Há uma famosa estatística que sempre assobiou na cabeça no momento de jogar no Euromilhões: as probabilidades de ganhar o prémio máximo são menores do que morrer a caminho do quiosque onde se vai depositar o boletim. A probabilidade de ganhar o jackpot é de uma vez a cada cem milhões de tentativas — mais do que isso até —, enquanto que morrer no caminho para lá, de carro, por exemplo, é de apenas uma em pouco mais de seis mil. E se esta já parece surpreendente, então qual a probabilidade de ganhar a lotaria duas vezes seguidas? É bastante menor: é de uma vez a cada 2,5 mil milhões de vezes. Como evitar estas estatísticas difíceis? É fazer como diz a piada de pai: “Só não ganho o Euromilhões porque não jogo”. Portugal quis jogar duas vezes na lotaria sem saber as probabilidades e ficou a perceber no fim que o melhor, mesmo, é não estourar o dinheiro em jogos de sorte e azar e apostar antes num Plano Poupança Reforma que o ajude a resolver a sua vida mais cedo, a pensar no futuro.

Nem Portugal nem França o fizeram esta noite. As duas equipas proporcionaram um bom jogo a quem esteve na bancada, mas tiveram sempre demasiado respeito uma da outra. Mais: mantiveram as fragilidades que demonstraram até agora no Euro. Umas foram atenuadas, outras continuam — e para os franceses continuarão. Ainda assim, houve vislumbres de mudança em Portugal, que foi melhor que França, na — talvez — melhor exibição no Euro. Na primeira mão cheia de tempo, a Seleção Francesa entrou pressionante, fresquinha, mandona. Portugal reagiu bem a esse ímpeto e a partir daí deixou de ter medo — ele só voltou mais à frente. Aliás, assim que teve a primeira posse, a Seleção esteve oito minutos consecutivos com bola, sem um único toque francês. Paciência, muita paciência iria ser precisa, e com bola Portugal já tinha mostrado noutros jogos que a posse nunca foi problema. O problema, esse sim, é o que fazer com essa posse. A equipa apareceu assim confiante, com boa circulação, ligeiramente mais rápida do que noutros duelos, e ao minuto 20 tinha 67% de posse de bola.

Só que os jogos não se ganham com posse — nem com lotarias. A equipa continuou cinzenta no momento de inventar espaços na frente, ainda que hoje tenha estado melhor. França foi o oposto. Cinzenta na construção, azul — ainda que pouco vivo — no último terço. Cínica. Passava a sensação de que bastava acelerar um pouco para furar e que sabia exatamente como o fazer, bastava querer. O filme da primeira parte foi muito esse: Portugal com mais bola, com mais ataques — principalmente muito inteligente a aproveitar o espaço dado a Leão no corredor esquerdo, com grande exibição —, mas França a materializar em ocasiões. Até porque é uma equipa mais esclarecida no fim do campo. Os alas abriam bem os espaços e de bola rasteira aparecia frequentemente alguém no meio a receber. No nosso lado, Portugal continuou a insistir num cruzabol sem medida: se lá estiver alguém de vermelho a finalizar melhor, se não estiver cruza-se na mesma.

Foi assim que Portugal foi a equipa mais dominadora dos primeiros 45 minutos, mas o remate de Theo Hernández e o “cruzamate” de Mbappé tinham sido as duas situações de maior perigo, para lá de um livre de Bruno Fernandes — finalmente, alguém diferente a bater. No final, duas equipas boas de bola, bem na circulação, mas sem arriscarem muito. Na nossa Seleção, o destaque ia claramente para a boa exibição de Rafael Leão, a dar muito trabalho a Koundé.

