“Via as notícias e via os barcos que chegavam de África, via as pessoas a saltarem a cerca em Melilla e dei-me conta de que realmente não sabia como é que tínhamos chegado a Espanha. Foi algo que sempre perguntei mas a minha mãe sempre evitou contar porque era apenas um miúdo. Talvez tenha pensado que se tivesse contado quando comecei no Athl. Bilbao, fosse um peso demasiado grande nas minhas costas. Sabia que a minha vida era diferente da dos meus amigos mas quando ouvi todos os detalhes…

Pois é Spalletti, fica difícil jogar contra esta equipa de PlayStation (a crónica do Espanha-Itália)

Eles partiram num camião, daqueles camiões de caixa aberta, com cerca de pessoas. A seguir, começaram a andar durante dias. Houve pessoas que caíram, que foram pelo caminho, que acabaram enterradas. Era algo perigoso porque há ladrões à esperda, violações, sofrimento. Alguns são enganados. Pagam aos traficantes e a meio do caminho dizem-se ‘A viagem termina aqui’. Deixam-te ali, sem nada. Sem água, sem comida. Deixam crianças, deixam pessoas mais velhas, deixam mulheres para trás…

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Chegaram a Melilla, passaram a cerca mas foram detidos pela Guarda Civil. Não tinham papéis, vinham como imigrantes e quando é assim são devolvidos. Quando estavam na prisão, um advogado da Cáritas que falava inglês disse que a única coisa que podiam tentar era dizer que vinham de um país que estava em guerra. Rasgaram os papéis que tinham do Gana, disseram que eram da Libéria e pediram asilo político. Foi graças a isso que chegámos a Bilbau. Ouvir a história dos meus pais faz com que lutemos ainda mais com o intuito de devolver todo o sacrifício que passaram por nós. Nunca poderei pagar porque arriscaram as suas vidas mas a vida que lhes tentamos dar é aquela que eles sonharam dar-nos. De alguma forma podemos começar a dizer que conseguimos esse objetivo.”

O testemunho foi dado por Iñaki Williams numa entrevista ao The Guardian, podia ter sido dado pelo irmão mais novo Nico Williams. Têm nove anos de diferença, jogam no mesmo clube (Athl. Bilbao), representam seleções diferentes, são modelos para o bom e para o mau que a sociedade pode ter. Iñaki, de 30, joga pelo Gana por respeito a um pedido expresso do avô (mas passou pelas camadas jovens de Espanha antes de passar a representar o conjunto africano). Nico, de 21, atua pela Espanha. Esta noite, em Gelsenkirchen, teve o seu momento mais alto pela Roja e, mais uma vez, recordou a odisseia que os pais tiveram de passar entre o Gana e o País Basco com o deserto do Saara pelo meio para dar valor ao que é mais importante.

Depois de passar pelo Pamplona e pelo Osasuna, Nico entrou nas camadas jovens do Athletic com apenas 11 anos para se tornar um autêntico ícone do conjunto de Bilbau, tendo feito a estreia pelo principal conjunto em 2020/21 quando não tinha cumprido ainda os 18 anos. Desde Julio e Patxi Salinas que o clube não tinha dois irmãos ao mesmo tempo em campo mas a marca dos Williams foi mais profunda do que aquela que o antigo avançado internacional e o seu irmão deixaram, no bom que foi ganhar o primeiro troféu em quatro décadas com a conquista da Taça do Rei e no mau com alguns episódios de racismo vindos da bancada que fazem com que sejam duas das principais caras nas campanhas de sensibilização junto da sociedade e dos adeptos. Agora, está a abrir-se um novo capítulo do Williams júnior por Espanha.

[Já saiu o sexto e último episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo, aqui o terceiro, aqui o quarto episódio e aqui o quinto episódio.]

Aposta forte de Luis de la Fuente na seleção depois de ter feito a estreia pela equipa A em 2022, Nico foi titular na estreia diante da Croácia e voltou a merecer a aposta inicial frente à Itália, na segunda jornada do grupo B. Não marcou, não assistiu (embora tenha feito o cruzamento para o autogolo de Calafiori), mas fez daquelas exibições que estão acima desses registos entre uma bola na trave, um desvio de cabeça a rasar o poste e um sem números de ações que deixaram sempre Di Lorenzo para trás. No final, perante tudo isso, recebeu o prémio de MVP do jogo. Como refere o As, “é daqueles jogos que muda uma carreira”.

Curiosamente, Nico Williams tinha dado uma entrevista ao El Mundo antes da partida com os transalpinos. Num registo mais descontraído e de perguntas e entrevistas mais rápidas, falou da importância de Iñaki, “irmão mais velho, melhor amigo e companheiro para a vida”, e dos pais, em especial da mãe. Num dos vários episódios que conta na conversa, recorda que pediu para comprar um carro melhor quando tinha 18 anos, dinheiro e carta na mão mas que a mãe recusou a ideia, algo que acabou por acatar tendo uma viatura bem mais modesta (na altura). Esta noite, Nico colocou o capacete e vestiu o papel de Fórmula 1 com inúmeras cavalgadas que fizeram a diferença para o triunfo. E a família Williams voltou a sorrir de alegria.