando pessoas das minhas relações (as denominadas ‘fontes próximas’), apresentam qualquer fundo de verdade: não fiquei minimamente melindrado (pretensamente, teria considerado esse facto como uma ‘traição’, o que não corresponde, de todo, à realidade) com a circunstância de o treinador principal Sérgio Conceição haver renovado contrato com o FC Porto, ao invés da restante equipa técnica. Em momento algum, tal circunstância teve alguma relação com a minha decisão de seguir um caminho distinto da aludida equipa técnica – nada tendo eu que ver com o ‘lançamento’ de tais notícias, as quais são absolutamente destituídas de sentido ou fundamento”, completou o antigo adjunto no comunicado.
Esclarecida essa situação, Vítor Bruno tirou alguns dias para se isolar e fugir de todo o “barulho” criado em seu torno. No início desta semana, foi começando a pensar no próximo passo da carreira. E o próximo passo era criar a sua própria equipa técnica, tendo em conta a vontade manifestada por André Villas-Boas em fechar o mais rapidamente possível a questão do treinador para avançar para o resto do planeamento. Foi por isso que o contrato ficou fechado na manhã desta quarta-feira e que a apresentação acontecerá até ao final da semana, já com toda a futura equipa técnica constituída perante as confirmações que foram sendo feitas a nomes que Vítor Bruno conhecia, com quem trabalho como jogadores ou ligados ao FC Porto.
As tarefas vão estando cada vez mais definidas neste novo FC Porto, sendo que André Villas-Boas acaba por ter de acudir a um número bem maior de “incêndios” do que pensava ter. Andoni Zubizarreta, novo diretor desportivo, começou já a fazer contactos exploratórios no mercado por forma a identificar alvos que podem ser apetecíveis para os azuis e brancos tendo sempre a perspetiva de investimentos mais baixos e/ou partilha de direitos económicos mas com potencial desportivo e de mais valia financeira. Jorge Costa, que subiu o AVS como treinador, já esteve no Dragão e acompanha também o processo de Vítor Bruno e outros que terão de ser resolvidos como a liderança da equipa B. O presidente, esse, vai a todas. E com várias pastas.
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Esta terça-feira, Villas-Boas esteve presente na Direção de Finanças de Braga. A notícia foi avançada pela CMTV e confirmada pelo Observador. Razão? A Operação Prolongamento, com o líder portista a tomar conta daquilo que está em causa a nível de alegados desvios de verbas da Altice e do FC Porto através de alienações de passes de jogadores tendo como epicentro não só Pinto da Costa mas também os agentes Alexandre Pinto da Costa e Pedro Pinho. Poderão estar em causa muitos milhões de euros desviados da sociedade azul e branca, o que faz também com que o novo número 1 do clube e da SAD utilize o caso como exemplo: o FC Porto vai-se construir assistente do processo e avançará nas próximas semanas com auditorias externas a todo o universo empresarial dos dragões. Depois, ficará com uma espécie de “livro branco”.
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Apesar de todas essas questões, Villas-Boas faz questão de acompanhar tudo o que se tem passado a nível de futebol. Com o acordo com Vítor Bruno fechado, e havendo agora diligências para fechar a restante equipa técnica, o presidente do FC Porto quer fazer com que a informação do contrato com o antigo número 2 tenha tempo para “respirar”, por forma a criar melhores condições para o assumir da pasta. Em termos internos, existe a convicção de que o grupo vai aceitar da melhor forma Vítor Bruno pelas ligações que foi tendo ao longo de sete anos com os jogadores. Ainda assim, há um outro possível obstáculo ainda chamado Sérgio Conceição mas, caso tenha intervenções públicas que possam desgastar o escolhido para sucessor, irá responder da mesma forma. Objetivo? Garantir a tranquilidade possível para todo o processo de transição.
Pai de Guilherme, de dez anos, e Gustavo, de oito (ambos com ligação ao FC Porto no futebol, com o mais velho no Dragon Force e o segundo nos portistas), Vítor Bruno, de 41 anos, chegou ao mundo desportivo por influência do pai, Vítor Manuel, um dos técnicos mais “míticos” do futebol nacional nos anos 80 e 90 que foi passando por clubes como Académica, Sp. Braga, Penafiel, U. Leiria, Belenenses, Leça, Salgueiros ou Alverca (mais tarde passaria ainda por Angola e pela Argélia, acabando a carreira como técnico de vez em 2015 com essa tristeza de não ter recebido mais convites de palcos maiores de Portugal). Depois de fazer formação na Académica, clube da cidade onde nasceu, Vítor Bruno teve passagens por clubes mais modestos como Vigor, Mirandense, Tourizense, Marialvas, Gândara e Valonguense mas cedo passou para os bancos.
???? Vítor Bruno está reunido neste momento com a estrutura do FC Porto para a assinatura do contrato para se tornar no novo treinador principal. pic.twitter.com/7MR2cFN8WF
— Mercado Azul (@_mercadoazul_) June 5, 2024
Depois de acompanhar o pai no Interclube e no 1.º de Agosto, Vítor Bruno, de 41 anos, fez parte das equipas técnicas de Augusto Inácio na Naval e no Leixões entre 2009 e 2011, passando depois para o conjunto feito por Sérgio Conceição para assumir o Olhanense na época de 2011/12. A partir daí, andou sempre com o treinador que vai agora deixar o Dragão, entre Académica, Sp. Braga, V. Guimarães, Nantes e FC Porto nos últimos sete anos. Conhecido pela ligação aos jogadores, pelo trabalho na preparação ao jogo e pela forma eloquente com que se apresentava nas zonas de entrevistas rápidas quando o seu número 1 estava de fora por castigo (em 17 jogos nessa condição, ganhou 15 e empatou dois), tinha também como imagem de marca a presença no banco de suplentes de calções. Agora, “trocou” de contratos. E se tinha ligação até 30 de junho como adjunto do FC Porto, agora passa a ter um vínculo válido até junho de 2026 como principal.