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Bem-vindos, remates — ou mal-vindos, dependendo do lado

A segunda parte começou como foi a primeira. Batalha a meio-campo, vais tu e vou eu, com Portugal novamente confortável com a bola no pé. Faltava materializar, abrir espaços, entrar com critério e isso aconteceu pela primeira vez à hora de jogo. E não foi tiro único: Bruno Fernandes foi o primeiro a tentar, a grande passe de João Cancelo — que grande jogo do lateral —, mas Maignan defendeu. Take dois, tentava agora o próprio Cancelo, mas saiu ao lado. Take três, Vitinha, com talvez a melhor ocasião do jogo, encostou contra Maignan após nova correria de Leão. Take quatro, Ronaldo, na recarga de calcanhar do remate de Vitinha. O melhor momento de Portugal no jogo, com os alas a irem bem no desequilibrio, os médios a darem bem apoio por dentro e finalmente alguma bola cruzada a encontrar gente na área.

O susto valeu um abre-olhos a Didier Deschamps e a demonstração de que acelerar só de vez em quando podia depois não bastar. O selecionador francês não perdeu tempo atirou para o campo Ousmane Dembelé — a melhor mexida vinda dos bancos e, talvez, o melhor do jogo. O extremo do PSG soube fazer o que até ali Griezmann — mais preocupado com o jogo interior do que na ala — ou Mbappé nunca tinham conseguido fazer a sério: acelerar e desequilibrar, perante as linhas mais subidas do que o habitual de Portugal. O impacto foi imediato: a França subiu, pôs a quarta e deixou de andar em segunda e Camavinga primeiro — a centímetros do poste — e o próprio Dembelé depois — mesmo no ferro — fizeram saltar um batimento cardíaco a cada português. Foi o pior momento de Portugal no jogo e levou Roberto Martínez a mexer pela primeira vez. Desta vez deixou — e bem — Vitinha em campo e retirou Bruno Fernandes, para a entrada de Chico Conceição, deixando a Bernardo as despesas de 10. Semedo rendeu um desgastado Cancelo, com a melhor exibição até agora no Euro.

Mas se há elogios para Martínez nas duas substituições que fez, há que criticar novamente nas que não fez. Com o tempo a passar e com os caminhos fechados, servia de pouco ter um bom Francisco Conceição — entrou muito bem no jogo — se na área se mantinham os mesmos movimentos. Cristiano Ronaldo continuou completamente desaparecido e também ninguém se juntou para ajudar. Até ao fim entrou só Rúben Neves para o lugar de João Palhinha, com mais uma exibição monstruosa, mas a ver amarelo. Foi gestão até ao fim dos noventa e notava-se que era o que queriam as duas equipas.

Não há pernas ou não há soluções?

Para o prolongamento, o jogo esteve mais partido do que nunca. Houve mais espaço dado a cada um dos lados, e novamente veio ao de cima um dos defeitos de Portugal e França neste Campeonato da Europa: a finalização. Um festival de ocasiões desperdiçadas. Ronaldo voltou a falhar o que nunca falharia há anos num belo trabalho de Francisco Conceição à direita, Rafael Leão atirou ao boneco Upamecano e no outro lado, as bancadas terão ficado a pedir uma cortina de redes por trás da baliza portuguesa: tanto Dembelé como Barcola atiraram bem alto, para os lugares atrás de Diogo Costa.

Mas o jogo estava de feição para Portugal. Francisco Conceição entrou bem e foi o elemento mais desequilibrador, com Bernardo Silva a assumir um papel que condiz mais com as suas caraterísticas. Foi um Portugal mais colorido na frente, mas um elemento continuava em branco: Cristiano Ronaldo. E aqui não há como dizer. É inexplicável que Roberto Martínez tenha mantido — mais uma vez — o número sete português em mais 120 minutos seguidos de jogo. Cristiano esteve ainda mais apagado do que frente à Eslovénia, teve um papel ainda menor em termos de ligação e as movimentações do capitão na área ou na busca de profundidade continuaram sempre demasiado previsíveis. Com 39 anos, Cristiano faz 240 minutos consecutivos, com Diogo Jota e Gonçalo Ramos — que encaixavam que nem uma luva no jogo partido — a ver do banco. Podiam até nem ter rendido o capitão, mas nem apoio tiveram a oportunidade de dar.

