Não estava numa garrafa, nem envelheceu numa adega. O vinho mais antigo do mundo foi descoberto num túmulo, dentro de uma urna funerária de vidro, onde estavam submersos ossadas de um homem. Há 2 mil anos subterrado, o líquido resistiu a saqueadores e a novas construções no terreno. E saltou para as notícias pelas mãos de arqueólogos espanhóis que o encontraram num túmulo romano em Carmona, Sevilha, que concluíram que é do século I d.C. — com dois mil anos, passou a ser vinho mais antigo do mundo. Destronou assim a garrafa de vinho Speyer, também retirada de um túmulo romano, perto da cidade de Speyer na Alemanha, em 1867, e datada de 325 d.C.

O resultado das análises feitas pelo Departamento de Química Orgânica da Universidade de Córdoba foi na terça-feira divulgado num artigo publicado no Journal of Archaeological Science: Reports mas esta história não começa aqui: o vinho foi encontrado em 2019.

Há cinco anos, um casal que estava a realizar obras na sua casa em Carmona, Espanha deparou-se com a estrutura subterrânea e alertou o departamento de arqueologia do município. Este rapidamente se apercebeu de que estava perante um túmulo romano escavado na rocha com várias urnas funerárias. A primeira surpresa surgiu já no ano passado: a descoberta de uma garrafa de cristal com um perfume com cheiro a pacholli.

Mas havia mais nesta tumba com oito nichos funerários, seis urnas, sendo que duas estavam identificadas: Hispana e Senicio. Nas outras quatro estavam restos mortais de dois homens e duas mulheres, sendo que uma delas, sem qualquer inscrição, guardava os ossos de um homem e um anel com o duplo rosto de Janus, dentro de um líquido vermelho-acastanhado.

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Depois de afastarem a hipótese de o líquido ser o resultado de condensação ou de alguma inundação, os investigadores decidiram partir para a sua análise, descobrindo um pH muito perto da água e elementos químicos semelhantes aos do vinho. Era então preciso confirmar que era mesmo vinho com uma série de análises químicas que, explica o jornal espanhol, duraram até janeiro deste ano.

“Procurámos polifenóis exclusivamente do vinho — e encontrámos sete. Comparámos esses polifenóis com os dos vinhos desta zona da Andaluzia e coincidiram”, disse José Arrebola ao jornal The Guardian.

O estudo concluiu que o líquido era de facto vinho e que pertenceria ao ‘tipo’ xerez — um vinho branco típico da região. Já a sua cor castanho-avermelhada e textura encorpada resultariam de reações químicas com outros compostos presentes no local — nomeadamente com os restos mortais do romano.

“O vinho era coisa de homens”

A descoberta espantou os investigadores. “Não é todos os dias que aparece o vinho mais antigo do mundo“, disse o líder da equipa, José Arrebola, citado pelo The Guardian. A admiração não é para menos. Como é que o vinho conseguiu chegar até aos nossos dias?

O arqueólogo municipal Juan Manuel Román assinala que a preservação do túmulo — “intacto e bem selado” — foi essencial para a manutenção do estado natural do vinho. Tal revelou-se extraordinário para o Departamento de Química: o vinho costuma evaporar rapidamente, o que revela ser quase impossível encontrá-lo em forma líquida após tanto tempo, referiram ao jornal espanhol El País.

Mais, sabendo-se que o domínio romano marcou o século primeiro depois de Cristo na Península Ibérica e que o povo muito orgulhoso gostava de ostentar a sua riqueza, que se refletia também nos seus ritos funerários, seria de esperar que o túmulo tivesse sido saqueado, afirmou o especialista Arrebola ao jornal britânico.

Aliás, disseram ao El País os arqueólogos, a estrutura, que parece um mausoléu circular, estava situada perto de uma importante estrada que na época ligava Carmona a Hispalis (Sevilha) pelo que possivelmente pertenceria a uma família com um elevado poder de compra. Mas o que chega até nós deste ritual funerário de dois homens e duas mulheres através das urnas de vidro no túmulo, diz mais: revelam a diferença de género na época em que o vinho “era uma coisa de homens”, pode ler-se no estudo.

“O facto de o vinho cobrir os restos mortais de um homem não é coincidência (…) As mulheres na Roma Antiga foram durante muito tempo proibidas de provar vinho. (…) Se os ossos de um dos homens estavam imersos em vinho junto com um anel de ouro, os restos mortais de uma mulher não continham uma única gota de vinho, mas sim três jóias de âmbar, um frasco de perfume e restos de tecidos cujas primeiras análises parecem indicar serem seda”, apontam os autores do artigo publicado esta semana.

Para além de espanto e admiração, a conclusão permitiu brincadeiras. O líder da equipa de investigadores químicos assumiu ao The Guardian que chegou a perguntar a ‘brincar’ ao arqueólogo principal se poderiam beber “um copo pequenino” para celebrar: “Não é minimamente tóxico — fizemos a análise microbiológica”.

“Mas tive certas dúvidas: este vinho esteve 2.000 anos em contacto com o corpo cremado de um romano morto. O líquido era um pouco turvo por causa dos ossos. Mas acho que se pode filtrar e experimentar. Porém, preferia que outra pessoa o provasse primeiro”, admitiu o cientista ao jornal.