Do outro lado, foi como se Deschamps quisesse provocar uma reação ao timoneiro luso. Mexeu uma peça a ver se Martínez ia atrás, mas não foi. Falamos da saída de Mbappé. Foi aos 106 minutos que a grande estrela francesa foi retirada do jogo, pelo lugar do companheiro de equipa Bradley Barcola, que foi uma espécie de espalha-brasas versão gaulesa. Ainda fez um remate ao lado, em jogada de bola corrida, mais do que Mbappé e Cristiano Ronaldo juntos. Donnatello e Mestre Splinter saem de Hamburgo sem parecer que lá entraram. As mexidas portuguesas na frente cingiram-se assim à entrada de João Félix para o lugar do mais desiquilibrador português, Rafael Leão, com Matheus Nunes ainda a entrar para o lugar de Vitinha em cima dos penáltis. Nuno Mendes ainda teve o golo nos pés após uma jogada de transição, mas novamente o eterno pecado: o medo de rematar mais cedo, a eterna cerimónia. Seguimos para os penáltis.

Aí, desta vez, não houve sorte — ou capacidade. Notou-se claramente que a Seleção francesa teve um serão entretido na última segunda-feira, porque a lição vinha bem estudada. Diogo Costa é imparável no voo, mas isso pode ser anulado se não for preciso voar. Os dois primeiros penáltis foram para o meio da baliza e os restantes saíram indefensáveis. Do lado português, com boas execuções de todos os batedores — Ronaldo, Bernardo e Nuno Mendes — falhou apenas João Félix. A bola, rasteira, beijou o poste direito da baliza de Maignan, que adivinhou o lado. Pelos penáltis se vive, pelos penáltis se morre. E como sabemos, a probabilidade de se morrer a caminho de se pôr o boletim é muito maior do que de lá se sair vivo.

A pérola

  • Rafael Leão e Pepe. Foi o jogador mais desequilibrador em todo o jogo e em cada arrancada conseguiu abrir espaço a ir à linha. Problema: depois da linha nunca nada saiu bem. Ou ninguém finalizava ou o cruzamento saía mal. Ainda assim, melhor exibição de Rafael Leão no Euro, que saiu cedo demais. Pepe não há palavras. Vai deixar saudades. Grande destaque pela positiva também para João Cancelo, Nuno Mendes e João Palhinha, com um grande jogo. Ainda menção para o público português: a melhor coisa do jogo.

O joker

  • Ousmane Dembelé. O extremo do Paris Saint Germain entrou, abriu espaço com e sem bola, teve ocasiões para evitar os penáltis e ainda teve tempo — apenas 50′ minutos — para receber o prémio de Homem do Jogo da UEFA. Esteve muito bem nos duelos, desequilibrou sempre no um para um, mas teve a mesma dificuldade de Leão: ninguém finaliza. Tentou ele, o poste travou-o.

A sentença

  • Portugal tem de jogar mais e melhor. Sai deste Euro 2024 com apenas duas vitórias, uma conseguida aos 90′. Apenas o jogo contra a Turquia foi de real candidato, como era apontado à nossa Seleção. Depois disso, foram sempre mais notórias as dificuldades e os defeitos do que as qualidades de uma geração que, mais uma vez, parece ser desperdiçada. Roberto Martínez com claras culpas nesse departamento.

A mentira

  • Cristiano Ronaldo e a gestão feita do capitão. Não, Ronaldo não pode jogar 120 minutos. Mesmo noventa pareceu esticado. O avançado português continua a ser o melhor finalizador da equipa, mas não marcar golos continua a ser o pecado capital de qualquer avançado menos do número sete de Portugal. Ofereceu pouco à equipa mesmo sem marcar um único golo em toda a competição e despede-se com a pior imagem que já teve desde que se estreou pela equipa das Quinas. Roberto Martínez devia ter gerido melhor Ronaldo, dentro do campo — com a colocação de um parceiro — e fora dele, retirando-o quando era devido. Inacreditável como acaba como jogador de campo com mais minutos da equipa.